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Uma visão crítica do mar e zona costeira brasileiros
João Lara Mesquita

Praia das Toninhas, Ubatuba, desfigurada por condomínio. Foto: João Lara Mesquita

O Brasil tem uma das maiores e mais bonitas zonas costeiras, com cerca de 8.500 quilômetros, e uma clara vocação para o turismo. Não é preciso dizer que essa atividade é uma das que mais cria empregos no mundo e poderia trazer uma quantidade incomensurável de divisas para o país.

Entretanto, não é o que acontece.

Enquanto isso, a nossa ZEE é a décima segunda em tamanho.

Segundo uma tese de doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que analisou o ano de 2015, a economia do mar gerou R$ 1,11 trilhão, correspondendo a 19% do PIB nacional da época.

Apesar disso, a zona costeira e nossa ZEE sempre estiveram ao deus-dará, fora dos radares dos presidentes desde a redemocratização, com a exceção de Michel Temer.

Até Temer assumir, o bioma marinho e a zona costeira tinham apenas 1,5% de sua área protegida por unidades de conservação. Ao deixar a presidência, estávamos com 25%. Temer foi o primeiro presidente a olhar para o mar.

Esta omissão histórica permitiu que três dos maiores problemas que enfrentamos se proliferassem como pragas.

Primeiro, no litoral, as leis ambientais ‘não pegaram’. Tudo o que é proibido é feito às claras, com quase nenhuma interferência.

Segundo: a maioria das unidades de conservação do bioma marinho existe apenas no papel, são ficções, com exceção de meia dúzia delas. Visitei todas entre 2014 e 2016, portanto, falo com segurança. Não basta criá-las por decreto; é preciso dar-lhes condições para que sejam efetivas.

Terceiro e maior problema, a especulação imobiliária.

Ausência de Cumprimento das Leis Ambientais

Apesar de praias, dunas, falésias, mangues, restingas, costões e mata atlântica serem protegidos pela legislação, todos são Áreas de Preservação Permanente (APPs), raramente vi esses espaços serem respeitados.

Além disso, durante minhas constantes viagens pelo litoral, duas coisas ficaram claras: o equívoco das casas pé na areia; e, de maneira idêntica, a vontade de ter vista para o mar.

E por que usei o termo “equívoco” ?

Porque nas praias reina o que os acadêmicos chamam de “equilíbrio dinâmico”, cujos elementos atuantes são forças naturais como ventos, correntes, ondas, marés e ressacas. Enquanto eles agem livremente, as praias se movem, mudam em certas ocasiões para voltarem ao seu lugar natural em outras. A ocupação humana dessas regiões ocasionou o rompimento desse equilíbrio, com consequências e impactos sempre negativos para o ambiente costeiro e a vida marinha. E isso acontece desde antes do aquecimento ser uma evidência inquestionável. Portanto, é “proibido ocupar praias”. A ocupação deve ocorrer para além da areia, bem além, mantendo assim o equilíbrio dinâmico.

Essas duas obsessões também são responsáveis pela ocupação de mangues, restingas, costões, dunas e falésias, bem como pela perda de parte significativa da mata atlântica. E isso acontece em nome de ter vista para o mar.

Contudo, esses locais são alguns dos ecossistemas marinhos mais importantes. Mangues, restingas e dunas ajudam a manter a integridade da costa, além de os manguezais serem o segundo berçário mais importante, e os costões sustentarem uma comunidade biológica rica e complexa.

Além disso, um hectare de mangue sequestra entre 4 a 5 vezes mais dióxido de carbono da atmosfera do que a mesma porção de floresta tropical.

Por isso, foram lançados programas globais que, infelizmente, foram ignorados no Brasil, os quais investem em vários países para mitigar as mudanças climáticas por meio da restauração dos ecossistemas costeiros e marinhos.

O replantio é inteiramente financiado por fundos ESG e fiduciários, com o apoio da UNESCO e de grandes ONGs internacionais.

A ineficácia das Unidades de Conservação Marinhas

As unidades de conservação do bioma marinho seriam uma proteção extra para esses ecossistemas. No entanto, há um grande problema: nelas faltam equipes e equipamentos. A maioria não tem sequer um barco para fiscalizar. As poucas que têm barcos não têm orçamento que lhes permita comprar combustível.

Para encerrar, muitas destas UCs, apesar de terem mais de 20 anos desde a criação, ainda não conseguiram desenvolver seus Planos de Manejo, documento obrigatório pela legislação do SNUC e fundamental para orientar os usos em cada uma.


Corte de mata atlântica (protegida por lei), casas em enconstas e topos de morro (idem), em Ubatuba, e tudo em nome de ter vista para o mar. Foto: João Lara Mesquita

Especulação Imobiliária

Quanto à especulação, o problema reside na sua avassaladora força financeira. Partes dos setores da construção civil, do turismo, além de investidores inconsequentes, por vezes, financiam campanhas de prefeitos.

Uma vez eleitos, eles aguardam as revisões dos Planos Diretores para pagar a conta, permitindo todas as irregularidades mencionadas, como aconteceu este ano em Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião, Caraguatatuba, e Ilha Comprida; ou mesmo em capitais como Florianópolis, entre outras.

Assim, MapBiomas revela que entre 2001 até 2016 os manguezais perderam 20% de sua área, em parte por causa da expansão urbana.

No entanto, os manguezais começaram a ser desmatados muito antes desta pesquisa, e até hoje não sabemos o quanto foi perdido.

O processo de extirpação em massa começou no Nordeste nos anos 70 para criar um uso alternativo às áreas de mangue abandonadas pela atividade salineira. Em 1994, a estabilização da moeda desencadeou uma nova onda de investimentos no setor. A carcinicultura explodiu no Nordeste.

Do Piauí até o sul da Bahia, milhares de hectares de mangues foram extirpados para as criações de camarão. Com tudo isso, fica claro que não há planejamento no litoral.

A ocupação é desordenada, e o superadensamento em áreas frágeis e sem infraestrutura sequer para a população é um fato. Depois que uma praia entra na moda, uma horda de turistas nacionais e donos de casas de segunda residência invadem o local. Isso acabou de acontecer no Piauí, devido às boas condições para o kit surfe.

Já soube de investidores que foram para lá comprar terrenos e praias inteiras. Tenho pena do que acontecerá ao menor litoral dos 17 Estados costeiros.

E o que acontece nestes casos? Bem, a infraestrutura já deficiente entra em colapso. Nenhuma cidade do mundo está preparada para aumentar sua população em dezenas de vezes durante as férias ou feriados.

O resultado é o lixo espalhado por todo canto, rios transformados em esgotos a céu aberto desaguando no mar, trânsito infernal, poluição atmosférica, caos, enfim.

Assim, aos poucos, a beleza do litoral deu lugar ao concreto armado. Casas, condomínios e resorts foram erguidos em praias, em cima de falésias ou dunas, nas encostas e topos de morros, além de restingas, mangues e até mesmo em costões.


Ocupação desordenada em Garopaba. Foto: João Lara Mesquita

Consequências e Soluções

Os problemas não se resumem à feiura ou ao avanço da erosão em 60% da costa brasileira, ameaçando milhares de pessoas.

Acontecem tragédias frequentes, como a do Carnaval deste ano, quando 65 pessoas foram soterradas pela lama.

Esta tragédia é inaceitável sob qualquer ponto de vista. São Paulo é o estado com o maior número de habitantes em áreas de risco, com mais de 1,5 milhão de pessoas, segundo o estudo “População em Áreas de Risco no Brasil” do IBGE.

Apesar disso, os dados oficiais são ignorados por prefeitos, pelos governadores do estado e pelo governo federal.

O poder público só aparece quando calamidades acontecem. Em seguida, volta à omissão.

Se não, vejamos: segundo o Poder360 de 22 de fevereiro, Marina Silva, ao sobrevoar as áreas atingidas pelas chuvas na Vila Sahy, afirmou que “os eventos climáticos extremos já são uma realidade”.

Como assim? Os eventos extremos já eram uma realidade 12 anos atrás, quando aconteceu a desgraça na região serrana do Rio, em 2011, considerada a maior catástrofe climática do Brasil, provocando mil mortes e deixando 30 mil desabrigados!

Mas, pasmem, Marina declarou em seguida:

“Vamos pensar em ações em todo o tempo, não só quando houver emergência, criando sistemas de alerta efetivos, criando cultura de alerta para a própria população, sistemas de fuga, processos que sejam planejados.”

Ora, vamos pensar em sistemas de alerta? Por que não planejar e prevenir? Assim, desde que assumiu, isto foi tudo que Marina disse em relação à zona costeira.

Foi por improvisações sistêmicas que, em 2022, ocorreu uma nova tragédia em Petrópolis, deixando mais 4 mil desabrigados e 235 mortos.

Para não falar nos dois desastres no litoral do Rio, em Angra dos Reis. O primeiro, em 2010, matou 27 pessoas. O segundo, em 2022, mais oito.

Um ano antes, em 2021, o sul da Bahia também foi vitimado, deixando 20 pessoas mortas e mais de 31 mil desabrigados.

Em setembro deste ano, o Rio Grande do Sul foi a vítima, com 50 mortes e centenas de desabrigados.

Agora, esquecendo as mortes por um segundo, o ônus da improvisação, segundo dados do Tribunal de Contas da União entre 2013 e 2022, custou ao governo federal R$ 13,4 bilhões em recuperação e apenas R$ 5,9 bilhões em prevenção.

E Marina, diz agora que vai pensar em ações para alertas? Por que não fazer como no governo Lula UM, quando a prevenção e o combate ao ilícito conseguiram uma expressiva redução no desmatamento da Amazônia?

Isso demonstra a falta de visão sobre o litoral. Por acaso, o aquecimento global, aumento do nível do mar e eventos extremos são fatos novos?

Entretanto, assim como Temer foi exceção à regra, é preciso fazer justiça ao menos a um ex-ministro: Zéquinha Sarney, por duas vezes no cargo, uma no governo FHC e outra com Temer. Com ele, e somente com ele, a agenda ambiental marinha e costeira avançou.

Não fosse essa visão primitiva e indiferente sobre a questão do litoral mundo afora, o governo saberia que, devido às suas qualidades excepcionais, surgiram programas mundiais que financiam o replantio de manguezais na Ásia, África, Oceania e nas Américas do Norte e Latina.

É imperativo que a legislação seja obedecida, e, para isso, é preciso fiscalização constante, que inexiste. O Ibama, o ICMBio, além das Polícias Ambientais, não têm efetivos, ao mesmo tempo em que não há vontade política.

Infelizmente, o mar e a zona costeira não sensibilizam como a Amazônia. E sem a pressão da opinião pública, prevalece a inércia.

Por causa disso, em 60 anos de apropriação, que começou nos idos dos anos 50 quando o recebemos ainda prístino após 400 anos de ocupação de caiçaras e nativos da costa, o litoral se deteriorou ao ponto de hoje, parte considerável do espaço lembrar um pardieiro, uma espécie de cortiço das classes médias alta e alta.


Ocupação de falésia, em cima, e restinga, embaixo, Trancoso. Tudo proibido, ambas são áreas de Proteção Permanentes. Foto: João Lara Mesquita

Eu me recuso a aceitar a pegada brutal no litoral que minha geração deixará para as futuras. Não é possível que aceitemos tamanha desordem em apenas seis décadas, um átimo para um planeta com 4,5 bilhões de anos.

Pior ainda é a injustiça. Enquanto nós tomávamos conta do litoral, os seus guardiões por quatro séculos foram jogados para os sertões, perdendo o acesso ao mar e ao seu ganha-pão. Hoje, esta gente sequer é reconhecida como povos originários. Não há políticas públicas para eles, ao contrário do que ocorre com os indígenas ou quilombolas.

Voltando à especulação, ela também provocou a chegada maciça de peões para trabalhar nas obras civis que não param.

De maneira idêntica àqueles que antes de nós ocupavam a costa, também sobrou para essa massa os sertões, ou as encostas da Serra do Mar, onde seus barracos escalam os morros com brutal indiferença da maioria.

Este processo acontece desde os anos 50. Não à toa, Luís Antônio e Oldemar Magalhães, autores do clássico Barracão de Zinco lançado em 1953, clamavam:

Vai barracão
Pendurado no morro
E pedindo socorro
Barracão de zinco
Tradição de meu país
Barracão de zinco
Pobretão infeliz.

Este abandono das populações carentes e desassistidas nos sertões do litoral paulista e carioca foi percebido pelo crime organizado. Assim, nos últimos tempos, o PCC e o Comando Vermelho instalaram células de suas organizações também nestes locais, como bem sabe o Estado.

A prosseguir o vácuo, em breve passarão a cobrar proteção aos comerciantes, vender gelo nas praias, e a financiar vereadores para formar nas Câmaras municipais bancadas do crime, como fizeram no Estado do Rio. Este é outro risco que corre o litoral.

E tudo porque parte das autoridades e população não se importa com o abandono do mais importante ecossistema da Terra, o único planeta que tem a quantidade de água em forma líquida suficiente para permitir que a vida florescesse.

Não é por outro motivo que o bordão de Sylvia Earle, a maior referência científica quando se trata de mar e litoral, é: “Sem o Azul não haveria o Verde”. Em outras palavras, não adianta salvar a Amazônia se deixarmos os oceanos agonizantes como estão.

É igualmente por essa omissão que o secretário-geral da ONU se esforça ao buscar expressões e palavras fortes em seus alertas sucessivos, numa tentativa patética de sacudir a poeira que assentou sobre os governos dos membros da ONU.

‘A humanidade caminha para o suicídio coletivo’, disse numa primeira tentativa. ‘Estamos na era da ebulição’, falou meses atrás. Como não houve reação, Guterres elevou o tom: ‘Abrimos as portas do inferno’.

Se continuarmos a ignorar os sinais de exaustão da Natureza e agir apenas depois que catástrofes acontecem, somado à indiferença pela massa de gente que hoje habita os sertões das praias, não vamos jamais fechar as portas do inferno.

João Lara Mesquita é jornalista e editor do site Mar Sem Fim.


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