Do mito ao milagre
A relação que os cidadãos mantêm hoje com a política é mediatizada por práticas estéticas e tecnológicas, que modificam a qualidade de antigas práticas e rituais que definiam até então a experiência da política (Tiburi, 2021)
O saque da Esplanada permanecerá sendo um episódio vergonhoso da história política brasileira, em que um presidente, incapaz de se reeleger, fez de tudo, durante dois meses, para instigar seus apoiadores mais resolutos, até que os mais inflamados entre eles, seguindo ordens, foram desfigurar os símbolos da república moderna, tão desejada por grandes espíritos do século passado, com a intenção desavergonhada de arrancar do Brasil esse corpo (político) aumentando com que o país se dotou. Inúmeras hierarquias civis e militares acompanharam o desenvolvimento desse putsch, embora seja difícil entender de que forma ele teria sido bem-sucedido. Adeus, Bolsonaro!
A mitologia do poder conta com o sobrenatural. Bolsonaro foi envolto na aura da facada recebida durante a campanha de 2018. A pouco de volta ao comando do país, Lula está envolto no mistério daquele que soube reprimir, desde o início, um golpe de Estado medíocre. Isso acrescenta mais um capítulo à epopeia do Brasil mágico, louvado pelos guias turísticos. A Esplanada torna-se um lugar de memória coletiva mais famoso que nunca e os ambulantes poderão vender camisetas de manifestantes, como em Berlim se vendiam fragmentos do Muro … Como bom maquiavélico, Lula demonstra estar acima das circunstâncias: nada de excomunhão em massa, nada de caça às bruxas. Pode-se contar com a obsequiosidade dos traidores, que se sentem observados. No cotidiano, é certo que ele confiará apenas nos mais próximos – essa foi a mensagem enviada desde a composição do governo – e convocará o Congresso a votar de acordo com seus pontos de vista[mfn]Eu esbocei uma reflexão sobre a questão da confiança em meu artigo La fête Temer publicado na Sens public[/mfn]
Do desafio à indiferença
“Alguma coisa vai acontecer”. Essa frase me chocou em 2017, quando ela assinalava a incredulidade dos intelectuais frente a Bolsonaro e sua incapacidade de pensar o futuro do país. Desconectados? Em todo caso, o fato de se refugiarem em uma esperança mística me parecia inconsequente. Especialmente, porque ela era compartilhada pelas principais mídias e editorialistas. Essa alguma coisa foi então Bolsonaro, impossível de ser batido diante do linchamento midiático da esquerda e da incapacidade sociológica das elites de fazer emergir um representante de seus interesses, capaz de arregimentar uma maioria popular sob seu nome. O prestígio intelectual já não vendia mais e Haddad foi duramente vencido por um obscuro deputado populista de extrema direita. E então, todos os dias, alguma coisa acontecia: durante quatro anos, as mídias de todos os espectros não encontraram nada melhor a fazer que comentar em grande escala os gestos do “Mito, inclusive aqueles de sua vida familiar intensa, contribuindo – cinicamente ou por pura ingenuidade – para o enraizamento de sua atitude política, em todo o país. Mas nós vivemos do espetáculo ao vivo – mais conhecido como live. Boas famílias reconhecem maus partidos e chegaram, portanto, à seguinte opinião:”esse senhor não tem educação – é um sem noção”. No Brasil, não há como escapar de uma avaliação dessas – a menos que seja interpretada apenas como uma provocação aos tolos. E isso quase funcionou por mais quatro anos.
Desconstruir sua política e silenciar sua agitação estéril era o melhor. Entretanto, apenas organizações externas aos jogos de poder o tentaram. A título de exemplo, a APIB, assim como organizações de favelas do Rio, optaram por articular com clareza lutas específicas e questões mais amplas – o respeito às culturas e ao direito constitucional como fator imprescindível à criação (ainda no início) da reivindicação por uma justiça transclassista.[mfn]Sobre o trabalho da APIB, eu encaminho o leitor ao Dossiê de Junia Barreto Voix Indigènes, Pistes pour un renouveau du Brésil (Barreto, 2022a) / Vozes indigenas; Trilhas para renovar o Brasil (Barreto, 2022b) e ao site da APIB ; sobre as iniciativas das favelas, recorre-se às contribuições de Roberto Ponciano (2021b) e, por exemplo, ao site Voz das comunidades, onde Rafael Costa publica as falas de Anielle Franco, nova ministra de Lula (Costa 2023)[/mfn]Trata-se de considerar como fator motriz a irredutível diversidade de situações, no sentido de elaborar abordagens micropolíticas capazes de assumir o princípio da diferença. Em outros termos, trata-se de uma abordagem qualitativa, baseada na necessidade dinâmica da compensação e não em uma simples igualdade quantitativa. Decorrente das políticas de cotas e da demarcação de terras, essa orientação poderia desencadear um vasto programa de descentralização, justificado pela análise fina de possíveis transformações, em diversos contextos do país. Em alguns casos, trata-se de dar mais apoio à formação profissional, para abordar a transição energética ou sair da monocultura. Outras configurações privilegiariam uma abordagem territorial, preservando biótipos de regiões inteiras, ao mesmo tempo que asseguram um desenvolvimento sustentável, ao exigir o controle da especulação financeira e imobiliária; ou mesmo, pautar uma drástica diminuição dos veículos individuais, em contexto urbano, através de investimentos massivos nos transportes coletivos.
Acordos suprapartidários, mesmo que parciais, seriam a condição para estabelecer uma fiscalidade nova e realmente diferencial, ao prever o aumento de uma taxa fiscal marginal sobre capitais fixos ou especulativos. Os principais beneficiários dos investimentos públicos são sempre os mais ricos: seus privilégios são garantidos pela confidencialidade dos negócios e pelo fato de que parte do orçamento público, em infraestruturas privadas de transporte, de saúde e de educação, aliviam consideravelmente seus gastos nesses serviços – o mesmo ocorre com as forças de segurança, que protegem os mais abastados de forma absoluta, mas defendem apenas relativamente os mais pobres. Tal reflexão permitiria pensar a fiscalidade em função do benefício diferencial às populações, ao incluir dimensões imateriais pouco levadas em consideração, até o momento, por abordagens baseadas em simples transferências financeiras centralizadas. Isso quer dizer que, desde o início do jogo, o Brasil poderia recomeçar a sonhar. Utópico? Não necessariamente. Em outro contexto, sem mencionar o combate às desigualdades, Patrick Artus se pergunta se a melhor política para financiar a transição energética, sem alimentar a inflação, não seria a de “controlar a inflação por intermédio de uma política fiscal flexível. Alguns impostos seriam aumentados, no caso de inflação, ou reduzidos, no caso de deflação, entre eles o imposto sobre a renda das famílias e a taxação do lucro das empresas” (Artus, 2023).
Concretamente, vendo o país ser ridicularizado, algumas cabeças pensantes se exilarem, os investimentos secarem e a impossibilidade de controlar o “capitão”, juízes começaram progressivamente a agir, particularmente o Supremo Tribunal Federal, cujos membros atuam como censores das ações do governo e esboçam, de acordo com os ventos que sopram, compromissos entre os poderes tentados a invadir suas prerrogativas constitucionais. De forma sucessiva, o STF autorizou a prisão de Lula, anulou os processos que o acusavam e acompanhou a gestão bolsonarista, antes de velar pelo bom decorrer das eleições. Com as operações contra o PT progressivamente encerradas e os processos contra Lula invalidados, a guerra aberta entre Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal tornou-se um ponto de tensão. Bolsonaro ainda conseguia nomear semanalmente dezenas de funcionários de sua escolha, mas precisava se articular, se justificar e desmentir, cada vez mais, suas recorrentes calúnias, perdendo terreno. Acuado pela Covid-19, acusado em relação à Amazônia, contestado pelo porte de armas, conspurcado pelos professores, ainda lhe restavam os evangélicos e os setores econômicos, bem servidos pelo ministro Guedes. Oportunistas, eles estão preocupados com a credibilidade do país, com a crescente miséria e até com suas próprias reputações, diante de clientes e correspondentes, acionando alertas e sinais vermelhos por toda parte. Quanto aos religiosos, esses não irão abandonar o presidente que tanto lhes queria bem, embora um grande número de fiéis não compreenda a política de forma clara. Lula é certamente o diabo – mas se ele ganhar, será graças à vontade divina! Nada a temer, a não ser alguns raivosos. Como prova, as sondagens mostram 80% de reprovação dos eventos de Brasília (IPSOS, 2023). Fora Bolsonaro!
Lula é o milagreiro que o Brasil mais precisava. A partir de agora, sua glória mergulha tanto nos mistérios do candomblé quanto nos da santificação cristã. Na noite do primeiro turno, enquanto seus conselheiros lhe vendiam uma vitória por nocaute, ele via como um sinal a necessidade de fazer campanha para o segundo turno e pronunciou um discurso verdadeiramente religioso. Anunciar uma conferência climática em Belém tornou-se uma ação de graças. O velho chefe começa a se converter em profeta. Temeroso de que o retorno de Lula conheça uma sorte análoga ao retorno de Churchill ou de Vargas, Bruno Meyerfeld comenta para o Le Monde:
Lula não prejudicou sua reputação de diretor cinematográfico genial. No dia 11 de janeiro, ele ofereceu às câmeras uma nova imagem de poder irresistível, do mesmo gabarito que aquela de sua posse, no dia 1 de janeiro, quando ele posou na entrada do Planalto, nos braços do cacique Raoni Metuktire. Aos 77 anos, o chefe da esquerda brasileira permanece o mestre inconteste da simbologia política (Meyerfeld, 2023b).
Algo realmente aconteceu! E o Brasil retorna a Lula, o Milagre – queiram os bolsonaristas ou não. O próximo milagre seria uma anunciação democrática que veria as diversas classes sociais e populações do país confraternizarem – uma festa da Federação, após um episódio autoritário abortado. Mesmo que esse não tenha sido o resultado do dia 8 de janeiro, Lula realmente merece a história na qual ele é um herói.
Desqualificar as eleições e as instituições
Sejamos claros, o modus operandi está muito datado. Supostamente, uma revolta popular daria um pretexto às forças armadas para intervir, instaurar um estado de urgência e suspender sine die o governo eleito. Esse esquema remete aos manuais insurrecionais que datam do final da juventude de Pelé, os mesmos anos sessenta que viram o auge das revoltas em massa e dos golpes de Estado militares – de Martin Luther King e das marchas contra a guerra do Vietnã, por um lado, e das ditaduras militares na Bolívia, no Brasil e no Chile, por outro. Guerrilha e contra-insurreição. Qualquer analogia com as revoluções árabes de 2011 seria equivocada: não se trata de colocar junto ao povo militares que serviram, por muito tempo, a um autocrata que se tornou senil – mas sim de convocá-los a sair da caserna, para aumentar ainda mais os privilégios de sua casta, bastante beneficiada durante o governo anterior. Afinal, não foi feito o anúncio de que 6000 militares, nomeados para funções civis, durante o governo Bolsonaro, deveriam reintegrar seu corpo de origem? Se ele houvesse sido bem-sucedido, esse golpe teria sido bastante similar aos putschs africanos – só que o Brasil, embora alguns pareçam esquecer, é dotado de um governo legítimo, eleito após uma competição eleitoral aberta e os brasileiros lutam, há mais de um século, para superar as sequelas da escravidão e vivem, como um pesadelo, o confisco das alavancas do poder por uma casta de milionários, mais dispostos a expatriar seus bens que a se solidarizar com seus concidadãos.
Por isso o fracasso da manobra. Ninguém entre os militares quis iniciar a ação. Mas, se os responsáveis pela manutenção da ordem em Brasília, que são próximos ao antigo presidente, estiverem na prisão, será possível comprovar sua cumplicidade ativa? Eles dirão que estavam sobrecarregados: ninguém deu a ordem de intervenção esperada pelos manifestantes. É possível reconhecer nas fotos dezenas de funcionários públicos que serão aposentados compulsoriamente. As forças da ordem agiram passivamente ao saque, antes que ocorresse a tardia intervenção dos batalhões de choque. Sem isso, o que teria acontecido? Mesmo que levantes houvessem acontecido em alguns cantões profundamente bolsonaristas do país, é difícil imaginar o novo governo caindo. Destinado a fracassar, esse início de insurreição ainda nos leva a pensar: as palavras de reconciliação de Lula, pedindo diálogo e respeito à constituição, ferem os militares convencidos de que a vitória lhes foi roubada por um conluio do Supremo Tribunal Federal com os analfabetos do Nordeste. O racismo é um cimento muito forte, mesmo que alguns pardos e indígenas sejam bolsonaristas.
O próprio Jair Bolsonaro se apresenta como um histriônico disruptivo e um anônimo antissistema, tornando mais palatável a identificação da pequena classe média urbana e branca com suas más maneiras e seu vocabulário de baixo calão. Sens Public editou, em 2020, um importante dossiê, Le neolibéralisme autoritaire au miroir du Brésil (Sauvêtre, Laval, e Dardot 2020). À luz da estreita vitória de Lula, é preciso compreender que os fatores do sucesso de Bolsonaro e os riscos corridos pela democracia brasileira ainda se fazem presentes: os autores apresentam tudo aquilo que é preciso saber sobre o aumento das desigualdades, sobre a fraca autonomia cultural das classes médias e sobre o fascínio pelo neoliberalismo doutrinário. Além disso, Ruy Fausto descreve as atitudes imoderadas de Bolsonaro, em 2019, com uma lucidez inquestionável. Abordaremos esse dossiê e o texto de Jesse Souza (2019b, 2019a), para compreender o conjunto de eventos que evoco aqui. Carregado pela onda antipetista nascida durante o segundo mandato de Dilma Roussef, que culminaria na prisão de Lula, esse homem sem qualidades adotou com habilidade os códigos do populismo. Além disso, sua linguagem grosseira simboliza uma franqueza estranha à classe política, mas se aproxima daquela que imaginaríamos presente em ordinárias cantinas militares – vestia-se sempre com roupas que o faziam parecer desengonçado e praticou, até o fim, exageros destinados a esconder o vazio de suas falas – quanto maior, melhor! Pagar militantes equipados de barras de ferro ou de pedaços de madeira para pegar um ônibus e tomar de assalto a Esplanada, em um domingo à tarde, significava contar com a doutrinação e a credulidade desses baderneiros e com sua cumplicidade, no mais alto nível – afinal, não seria suficiente contar com informantes e militantes, no seio da administração de Brasília, para criar a Festa da Selma – um grito de guerra, nas redes sociais.
Nos últimos debates eleitorais, mesmo tendo sido Lula o primeiro a sair do púlpito para se aproximar da câmera e entrar nas casas brasileiras, Bolsonaro levou com facilidade o duelo da presença física. Ele se permitiu agarrar o braço de seu adversário e impor assim uma simbologia de dominação. Em resposta, Lula decidiu permanecer em seu púlpito, desaparecendo um pouco das telas, enquanto Bolsonaro se exprimia. Ele, quaisquer que sejam as boçalidades ditas, colocava seu adversário em situação de subordinação, repetindo vulgares “Presta atenção, Lula”, sem economizar nas calúnias. Apesar de toda a sua experiência, Lula acabou por se deixar levar – exatamente o que desejava Bolsonaro. Incapaz de permanecer em seu programa presidencial, o antigo sindicalista apenas despertava: ele iniciou longos momentos de autojustificação, esgotou seu tempo de fala e deixou o palco para seu oponente. Se Bolsonaro tivesse preparado duas ou três declarações estruturadas, voltadas para o eleitorado ainda indeciso, teria levado a eleição. Ele foi o único autor de sua derrota.
É verdade que ninguém conseguia acreditar – naquele momento, talvez nem ele mesmo – que ele havia chegado tão perto de ganhar. Alguns dirão que Lula deve sua vitória à crença, insuflada por pesquisas imprecisas ou tendenciosas, de que Bolsonaro não tinha nem um terço dos votos. As alucinações geradas pelas pesquisas e a divisão geograficamente muito contrastada dos votos alimentaram a incredulidade de militantes bolsonaristas, nas regiões em que eles eram claramente majoritários, ou seja, grande parte dos centros urbanos, com exceção do Nordeste. Uma parte desses eleitores, alguns até pagos para agir, acredita que a vitória lhes foi roubada em plano nacional – viu-se na Esplanada cenas patéticas de militantes demandando justiça aos gritos, após terem acampado quase dois meses em frente às portas das casernas. Mas o sufrágio universal deu seu veredito, embora muito mal antecipado: não foram as elites cultivadas e fortemente divididas que expulsaram Bolsonaro, mas as massas dominadas de um povo desprotegido, que vive de expedientes e busca dignidade e respeito. O sorriso aberto de Lula, seus sofrimentos do passado, sua luta lendária pela divisão democrática, seu antirracismo visceral e suas propostas claramente orientadas para a educação, a promoção das mulheres e o respeito à legalidade fortaleceram a mobilização em todas as periferias: é hora de acabar com o desprezo!
Dois dias antes do ataque, a ex-presidente Dilma Rousseff avisava: na ausência de um movimento popular organizado, o novo governo será fraco. Expressão antecipada dos rumores de um golpe de Estado? A fuga para os Estados Unidos do presidente derrotado antecipava uma artimanha? Seu silêncio durante dois meses e o discurso do dia 30 de dezembro autorizaram e liberaram os organizadores de uma vasta mobilização nas redes sociais (Bolsonaro em Poder360, 2022). Destacando os resultados obtidos em seu governo, apesar das crises, Bolsonaro fazia a promessa de se sacrificar pelo Brasil e atribuía a si mesmo o mérito de inspirar seus sucessores. Isso significava que a partida não havia terminado? Alguns dias mais tarde, seus apoiadores passaram à ação com o apoio tácito das autoridades de Brasília.
A tentativa de insurreição não visava apenas Brasília, mas as refinarias de regiões bolsonaristas do país – essa tentativa contou com ampla cumplicidade interna, devido à ausência de qualquer convicção republicana dos funcionários e dos quadros. Esse aspecto não menos grave, não acarretará processos judiciais. Tendo em vista que os militares acompanharam de perto os acampamentos bolsonaristas (e chegaram até a impedir que fossem evacuados pela polícia), teriam sido suficientes dois dias de bloqueio no país, para que o estado-maior declarasse Estado de sítio, paralisando assim a constituição do governo eleito. Substancialmente, foi isso que declarou o ministro Flávio Dino, no dia seguinte à tentativa de golpe. Ele admite que a equipe de transição governamental foi ferida pela ausência total de cooperação das autoridades policiais, militares e do DF, para garantir a segurança da transição, em razão da inoculação de valores exóticos nas instituições de Estado (Dino 2023, 56’ – 59’ da conferência de imprensa). A missão dos manifestantes era iniciar um processo em que se reconheceria o “povo de direita”. A inação das tropas encarregadas de impedir o acesso às instalações do Congresso tornou a depredação inevitável. Era um convite para a intervenção militar. A chegada das tropas de choque permitiu controlar rapidamente essa situação de perigo institucional. Prova, dizem os ministros, de que as autoridades de Brasília estavam em conluio. Tratou-se certamente do terceiro turno da eleição. Um saque da Praça dos Três Poderes, uma semana após a gloriosa posse de Lula! Um símbolo claro da perda de autoridade das instituições.
Bolsonarismo, um fato social total
Essas constatações nos alertam sobre a perenidade da administração de milhares de pessoas nomeadas por Bolsonaro e sobre a infiltração da extrema direita nas empresas. Tomemos como exemplo um empresário de uma cadeia de lojas, que declarou apoio formal ao governo (ele tem senso de negócios): quantos de seus conselhos administrativos estariam ligados a grupos familiares que visam, sobretudo, tirar do país o essencial de tudo aquilo que é taxável? A discrição do empresariado usou, durante todos esses anos, o burburinho das redes sociais como fachada. A sociabilidade digital, tornada universal, segmenta a população em pequenos grupos de interesses, em ruas e em vilarejos. Os grupos de WhatsApp dão uma amplitude inédita aos menores rumores e informam a rede, a título “preventivo”, da menor presença inabitual. Daí uma desconfiança generalizada de tipo hobbesiana: homo homini lupus. Diante dessa desconfiança generalizada, o autor do século XVII conclui que a paz civil supõe que o poder de castigar seja confiado a um príncipe que goze de total imunidade (não sendo afetado pelo medo, ele permaneceria imparcial). O bolsonarismo cultivava um discurso desse gênero contra bandidos de toda espécie, que supostamente circulavam impunes na sociedade. Ele se via em posse do Bem, eis seu parentesco com um poder de tipo teológico. Numerosos espíritos de ambos os sexos foram vítimas dessa palavra de ordem, que nós já havíamos detectado há muito tempo. Quem tem desgosto pela corrupção é convidado a viver o Bem na esfera privada, a dar o exemplo e a afastar-se dos canalhas. Esse é o operador reacionário dominante. Mais que propriamente fascista ou corporativista, ele se apresenta como o moralismo face ao imoralismo. Tendo em vista as desordens onipresentes, esse operador retórico não é passível de contradição – sobretudo, quando o contra-argumento implica em apoiar um Estado de direito que, segundo eles, deixa crimes impunes, promove o aborto e destrói a família. Ao apontar as carências econômicas e de serviços de transporte (por exemplo), fingem esquecer o investimento público, a gentileza e a competência de milhões de funcionários, tanto de setores públicos quanto privados, e dizem não chegar a lugar algum sem a indicação de alguém.
Por Gérard Wormser
Traduzido do francês por Luiz Capelo
Bibliografia
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