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Testemunhos da Guerra em Gaza
Oleg Muschei

Familiares que permaneceram em Gaza. Fonte: Acervo pessoal

Quanto vale uma vida humana? Esse valor é mensurável? Há critérios que determinam se uma vida tem maior valor que outra? 1.200 mortos e em torno de 240 sequestrados equivalem a mais de 30.000 mortos? Não há respostas certas ou definitivas para essas questões, mas Oleg Muschei fornece uma alternativa para sairmos dessa aporia. Uma vida pode ser mensurada pela quantidade de outras vidas que ela tocou, pelos familiares, amantes e amigos que deixou. Nesse contexto, a tragédia humanitária que se acelerou a partir dos eventos de 7 de outubro tem dimensões colossais. No final, são todos seres humanos cuja morte acarreta dor e ausência. Optando por trabalhar pela consciência e pela humanidade, Oleg se engajou na campanha de prevenção ao suicídio na comunidade palestina-americana na cidade de Sacramento, nos EUA. Em seu trabalho, recolheu testemunhos de dois palestinos que perderam familiares no atual conflito. O texto a seguir foi escrito a partir dessa experiência.

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Como natural da Europa do Leste, fui profundamente afetado pelo conflito na Ucrânia. Para mim, foi mais do que uma guerra externa; foi como se se tivesse aberto um campo de batalha interno, onde o meu espírito lutava pelos valores que os ucranianos defendem, não só para o seu próprio país, mas para toda a Europa e o mundo livre. No entanto, no 7 de outubro de 2023, esse sentimento de luta rapidamente se transformou em culpa. Eu me peguntei como poderia me considerar um defensor dos direitos humanos, da liberdade e de todos os valores fundamentais se ignoro o sofrimento de outros povos e me concentro em apenas um? Percebi que, embora cada sofrimento humano seja único e complexo, ele tem a mesma origem e gera as mesmas consequências. Fui então confrontado com uma escolha: alargar o meu empenho na defesa desses valores em que tanto acredito, não só para os ucranianos, mas para todos os povos devastados pela guerra, ou desistir e viver na ignorância. Apesar da tristeza que eu sabia ser inerente a essa devoção, optei pela consciência e pela humanidade. Com isso em mente, envolvi-me numa campanha comunitária de sensibilização para o trauma de guerra como forma de prevenir o suicídio na comunidade de língua árabe de Sacramento, nos EUA. Entrevistei palestinos-americanos nos Estados Unidos que perderam familiares na guerra atual. Até o momento, recolhi os testemunhos de duas pessoas que perderam numerosos familiares em Gaza. Ambos cresceram na Faixa de Gaza antes de se mudarem para os Estados Unidos para estudar. Eles continuam a ter muitos laços familiares na região.

Em seus testemunhos, ambos concordam que, embora estivessem “habituados a ter conflitos e guerras durante alguns anos” e que “o sofrimento existia“, não era da mesma dimensão que é atualmente. Além disso, como já não recebem notícias de seus familiares em Gaza, que “temem pela segurança das pessoas” porque “pensam que todas as redes sociais e mensagens são monitoradas“, as testemunhas não sabem dizer quantos membros das suas famílias morreram. Um deles diz que “a última contagem“, que fez há mais de um mês, “apontava que 32 pessoas” da sua família tinham sido mortas. O outro revela que 12 membros da sua família foram mortos por uma bomba quando procuravam refúgio na igreja de São Porfírio e que outro membro morreu devido à “falta de hospitais ou de equipamento hospitalar para tratar os seus ferimentos“. O que acrescenta dor à sua experiência de perda familiar é o fato de, devido às barreiras para chegar e entrar em Gaza, as testemunhas recordam os familiares mortos no atual conflito “como crianças” que viram e conheceram na sua última visita a Gaza, na melhor das hipóteses, ou na pior, sem sequer terem tido a oportunidade de os conhecer fisicamente.

As pessoas ultrapassaram aquilo a que chamamos de o limiar do sofrimento. E está piorando. E são o povo mais corajoso. Eles são resilientes e, quando estão na miséria, continuam a ser as pessoas mais felizes que já vi.

Quando se trata de descrever a vida dos palestinos deixados em Gaza, as minhas testemunhas escolhem palavras imbuídas de beleza e atribuem-lhes qualidades admiráveis. As suas histórias destacam-se das narrativas frequentemente demonizadoras veiculadas por muitos veículos de imprensa. Quando pergunto por que razão testemunham, um deles diz: “para que as pessoas saibam que são seres humanos normais, que ser cristão, muçulmano ou o que quer que seja não é um número, mas membros de uma família, e de uma família com filhos, cheia de sonhos e esperanças“. Ele afirma ainda que os palestinos são profundamente ligados à sua terra e que desejam permanecer nela e desenvolvê-la. Esse sentimento é partilhado pela segunda testemunha, que afirma que, apesar de “as pessoas terem ultrapassado aquilo a que chamamos o limiar do sofrimento“, elas continuam a ser “o povo mais corajoso e mais feliz” que alguma vez viu. Acrescenta mesmo que ele próprio só experimentou “o sentimento de pertencimento a um lugar onde nos sentimos em casa” em Gaza, mesmo que isso tenha durado apenas “alguns dias na [sua] vida“. Os dois protagonistas são unânimes: a sua experiência em Gaza e com os palestinos locais não tem nada a ver com política ou com o conflito em geral. Os habitantes vivem a sua vida e encontram a felicidade, apesar das condições de cerco que moldam o seu ambiente.

Nós nos encontramos em situações como essa, em que temos de falar em nome deles, e, com toda a honestidade, eu me sinto um impostor. Quem sou eu para falar em nome deles? […] Não posso descrever, não posso explicar, não posso falar em nome deles, não posso dizer como sofrem, porque não sei. Nunca passei por isso. Não posso me colocar no lugar deles e falar com franqueza. Posso dizer a vocês o que sinto, posso dizer o que isso faz comigo. Posso dizer, de certa forma, informações em segunda mão que recebo deles, mas não posso dizer mais do que isso.

Os testemunhos que pude recolher revelam uma mistura profunda de nostalgia do passado e de ansiedade em relação ao futuro, enquanto os protagonistas enfrentam um presente cheio de incertezas, onde se sentem impotentes, como se estivessem “presos num sonho“. A guerra atual mergulha-os num sentimento de “perda de si“, uma sensação de “morte enquanto vivo“, alimentada pela “culpa da sobrevivência” enquanto outros se perdem. Essa experiência persegue-os diariamente e os confronta com questões existenciais, tais como a forma de apreciar a vida ou de prestar homenagem aos que morreram. Quando tentam testemunhar sobre os que pereceram no conflito, sentem-se como impostores, incapazes de exprimir adequadamente o seu sofrimento.

Nessa situação, acabamos por preferir a morte à vida. Não há comida suficiente, não há abrigo onde se possa estar seguro, não há igreja, não há edifício das Nações Unidas, não há escola. Há pouco ou nenhum equipamento médico, não há acesso a médicos ou hospitais. Não há nem comida e água. A água é sempre um problema e até bebem água do mar. Todo mundo está doente. São condições miseráveis e muitos preferem morrer a viver nessas situações. Sobretudo porque não há fim à vista e tudo está completamente destruído. É uma situação muito sombria e triste, e eles não sabem se vão sobreviver.

A sinceridade das pessoas que partilharam as suas histórias me deixou profundamente impressionado. Devo admitir que não tinha previsto até que ponto isso as colocaria numa posição desconfortável, até mesmo frustrante e dolorosa. Também me confidenciaram que as conversas com os seus entes queridos ainda vivos em Gaza, por muito raras que sejam, giram em torno de “táticas de sobrevivência“, de um “modo de sobrevivência diário“. Nessas condições de pesadelo, é desolador constatar que “muitos preferem morrer a estar vivos“. Isso é muito mais injusto porque as famílias de Gaza não gostariam de nada mais do que “viver em pé de igualdade, ter direitos, não sofrer com a ocupação e criar os seus filhos e sua família“.

Como todas as outras famílias de Gaza, tudo o que querem é viver em pé de igualdade, ter direitos, não sofrer com a ocupação e criar os seus filhos e a sua família. Ser livre e viajar, sabe, de Gaza para a Cisjordânia e vice-versa. Como qualquer outro ser humano.

Para concluir, espero fervorosamente que os palestinos ainda presentes e vivos em Gaza encontrem refúgio e alcancem finalmente a paz. Ainda que o fim do seu sofrimento possa não estar tão próximo como eu gostaria, ao menos um fim definitivo para um futuro de paz incessante, abstenho-me de propor soluções, de tomar partido ou de fazer acusações. O meu único apelo é à paz e à empatia humana. Espero que todos sintam a urgência de criar um mundo onde cada ser humano seja inquestionavelmente valorizado de forma igual. Devemos recordar que, atrás de cada estatística, existe uma vida, uma história e aspirações a um futuro melhor. Cultivando a compaixão e promovendo o diálogo, podemos ajudar a criar um mundo onde todos, independentemente da sua origem, possam viver com dignidade e segurança.

Oleg Muschei
É estudante da Sciences Po, em Paris, e faz intercâmbio com a University of California, nos EUA. Atualmente, faz estágio na Refugee Enrichment and Development Association, onde trabalha com os refugiados provientes do Oriente Médio.

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