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Parem de nos matar!
Roberto Ponciano

Imagem: Antonio Pele. Localização do grafite: rua Pacheco Leão, Rio de Janeiro

É extremamente difícil explicar a um estrangeiro o que acontece no Rio de Janeiro neste momento. O Brasil está sob o controle de um governo protofascista eleito depois de um golpe promovido por uma mídia oligopolizada por apenas 8 famílias, que fez uma campanha incessante de mentiras contra um governo popular de centro-esquerda. Campanha que não parou apenas com o impeachment de Dilma, foi concluída com a prisão fraudulenta de Luís Inácio Lula da Silva, numa condenação agora anulada pelas contundentes falhas judiciais e pela condução partidária do juiz Sérgio Moro e de uma turma inteira de um tribunal federal, o TRF4.


Esse clima de demonização da política levou ao poder, em Brasília, não só um protofascista, mas um criminoso, um lúmpen da política, Jair Messias Bolsonaro, e sua família, envolvida até o pescoço com a milícia do Rio de Janeiro. [Ver mais em “Bolsonaro é o chefe racista do lixo branco brasileiro”, de Jessé Souza]


Imagem: Direitos reservados
Caveirão da Polícia Militar em Jacarezinho. Observar o tipo de arma escondida e apontada para fora do veículo.



Bem, é fundamental explicar a quem é de fora do Brasil o que vem a ser as milícias. O Rio de Janeiro é um dos estados com maior contingente de negros no Brasil. Antiga capital da monarquia e depois da República, até a década de 50 do século XX, foi a cidade mais afetada pelo processo de abolição com exclusão social. No Brasil a escravidão só foi abolida em 1888, os negros, “libertos” de suas amarras, não receberam sequer um acre de terra, um centavo de indenização. Foram, em sua maioria, expulsos de suas fazendas e substituídos por migrantes europeus, num processo de tentativa de “embranquecimento” da população brasileira, que era majoritariamente negra.

[…] exterminar a população pobre e negra é POLÍTICA DE ESTADO não declarada no Brasil


Nesse processo de expulsão e branqueamento, a população negra foi expulsa para os morros da acidentada geografia carioca (daí o início da favelização do Rio), ou para as periferias. A migração para a capital chegou a números que ultrapassaram os 200 mil negros migrantes para a capital. Sem política social ou de emprego, a única forma de tratamento dada a essa população mergulhada na pobreza foi a repressão policial. Até o advento da Revolução de 30, com Vargas, o movimento trabalhista, incluída a maioria negra da população, era só um “caso de polícia”. Da década de 30 até 1964 houve algum avanço na proteção social do trabalho. Com o golpe militar de 1964, o movimento dos trabalhadores voltou a ser caso de polícia, e houve uma nova política deliberada do Estado com a criação de milícias paramilitares de extermínio, os chamados esquadrões da morte.


Desde então, exterminar a população pobre e negra é POLÍTICA DE ESTADO não declarada no Brasil. Na verdade, a milícia é o desdobramento final da política de extermínio inaugurada pela ditadura militar no Brasil, mas nunca cessada, mesmo depois da democratização. A democratização nunca chegou às favelas e periferias. Na favela, a ditadura é todo dia. Se a tortura foi “extinta”, foi só para a classe média branca que faz a luta política nas universidades. Nas favelas ela é prática cotidiana de interrogatório e intimidação, oficial e extraoficial das polícias no Brasil.

Na década de 80 houve a expansão do tráfico de drogas das favelas e a organização do crime em facções. Se o Estado brasileiro desde sempre esteve ausente nas favelas, e só se dirigia a elas para periodicamente realizar pogroms disfarçados de operações policiais, a situação se consolida, agudiza e se intensifica. Várias favelas eram berços operários e tinha sua situação econômica dependente das fábricas circunvizinhas. Com o processo de autonomação-toyotização da mão-de-obra brasileira, uma modernização precarizante – com retirada de direitos, fechamento de fábricas e destruição da proteção trabalhista – a população das favelas não deixou de crescer, mas viu suas condições sociais precarizarem.


Algumas favelas cariocas são cidades inteiras. Rocinha: 100 mil habitantes, Complexo do Alemão: 120 mil habitantes, Complexo da Maré: 140 mil habitantes, Jacarezinho: 40 mil habitantes. São verdadeiras cidades, apertadas em barracos espremidos e rua estreitas e vielas, onde a população carece dos serviços básicos do Estado. É uma mistura de êxodo rural descontrolado de uma ditadura militar que reprimiu a reforma agrária (o Brasil passou de 20% a 75% da população vivendo em cidades em apenas 5 décadas, sem nenhum plano e com os pobres migrando sempre para as favelas); precarização da mão-de-obra, péssima redistribuição e falta de direitos sociais. A favela é a nova senzala.


Este caldo: 1. Imensas populações oprimidas em guetos, com uma “guerra às drogas” que começa já derrotada por, na verdade, ser um projeto de retroalimentação de dois tráficos, o de drogas e de armas; 2. Organização do tráfico carioca em grandes cartéis, que passam a organizar e dominar o espaço como um Estado paralelo; 3. Milicianização da polícia. Dos três tópicos, deste imenso inferno a que está submetido a população carioca, as milícias merecem uma explicação à parte.


Superlive “Parem de nos matar!”. “Manifestação virtual denunciando a chacina do Jacarezinho – a execução brutal de 28 moradores da comunidade – como política de extermínio da população pobre e negra, disfarçada de operação policial.”



Como disse em parágrafo anterior, a história das milícias remonta aos esquadrões da morte, organizados sob a égide do Estado, protegidos pela ditadura militar. Os 12 homens de ouro da polícia carioca e a Scuderie Le Cocq eram organizações semioficiais, toleradas e incentivadas para promover o extermínio como política de “combate à criminalidade”. Com a fixação do tráfico nas favelas, essa política de extermínio achou seu “judeu errante”, o inimigo imaginário perfeito para ampliar e consolidar essa política de extermínio como indústria.


Se o tráfico domina o território para vender drogas, a milícia vende extorsão. A milícia é máfia, mas, ao contrário da máfia italiana clássica, que se organiza fora da polícia e a chantageia e organiza laços com ela através do suborno, a máfia carioca, a milícia, tem limites confusos com as polícias. 90% dos milicianos são policiais civis, militares ou bombeiros, muitos na ativa. É perigoso a qualquer cidadão carioca denunciar a milícia numa delegacia de polícia, este não saberá se estará vivo na semana seguinte, pois não sabe se aquele que o atende numa delegacia oficial do Estado não é um sócio protetor da milícia local. O medo, o pânico criado por uma propaganda insidiosa nas TVs (no Brasil, os programas policiais de TV são nazifascistas e pregam o extermínio), faz com que parte da população apoie as milícias. Elas estão infiltradas nos 3 poderes do Estado, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Temos vereadores milicianos, prefeitos milicianos, governadores milicianos, deputados e senadores milicianos, e, agora, até um presidente envolvido até o pescoço com as milícias. No condomínio do presidente da República, com relações fraternais e íntimas com ele, foram presas as lideranças da milícia no Rio e apreendidos 117 fuzis.

A milícia não é um Estado paralelo no Rio de Janeiro. É o Estado no Rio de Janeiro

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A milícia não é um Estado paralelo no Rio de Janeiro. É o Estado no Rio de Janeiro. Na configuração atual da República no Brasil é IMPOSSÍVEL COMBATÊ-LA. Teria que se reformar todo o aparato policial de cima a baixo. A questão é qual órgão do Estado faria isso, se até o MP do Rio assina embaixo da política de extermínio e faz vistas grossas para o fato de que a milícia, em paz com o Estado, domine e ocupe ostensivamente mais de um terço do território fluminense.


O Jacarezinho não é um ponto fora da curva. É a chacina mais ostensiva e brutal que aconteceu, de dezenas e dezenas de chacinas que acontecem todas as semanas no Rio de Janeiro. Os negros, os pobres, os favelados são o “judeu errante”, os moradores dos vários guetos de Varsóvia e os pogroms continuarão. De 45 a 60 mil jovens pobres negros são assassinados no Brasil todos os anos. A cada dez anos, morre todo o contingente da guerra do Vietnã no Brasil, um Brasil que, em tese, não está em guerra. Ou está? Uma guerra civil suja e não declarada contra sua população pobre e favelada.

Os 28 mortos da Senzala do Jacarezinho é a continuidade e a intensificação da guerra de extermínio contra a população negra e pobre, com requintes de crueldade no roteiro, já que a presença do presidente envolvido com as milícias faz suspeitar que a ordem tenha partido do Palácio do Planalto, como política aberta e declarada e palanque presidencial para 2022, necropolítica na veia. Para quem já matou 420 mil brasileiros, através de uma política coordenada de extermínio, ao negar vacina e lockdown, matar 28 é só mais uma página do nosso extermínio.


O apelo da população negra e favelada do Brasil ao mundo é seu lema, “PAREM DE NOS MATAR”!

Por Roberto Ponciano

Roberto Ponciano é militante do PT, escritor, mestre em Filosofia e mestre em Letras

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  1. Radiografia da tragédia , pela qual passam populações pobres das periferias e favelas. A ausência de políticas públicas que referendam estas populações empurram seus jovens para o trabalho degradado e para o tráfico, como alternativas de sobrevivência. Sitiadas nós guetos, espaços pouco urbanizados e violentos, controlados por facções do tráfico e milícias, as alternativas são muito limitadas. São muitos trabalhadores precarizado, pouco escolarizados e explorados pelo capital. Muito triste.

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