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Joseph Conrad e o Leste
Douglas Kerr

navio escola Benjamin Constant


Antes de partir pela primeira vez, Joseph Conrad sabia o que nações poderosas e interesses materiais eram capazes de fazer contra povos mais vulneráveis. Nascido Józef Teodor Konrad Nałęcz Korzeniowski, em Berdychiv, atual Ucrânia, em 1857, pertencia a uma nação, a Polônia, que não constava mais nos mapas. Seu pai, Apollo, escritor e polonês nacionalista proeminente, foi preso e exilado com a família por conspiração antirrussa, quando o filho tinha apenas quatro anos. Conrad teve então sua primeira lição sobre o poder do império e o preço do idealismo. A vida foi difícil e quando tinha apenas 11 anos seus pais já haviam morrido. Conrad nunca perdoou a Rússia imperial: “desde os primórdios de sua existência”, escreveria em 1905 “a bruta destruição da dignidade, da verdade e da integridade, de tudo que é fiel à natureza humana, tornou-se condição imperativa para sua existência”. Com 17 anos, o jovem Korzeniowski partiu, inicialmente como simples marinheiro e, em seguida, como oficial em navios da marinha mercante inglesa. Aprendeu inglês aos 20 anos e tinha a ambição de tornar-se escritor naquela que se tornou sua terceira língua.

Joseph Conrad
Imagem: Malcolm Arbuthnot, 1921

Em retrospecto

Seu primeiro livro, “A Loucura do Almayer”, foi publicado em 1985, sob o nome, já adaptado para o inglês, de Joseph Conrad. Por algum tempo, continuou sua carreira na marinha, antes de dedicar-se inteiramente à escrita. Escreveu lenta e constantemente, lutando contra prazos e ansioso com questões de dinheiro; seu trabalho foi frequentemente interrompido por agonizantes períodos de bloqueio artístico e doenças recorrentes. Atingiu sucesso comercial tardiamente. Conrad escreveu 20 romances, além de algumas das melhores ficções curtas do mundo. Muitos desses trabalhos remontam a lugares e pessoas que encontrou em suas viagens. No final da carreira, disse a um entrevistador que escreveu apenas “em retrospecto ao que viu e aprendeu durante os primeiros 35 anos de sua vida”.

A maior parte do atlas do mundo viajado por Conrad como marinheiro estava marcado pelas cores de impérios rivais – Britânico, Francês, Holandês, Português, Espanhol, Austro-húngaro, Alemão, Russo ou Otomano (havia também imperadores na China e no Japão). Navegou o Mediterrâneo e o Caribe e durante um curto período foi capitão no Rio Congo, trabalhando para a infame e gananciosa Sociedade Anônima Belga para Serviço no Alto Congo – uma experiência registrada em “Coração das Trevas” (1899), seu relato mais célebre.

Ainda assim, suas jornadas frequentemente o levaram a Leste, para o arquipélago Malaio, as Índias Orientais Holandesas (a Indonésia moderna) e a Austrália. Não foi oficial colonial, nem “planter” e, definitivamente, não foi um missionário: seu ponto de vista independente e verdadeiramente marginal enquanto marinheiro proporcionou-lhe uma perspectiva preciosa do oriente durante a era dos impérios. Em sua maioria, essas paisagens não eram belas.

Em 1886, Conrad foi naturalizado súdito britânico e foi leal a seu país de adoção. Por essa razão, e sem dúvida em deferência a seus leitores ingleses, isenta com frequência os britânicos de críticas quanto às práticas coloniais e comerciais europeias. Ainda assim, no início de “Coração das Trevas”, descreve Londres, o coração do império, como “um dos lugares mais sombrios do mundo”, um organismo inquietante e maligno lançando tentáculos gananciosos por todo o globo. No mesmo relato, Marlow, personagem recorrente que tece comentários em muitas de suas histórias, dá seu veredito sobre o sucesso global dos impérios europeus no final do século XIX. “A conquista da terra, que em geral significa tomar daqueles que possuem compleição diversa ou narizes levemente mais achatados que os nossos, não é nada agradável quando observada de perto.”

Missão civilizatória

Poucos a viram tão de perto quanto Joseph Conrad. É possível que estadistas liberais como W. E. Gladstone tenham levantado dúvidas em relação à expansão do império, mas esta parece ter tido um momentum próprio, conduzida pelas amarras de um capitalismo comercial, industrial, cada vez mais global. Para os britânicos, tudo parece ter sido mais uma questão de troca que de dominação política ou cultural e não teriam adquirido um império de maneira deliberada, mas, nas palavras cínicas do historiador J. R. Seeley, “como que inadvertidamente”. A maior parte das pessoas na Grã-Bretanha, como se queixa o imperialista Rudyard Kipling, sabia pouco sobre seu império. Seus benefícios econômicos eram apreciados (e provavelmente exagerados) e, para a maior parte dos Ingleses, parecia natural e correto que um povo tão avançado estivesse no controle de um vasto número de habitantes do outro lado planeta, povos menos desenvolvidos, menos modernos e menos capazes de cuidar de si.

Uma versão do Darwinismo Social persuadiu alguns de que povos orientais estavam em uma espécie de estado infantil, historicamente retrógrado e até geneticamente inferior. Para a maioria, essa mentalidade, influentemente analisada por Edward W. Said, palestino-americano estudioso de Orientalismo, tinha base em uma gama de suposições e preconceitos, não em um pensamento proveniente da filosofia política; para outros, no entanto, parecia justificativa suficiente para a atividade imperial. Além de lucrativo, o império podia ser visto como uma forma de fazer o bem, já que oferecia a pessoas simples e incivilizadas os benefícios da modernidade, como a medicina e um bom governo e, talvez, o vislumbre de algo superior – a mission civilisatrice.

O foco dos relatos feitos por Conrad sobre o Leste – assim como o da literatura colonialista em geral – é predominantemente europeu. Existem algumas descrições impactantes de personagens “Orientais”, como o esplendido chefe malaio, em “Karain: Uma Memória”, mas tais personagens são quase sempre subordinados ou figuras secundárias na cena em que um drama Ocidental – trágico, cômico ou satírico – se desenrola. Esse é de fato o tema da história de amor em “Lord Jim” (1900), em que o protagonista, um quixotesco jovem inglês, após uma série de fracassos no início de sua carreira, tenta redimir-se em um posto remoto de Patusan, em Sumatra ou talvez Bornéu, para onde fora enviado como agente de uma companhia de comércio europeia e onde assume uma espécie de papel de líder do povo local.

Patusan é o palco do desenrolar do drama de Jim (trata-se, em parte, de um drama claramente racial. O personagem é frequentemente descrito com roupas de um branco ofuscante contra um fundo escuro). Jim reencontra sua autoestima dominando esse povoado isolado e deliciando-se com a admiração de seus habitantes. O fato de ter se tornado responsável por eles e de ter conquistado sua confiança é simbolizado por sua relação com a bela Eurasiana a quem chama de Jewel. Como todos em Patusan, ela admira o glamoroso estrangeiro e ele lhe assegura de que nunca irá deixá-la. Mas no clímax da história, quando Patusan é ameaçada por um bando de piratas europeus, a dúbia lealdade racial de Jim leva-o a cometer outro erro catastrófico, fazendo com que Patusan e Jewel paguem o preço de ter-lhe confiado seu futuro. Lord Jim não é exatamente uma história sobre a perversidade do colonialismo, mas sobre seu egoísmo. Para Jim, a proteção de Patusan e o amor de Jewel são oportunidades: ambos são reflexos da concepção heroica que tem de si mesmo, embora a mesma resulte, ainda que involuntariamente, em um desastre para todos. O personagem ama Jewel por seu fascinante exotismo – embora seja parcialmente europeia – tratando-a como a uma criança, ao mesmo tempo que lhe atribui nomes que sugerem sua condição de estimada propriedade. Nas palavras de Said, ela é seu Oriente.

Ideal de trabalho

Além dos pioneiros, dos líderes, dos criminosos e dos visionários, assim como Lingard, em sua trilogia Malaia, ou Kurtz em “Coração das Trevas”, Conrad estava interessado no que poderia ser chamado de funcionário executivo do império, nos obstinados trabalhadores que traziam o correio, reabasteciam estoques, mantinham o transporte e assim por diante. Como marinheiro, a tripulação de um navio era, de certa forma, um ambiente de trabalho e uma comunidade ideais. No final de “O Fim das Forças” (1902), há uma descrição contundente do já idoso e cego capitão Whalley, comandante de um navio a vapor em atividade na costa de Sumatra. Durante muitas viagens, a sociedade com o taciturno serang ou contramestre malaio manteve a segurança e a credibilidade do navio. Mas essa parceria interracial também estava comprometida: precisando continuar a ganhar dinheiro e sem poder se aposentar, Whalley mantém sua crescente cegueira em segredo, tornando o subsequente naufrágio algo inevitável.

Ao redor do mundo, Conrad viu e admirou pessoas que prosperavam no trabalho, mesmo suspeitando que seu ideal de serviço estava atrelado à lealdade a princípios sem base na realidade. Para essas pessoas, trabalhar era uma maneira de não pensar sobre os motivos e métodos do empreendimento imperial a que serviam. “Quando é preciso dedicar-se a coisas desse tipo”, diz Marlow em “Coração das Trevas”, “em relação aos incidentes superficiais, a realidade – a realidade, eu digo – desvanece. A verdade intrínseca resta oculta – por sorte, por sorte”.

“Tufão” (1902) é a instigante história de um navio em meio a uma tempestade nos mares do sul da China. Nela, é mostrado o heroísmo sem glamour da tripulação, lutando contra o vasto mar tomado por uma grande tormenta e, como de costume na obra de Conrad, o Leste testa os europeus, expondo suas qualidades, boas ou ruins. Os marinheiros britânicos saem-se bem em “Tufão”, embora tenham sido testados apenas pelo fato de o capitão Macwhirr, um cabeça dura, ter decidido, com o intuito de poupar carvão, ir de encontro à tempestade, ao invés de contorná-la. Enquanto isso, a “carga” do navio, 200 coolies chineses voltando para casa depois de anos de trabalho forçado, permaneceram trancafiados em um alojamento entre decks, chacoalhando por horas a fio com seus parcos pertences, vomitando e lutando em absoluta escuridão, enquanto o navio cortava a tempestade. Ao fim da viagem, Macwhirr faz a entrega de uma carga intacta, embora traumatizada.

Cronista de um mundo dividido

Aprendemos muito mais com Conrad que com Kipling, por exemplo, sobre a realidade econômica do imperialismo europeu. “Coração das Trevas” é sobre a extração de mármore e, fato que fica mais do que subentendido, escravos na África Central. A história da imaginária Republica Sul-americana de Costaguana, no romance mais ambicioso de Conrad, “Nostromo” (1904), é uma luta pelo controle de um recurso natural, a mina de prata de São Tomé. De fato, nem todas as empreitadas comerciais foram bem-sucedidas. Axel Heyst, o protagonista sueco de “Vitória” (1915), mora sozinho com um servo chinês em uma ilha remota no Mar de Java, cercado pelas comodidades da falida Companhia de Carvão da Zona Tropical, que tinha o intuito de tornar a ilha o posto central de um vasto império comercial. Ironicamente, é invadida por bandidos levados por rumores falsos sobre a existência de enormes tesouros ali.

Os piratas invasores em “Vitória” estão entre os vilões mais espetaculares de Conrad – Mr. Jones, homem diabólico que odeia mulheres, Ricardo, seu secretário sádico, e Pedro, um caçador com aparência de macaco. Heyst reconhece os três emissários gananciosos de outro mundo, um mundo que havia tentado deixar para trás. “Ei-los, os emissários do mundo exterior. Aí os tem: a inteligência maligna e a selvageria instintiva de braço dado. A força bruta, está lá nos fundos.”

Na verdade, a invasão da ilha sequestrada havia começado com a chegada da Companhia de Carvão da Zona Tropical. Pressentindo o perigo, Wang, o servo chinês de Heyst, encontra refúgio junto aos nativos do interior da ilha, os alfuros, e não voltará ou ajudará.

Essa é uma solução oriental para a confusão dos problemas importados do ocidente. Na ficção de Conrad, há pouco sobre o tipo de resistência anticolonial que a crítica pós-colonial ressalta com frequência. Na maior parte do tempo, habitantes locais mantêm a cabeça baixa, continuam a trabalhar e, se puderem, procuram manter-se fora do caminho.

O primeiro império em que Conrad viveu, o dos Romanov, apagou seu país do mapa e destruiu sua família. Os negócios mantidos por impérios europeus, no Leste e em outros lugares, possibilitaram que ganhasse a vida quando jovem e, mais tarde, forneceram uma vida inteira de memórias e de imaginação para o escritor. O Império, assim como a ideia de Orientalismo que o subscreveu, ampliou a diferença entre as pessoas, colonizadores e colonizados, Leste e Oeste. Conrad é um dos grandes cronistas desse mundo dividido, bifurcado e desigual. Mas, assim como qualquer grande escritor, produziu uma ficção que também não poderia deixar de mostrar o que todas as pessoas têm em comum. “Por que”, perguntava-se em “Um Registro Pessoal”, “a memória desses seres, vistos em sua obscura existência sob o sol, deveria expressar-se na forma de romance, a não ser pela misteriosa fraternidade que une, em um só grupo de esperanças e medos, todos os habitantes do mundo?”

Por Douglas Kerr

Tradução: Clara Fernandes


Douglas Kerr é pesquisador e professor honorário de literatura inglesa na Universidade de Hong Kong

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