Acampamento Luta pela vida, Brasília, 2021. Foto: Fernanda Paixão
Introdução
A mobilização nacional “Luta pela Vida” ocorreu com um grande acampamento em Brasília/DF entre 22 de agosto e 28 de agosto de 2021. A mobilização foi organizada pela APIB em conjunto com todas as demais organizações de base. O acampamento reuniu 6 mil indígenas de 176 etnias e teve como objetivo reivindicar os direitos dos povos indígenas e promover a mobilização diante dos constantes ataques às garantias de direitos dos povos originários durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. Os participantes acompanharam o julgamento do processo do chamado marco temporalno Supremo Tribunal Federal (STF), que definirá o futuro das demarcações das Terras indígenas. O julgamento da tese do marco temporal analisa o direito dos indígenas de reivindicar as terras ocupadas somente a partir da data da promulgação da Constituição Federal de 1988. O STF avalia também se o reconhecimento seria válido depois do término do processo de demarcação pela FUNAI.
Liderança Fabiano Awa Mitã, cacique Awá Tenondegua e cacique Anildo Lulu Awarokadju. Foto: Fernanda Paixão
No dia 09/09/21, o STF, após sucessivas interrupções, deu início à leitura de votos da tese do marco temporal. O primeiro voto foi proferido pelo ministro Edson Fachin, relator do recurso, perante o plenário da Corte. O relator votou pelo provimento do processo, julgando não proceder a tese do marco temporal. O voto do relator defende a tese de um compromisso constitucional com a garantia dos direitos fundamentais dos povos originários presentes no território nacional mesmo antes do surgimento do Estado brasileiro. Já o ministro Nunes Marques deu seu voto favorável à tese do marco temporal, abrindo divergência em relação ao voto relator. O julgamento segue suspenso, após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e ainda não tem data certa para ser retomado.
Entrevistas com caciques e lideranças indígenas que participaram do Acampamento de vigília pelo julgamento do Marco Temporal no STF (Brasília/DF, 22/08/2021 a 11/09/2021)
Cacique Darã
Cacique Darã. Foto: Fernanda Paixão
Sens Public: Estamos abrindo o microfone a vocês, lideranças indígenas, para que expressem as razões pelas quais estão presentes hoje em Brasília neste movimento de luta por direitos.
A situação aqui do movimento dos povos indígenas começou primeiramente com a vinda a Brasília de 12 pessoas para verificar a situação na Câmara de Deputados sobre a tramitação do PL 191 e do PL 490. Depois a gente voltou pra base e viemos de novo com 60 guerreiros sem estrutura nenhuma. Fizemos um chamado para outras regiões e organizações que nos apoiam e então viemos com mais de 3000 indígenas para o acampamento pela vida. Assim, agora em 2021 o movimento passou a ter mais de 8000 indígenas no acampamento de vigília e agora a gente se mudou pra cá, onde a gente está agora. Então veio aqui o movimento da marcha das mulheres indígenas de várias regiões1Brasília-Funarte- acampamento da II Marcha das Mulheres Indígenas, Brasília, 07 a 11 de setembro de 2021.. Várias etnias estão aqui desde que começou lá em baixo [no acampamento de vigília, que foi transferido da região ao lado do Teatro Nacional para a Funarte]: Tupi-guarani, Krenak, Pancaruru, Pancararé, Pataxó, Kuni-ô e os Guarani-Kaiowá onde eles estão neste momento sendo vítimas de ataques dos fazendeiros. Estamos aqui para apoiar o movimento das mulheres indígenas junto com os nossos parentes da Região Sul, Sudeste, Centro-oeste e do Amazonas, porque temos que lutar contra este governo, contra essas pessoas querendo invadir o STF e querendo dar um golpe na democracia.
Nosso povo está sendo muito atacado pelos garimpeiros, os nossos parentes Yanomamis estão sendo atacados. O comando do PCC já está naquela região. Então é muito difícil de lidar e esse pessoal [apoiadores do Bolsonaro] tão aí não fazendo nada, só querendo destruir com direitos dos povos indígenas, a gente já foi roubado há mais de 500 anos atrás quando eles disseram que descobriram o Brasil. Ninguém descobriu o Brasil porque nós já existíamos aqui e aqui nós estamos e aqui vai continuar esta luta, com meu filho, com minha filha, assim como os meus netos que vão continuar com a luta dos pais deles, nós não vamos desistir.
Este pessoal no poder aí, logo no primeiro dia de mandato [Bolsonaro] ele já veio querer dizimar com os povos indígenas, ele criou o ódio e tudo que está acontecendo é tudo culpa dos jornalistas, da bancada evangélica e do atual governo que está aí. É um governo genocida, é um governo que não nega as palavras e que mata milhares de pessoas, mais de 600.000 pessoas foram mortas por Covid e não vemos ele se preocupar com o povo. E a gente se preocupa bastante porque ele está aí fazendo chamado para os ruralistas e fazendeiros para intimidar o direito de ir e vir, só que esse direito está dentro da Constituição Federal e ele quer fazer de tudo para dar o golpe, mas ele não vai conseguir. A informação de lá de dentro (não posso falar o nome) é que as pessoas que apoiam ele [Bolsonaro] tentaram invadir o STF e daí deu errado e eles não conseguiram e ali era o golpe, o golpe militar, então eles estão com raiva. Então eles fizeram as badernas e eles ficam nos culpando, fica jogando os fazendeiros contra o nosso povo indígena.
Nosso povo não tinha esse negócio de território. Eles não entendem o que é uma cultura, um costume, o que é a natureza para nós, o que é água. Eles não entendem porque é a natureza que dá a vida pra nós, ela que dá de comer a nós e é a mãe-terra pedindo socorro pra sociedade e a sociedade não está vendo a mãe-terra pedir socorro. Por isso quando você vê o cântico sagrado é porque a gente tá pedindo pra que Deus possa abençoar a mãe-terra, a mãe-natureza. Muitos de vocês e dos seus filhos não vê que vai chegar uma hora que a água vai secar e vai chegar uma época que ela vai acabar. A gente não tá preocupado com nosso território, mas com a vida do ser-humano. A gente prefere morrer para salvar o nosso povo, a nossa mãe-terra, a gente dá a vida para deixar o mundo melhor, para deixar a comunidade e a sociedade bem melhor. E esse governo não tá colaborando com ninguém, nem com os indígenas, nem com a sociedade porque ele quer matar e a sociedade não está vendo isso. Vamos lutar contra o preconceito, vamos lutar contra este Presidente, hoje temos mais de 170 povos diferentes aqui, estão chegando ainda quase 4.000 indígenas, então é interessante de ver essa multidão de parentes lutando pelo territórios deles, cada região tem um massacre de fazendeiros, a terra foi tomada, a terra foi invadida.. tudo porque o governo quer matar o nosso povo.
A PL 191 é a PL da morte, é inconstitucional. Ele [Bolsonaro] é pior que o Hitler e a sociedade não tá vendo e vai morrer mais gente se não tomar providência. Ele não tem amizade com este país, por que não chegou a vacina mais cedo? As doses de vacina estão todas pra trás, tudo muito complicado… então vamos lutar até a última gota de sangue de nosso povo, a gente não vai desistir, enquanto tomba 1 ou 2 nascem mais 20 guerreiros, na nossa aldeia tem mulheres grávidas.. o que dói é que a sociedade lá fora não vê a gente sofrendo aqui embaixo de barraca, embaixo de lona, ainda bem que tem pessoas boas neste país que apoiam a causa indígena, traz uma água, traz uma cesta, que traz uma fruta, que é solidária, que ajuda divulgar.. Tenho 55 anos e nunca vi antes um governo que está acabando com os nossos jovens, com o nosso país, que está acabando com tudo. Então é isso que eu quero dizer: eu não vou conviver com essas coisas, eu vou lutar. Quero dizer para meus filhos que a minha parte eu fiz, é muito difícil o que está acontecendo no nosso país. Tanto nojo, tanto ódio… é isso.
Sens Public: É possível ter esperança frente a este cenário de hoje tão desastroso? E quanto à PEC sobre o marco temporal, qual a expectativa dos povos indígenas em relação a este julgamento?
Tá na mão de Nhanderú2Em guarani, “Nhanderú etê” significa “Deus Verdadeiro”. É o Deus de forma humana cujos olhos refletem a infinidade das cores. Onde aparece, reflete luz.. Tem o cântico do Guarani e do Tupi Guarani, misturado com o Terena, a gente pede muito e a gente concentra (…) porque o marco temporal é um retrocesso na causa indígena porque chega agora no século XXI e este governo entra e vem fazer como no começo, um começo que a gente não engole.. mas a gente está com muita esperança. Em 05 de outubro de 1988 tivemos as terras demarcadas, homologadas, retomadas e eles querem tirar o nosso povo destas terras, sendo que aquelas terras são originalmente nossas. Dentro da Constituição Federal, na página 60/61, lá também trata disso e tem que respeitar a nossa Constituição, porque senão aí qualquer um pode chegar no nosso território e desvastar tudo. O branco vai entrar para fazer uma barragem, ele vai fazer a ponte, é isso que ele quer impor. E é isso o que garimpo está fazendo, o grileiro invadindo a nossa terra é isso o que ele quer [Bolsonaro e partidários].
Cacique Anildo Awarokadju
Cacique Anildo Lulu Awarokadju. Foto: Fernanda Paixão
Tudo o que acontece hoje vem de todo o processo de transformação. Não viemos aqui para ficar rico, para desmatar, para destruir, como está acontecendo hoje. Nós viemos ajudar o branco para poder dar vida a eles, entendeu? Porque o mundo é capitalista, querem destruir, querem explorar, e dentro da terra indígena tem que preservar, então precisa orientar. Então tudo isso que ocorre hoje os mais velhos já previam, que ia chegar um tempo que a gente ia sofrer mais, não é que a gente não sofreu [historicamente], mas com tanta invasão neste país chamado Brasil que foi invadido… então este momento chegou novamente. Naquele tempo a gente não tinha limite, o tupi-guarani andava livre. Agora somos tratados como animais cercados. O nosso povo é assassinado, cria-se um ódio e aí vamos organizar os indígenas porque os coronéis estão aí disputando territórios. Criaram um sistema de serviço de proteção do índio, nos anos 40, criou-se a FUNAI por que se gostava de índio? Uma luta de resistência de tantos anos, tantos governos que entram e saem e nós temos que provar de alguma forma que este território é nosso. Nossa terra como povo originário. Tem lá o governo que entra e que sai, tem partidos, mas não somos partidários, temos parceiros e não partidos. Criaram um projeto para dar voz ao nosso povo, aí o político vai e não se cria nada, nem na esfera estadual nem na federal. Porque somos totalmente minoria hoje, dizimaram muitos, não temos poder.
Vemos a desigualdade de um povo originário, em um país cheio de imigrantes que foram acolhidos pelos povos originários, mas o povo originário mesmo não é reconhecido, é revoltante porque o japonês chega aqui é reconhecido, o francês chega aqui é reconhecido e nós povos originários não somos, temos que provar o tempo todo em todas as instâncias. Aí nós temos hoje um governo, não que os outros foram bons, mas este é pior. Já atacaram tudo e hoje no governo Bolsonaro estão atacando onde? Na Amazônia. Os rios secando, a produção de eucaliptos, plantação de laranja, plantação de cana, está tudo morrendo, estão matando os peixes no rio. Mas na Amazônia tem minério, tem um ecossistema rico enquanto que nós estamos sofrendo os ataques e enfrentando os problemas em nossa região [Sudeste]. O Bolsonaro tira os nossos direitos que são constitucionais, com o PL 490, ele quer tirar nossos direitos e ter a exclusividade para explorar todas as riquezas, junto com os ruralistas. Aí vem esse marco temporal, tem vários PLs e ainda o marco temporal da PEC e o governo se alia ao agronegócio para dar andamento aos projetos.
Um momento muito triste para nosso povo indígena, para a população em geral e para o Brasil. Todos os nossos direitos estão sendo jogados, toda essa violência e o golpe na democracia que foi conquistada e esse golpe no próprio STF, que é a Corte que protege todas as leis e eles estão sendo ameaçados. E esses caminhoneiros aí, que não são caminhoneiros porque são empresários, gente do agronegócio que estão aí com pistoleiros, fazendo pressão em cima da marcha das mulheres e às guerreiras e aos guerreiros que aqui estão. Eles estão com armamento pesado e as mulheres impedidas de fazer manifestação. Ontem assistimos por 1h40 minutos a fala do ministro Fachin. Qual a nossa leitura? Uma pressão enorme no STF que não devia ser ameaçado pelos pistoleiros do agronegócio, então é revoltante, este é o pior governo que está arriscando uma guerra civil neste país. A fala do Fachin ontem foi de muita cautela, eu não sei se ele não quis criar conflito entre os indígenas e o pessoal do agronegócio e as pessoas que tem o poder, então estão tendo cuidado, estão sofrendo pressão do governo e não teve o voto ainda. Então o pior governo que tem toda uma artimanha e que usa de seu poder executivo, de seus ministros, seus parceiros do agronegócio e os evangélicos e que fica fazendo pressão em cima de nossa população indígena que só quer salvar vidas no nosso planeta e planejar o futura da própria humanidade.
Do jeito que estão escrevendo esta história daqui a pouco esta história terá fim. Este é o recado, a sociedade tem que se levantar. Imagina um careca sem cabelo, que pega sol direto o que acontece? Vai queimar. As nossas florestas estão assim, estão precisando de proteção e se a sociedade não se levantar, logo será o fim, é preciso que a sociedade se levante e ajude os povos originários porque não estamos aqui pra ficar ricos. Aqueles que estão lá com Bolsonaro estão só preocupados com o dinheiro, eles perderam a maior riqueza que eles tinham. Não precisamos explorar madeira, arrancar ouro. O não-indígena pode ter esse quadrado aqui e ele consegue ter o seu dinheiro, já nós não temos o dinheiro, nós não vamos vender ela, nós vamos proteger ela. Onde a gente mora a gente vai replantando, recriando, porque venderam todas as nossas madeiras. Assassinaram os parentes da minha avó, de repente ninguém tinha mais tio, nem pai e só através dos netos é que a história segue adiante.
Cacique Awa Tenondegua
Cacique Awa Tenondegua. Foto: Fernanda Paixão
O governo está sempre interferindo no nosso modo de vida, cada vez mais quer diminuir o nosso território, nossa população, acabar com o nosso povo. Neste governo atual tá havendo muita invasão de terra, muita pressão dos ruralistas, é um momento que estamos sofrendo muito. As pessoas que não nos conhecem parecem achar que estamos cantando felizes, mas na verdade é um cântico, uma reza de nossa cultura, hoje queríamos estar cuidando da nossa terra e não estar aqui lutando por elas. Não podemos viver como fazíamos há 500 anos. Através das urnas metade da população mostrou o verdadeiro eu, um povo racista, que não gosta de negros, não gosta de índio, não gosta de LGBT e o brasileiro mostrou seu verdadeiro eu e eu fico muito triste com isso. Minha filha, que hoje tem 7 anos, não sei se vai ter terra para viver, não sei se vai ter um rio para pescar, uma mata para conhecer as ervas medicinais, então hoje estamos aqui para rezar, para abençoar, para colocar na cabeça dos ministros e dos senadores para darem um retorno pra gente. O pessoal do Bolsonaro estava fechando rodovia, protestando contra o preço do combustível, do diesel, mas hoje eles estão aí batendo palma para o Bolsonaro, isto eu realmente não entendo.
Cacique Anildo Lulu Awarokadju
Representante da aldeia Tereguá, localizada a cerca de 40 quilômetros de Bauru/SP, Anildo é presidente do Conselho Estadual dos Povos Indígenas de São Paulo, membro da coordenação executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e integrante da ARPINSUDESTE.
Cacique Awá Tenondegua
Cacique da Aldeia Tapirema, localizada na Terra Indígena de Piaçaguera/SP, em Peruíbe, litoral sul de São Paulo. A aldeia integra o bioma Mata Atlântica e ocupa uma área extensa – desde a praia até o sertão, sendo uma das comunidades indígenas responsáveis pela preservação daquela região.
Cacique Darã
Cacique da Aldeia Tekoa Porã do município de Itaporanga/SP, Darã é coordenador geral da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE). Há mais de 20 anos, participa das lutas dos povos indígenas no Brasil e é também embaixador da ONG Corrida Contra a Fome.