Jeanne Frantz, 2020
Se há uma escritora francófona conhecida por seu impudor literário certamente é Calixthe Beyala. Sua propensão a escrever sobre a sexualidade e o desejo das mulheres africanas levou Odile Cazenave (1996, 218) a assinalar sua originalidade frente não apenas a suas irmãs mas também a seus irmãos, uma vez que as cenas sexuais não são pontuais em sua obra, mas “tornam-se parte constituinte do texto e de seu exame da sociedade”. Jacques Chevrier (2001) nota que sua entrada na cena literária teve “o efeito de uma pedra arremassada em um lago” e que, com seu primeiro romance, C’est le soleil qui m’a brûlée, Beyala “abalou os hábitos do pequeno doce mundo da literatura africana feminina”. Segundo Chevrier, a escritura de Beyala, assim como a de Sony Labou Tansi, faz parte de uma “poética do obsceno”[mfn]Chevrier indica que, em outros autores, “por um lado, neles a evocação do sexo é sobretudo alegre, saudável, e, por outro lado, o obsceno neles é secundário. Vê-se que esse não é o caso nos romances de Sony Labou ou de Calixthe Beyala”. Sua análise é entretanto largamente consagrada aos romances de Sony Labou Tansi e não dedica nada além e algumas frases à Assèze l’Africaine de Beyala (2000, 38).[/mfn] que os distingue dos demais escritores africanos. O lado inovador de “criança terrível da literatura africana” (Asaah 2006b, 101), desse “fenômeno pós-colonial (Hitchcoot, 2006, I) lhe rendeu os epítetos de “romancista impertinente” (Asaah, 2007, 110), autora pornográfica e autora de escândalos. Seja em seus romances ou nas réplicas a seus detratores, Beyala não parece ter pudor algum. Analisando as questões e os problemas levantados pelos argumentos utilisados por Beyala para se defender contra as acusações de plágio (racismo, tradição oral na África, intertextualidade), Véronique Porra (1997, 27) destaca que sua obra fudamenta-se “essencialmente na exploração literária da provocação, tanto linguística quanto ideológica \[…] o escândalo e a provocação são uma grande parte de sua “propriedade comercial”. Do mesmo modo, Koffi Anyinefa (2008, pp. 464-465) afirma que Beyala é “incontestavelmente um dos escritores francófonos (mulheres e homens considerados) mais populares na França e nos Estados Unidos”, o que comprova que sua abordagem é uma “estratégia lucrativa”[mfn]A tese do escândalo como estratégia foi retomada recentemente por Éloïse Brezault no texto “Le scandale comme stratégie d’exotisme chez Calixthe Beyala et Léonora Miano: le rôle de l’institution littéraire face aux auteurs post/coloniaux” (2018).[/mfn]. Ainda que Beyala não hesite em brandir sua feminilidade e a apontar o racismo e o sexismo para denunciar as críticas de seus detratores, colocando-se assim como vítima, mesmo assim é útil se questionar sobre a recepção de seus livros e as declarações a seu respeito que insistem sobre sua identidade sexual e sua origem africana. O impudor literário que ela pratica, seja percebido positivamente ou negativamente, é frequentemente julgado em termos dessas características. O artigo que segue gostaria de tratar desse aspecto, efetuando um retorno ao “Affaire Beyala” e examinando o que é abarcado por sua escritura “ponográfica”.
Em 1996, após ter recebido o Grande Prêmio para romances da Academia Francesa pela obra Les Honneurs perdus[mfn]”As honras perdidas”, em tradução livre.[/mfn], Beyala foi acusada por Pierre Assouline de ter plagiado, em seu primeiro romance, passagens da tradução francesa de The Famished Road[mfn]”A estrada da fome”, em tradução livre.[/mfn] do autor nigeriano Ben Okri. Ele recorda que no mês de maio do mesmo ano, Beyala foi “severamente condenada por contravenção” (1996,7) pelos tribunais pelo Le Petit prince de Belleville[mfn]”O Pequeno príncipe de Belleville”, em tradução livre.[/mfn] (1992). Esse artigo de Assouline é a origem daquilo que se tornará o “Affaire Beyala”. Querendo desacreditar os Acadêmicos nesse assunto, Olivier Le Naire (1996, 134) escreve que: “até o fim, eles permaneceram obstinados a sucumbir ao charme das obras da bela romancista franco-camaronesa. Mesmo imortal, o erro é humano”. Se o erro é humano, as capacidades de sedução de Beyala parecem ser sobre-humanas chegando até mesmo, por sua beleza e pluma, a encantar os Acadêmicos. Pierra Assouline (1997, pp. 8-10) escreveu, em um outro artigo, que “a Academia Francesa assumiu o risco de aprovar um autor cuja obra é cheia de plágios”, precisando que “por razões que não parecem ser literárias, era preciso que fosse Beyala a escolhida, e ninguém mais”.
Impassíveis diante de seu charme, exótico apenas para os franceses, muitos críticos e autores africanos ficaram irritados, até mesmo ultrajados com a atitude da autora. Como notou Koffi Anyinefa(2008, 463), o “Affaire Beyala” suscitou diversas reações, mas os africanos parecem majoritariamente condenar Beyala mais por seu comportamento que acham ser extravagante e inapropriado do que pelo delito que lhe acusam de ter cometido”. Apoiando-se nos artigos de Assouline, o escritor camaronês Mongo Beti, autor do clássico africano Le Pauvre Christ de Bomba[mfn]”O pobre Cristo de Bomba”, em tradução livre.[/mfn] (1956), repete que o plágio é uma prática corrente em Beyala e acrescenta que é “um procedimento cínico, inaceitável porque é passível de respingar no conjunto dos escritores africanos de língua francesa e os descredibilizar frente ao público. A inquietude é legítima pois um caso apenas, onde está implicada uma personalidade muito midiatizada, pode certamente conformar alguns prejuízos e ter um impacto negativo no conjunto do corpus africano. Ora, a hostilidade de Mongo Beti para com Beyala é tanta que a polêmica parece ser um pretexto para despejar seu desprezo: “se ela excita alguma curiosidade em certos círculos, percebe-se que ela é ao mesmo tempo muito controversa e jamais evocada com admiração”; é “uma mulher cheia de si” que “não tem os meios de sua ambição” porque “para se tornar um grande autor é importante saber escrever”. No seu reconhecido estilo panfletário, ele adianta que “a obsessão da Academia Francesa com uma mulher tão jovem quanto C.Beyala é reveladora da psicose \[de descobrir um novo Senghor]”. Se ele admite jamais ter gostado de Senghor, Mongo Beti reconhece que o poeta-presidente, primeiro africano eleito para a Academia Francesa, em 1983, tinha ao menos uma vasta cultura, apesar de “sua subserviência face à França, potência colonial”. Beyala, ela não tem cultura e não sabe escrever, pois tudo o que ela deseja é “conseguir, muito rapidamente, ganhar bastante dinheiro, que falem de e ser aplaudida, basicamente”. Apenas sua singularidade — para não dizer sua sorte — de ser africana e mulher explica seu sucesso:
Não é todo dia que se pode exibir um fenômeno exótico na cena literária parisiense. C. Beyala goza do mundo quando ela pretende que ela é desejada porque é mulher negra. É o contrário. Ela é fonte de um duplo exotismo, que apenas lhe valhe uma atenção excepcional, dúbia e permanente. E é esse duplo exotismo que o editor [Albin Michel] está decidido a explorar.
Segundo ele, o racismo e o sexismo que Beyala invoca para se defender desvelam apenas “terrorismo intelectual”[mfn]Todas as citações de Mongo Beti foram retiradas do artigo “L’Affaire Calixthe Beyala ou comment sortir du néocolonialisme en littérature” (1997).[/mfn].
Ambroise Kom (1996, pp. 66-67) também acusa sua compatriota de arrivismo em um dossiê de Notre Librairie consagrado à autora, destacando que ela “não reage contra nenhum estereótipo, independente de quão infame seja” e que seu sucesso se baseia nas “múltiplas cenas ousadas que abundam em suas histórias”. Consequentemente, ele dá razão aos críticos que “não hesitam em acusar Beyala de se dedicar passionalmente a uma escritura pornográfica, técnica destinada a reter um público em busca de um erotismo e exotismo barato”. Ainda que Beyala apenas publique Femme nue, femme noire[mfn]”Mulher nua, mulher negra”, em tradução livre.[/mfn] (ao qual retornaremos) em 2003, a crítica faz dela uma autora do gênero pornográfico desde a aparição de seu primeiro livro. Em sua resenha de C’est le soleil qui m’a brûlée[mfn]”O sol que me queimou”, em tradução livre.[/mfn], David Ndachi Tagne (1990, pp. 96-97) já anunciava “um estardalhaço de muitos leitores africanos” por causa da representação dos homens e dos temas abordados no romance: “a masturbação e as diferentes cenas eróticas — que culminam no fim da obra com a cena em que a heroína mata seu amante ocasional — certamente ocasionarão reclamações escandalizadas por uma tendência pornográfica pronunciada”. Aquilo que ele interpreta como sendo um maniqueísmo na guerra dos sexos é, em seu entendimento, a maior fraqueza desse romance que tenta “conquistar outras vias e vozes, em ruptura com tradições e estereótipos”. Mas, ao contrário de Ambroise Kom, David Ndachi Tagne não nega a pertinência de um discurso feminista e indica que, além da polêmica, é preciso levar a sério esse romance e lê-lo por seu “tom novo”, sua “visão crua das realidades” e sua “angústia existencial”.
Para Ambroise Kom (1996, 71), a representação do homem nas histórias de Beyala não passa de uma caricatura de inspiração etnológica de uma outra época, pois “na África, o pretenso poder masculino é frequentemente uma encenação, o homem sendo, na maioria do tempo, apenas o porta-voz de um arranjo em que a mulher é o cérebro”. Rangira Béatrice Gallimore (2001, 97) menciona com justeza que, com um desejo de deslegitimar sua obra, “muitos censores da escritura de Beyala, como Ambroise Kom, recusam até mesmo de aceitar a existência da opressão sobre as mulheres na África”. O que incomoda sobretudo o crítico é que “Beyala acusa e mesmo condena o homem no lugar de levar em consideração os avatares de uma modernidade mal assumida aqui e ali, assim como as violências coloniais e neocoloniais” (Kom 1996, 68). Kom revela aqui que a verdadeira reprovação dirigida à autora não diz respeito à representação negativa do homem em geral, mais a do homem africano em particular. Nesse sentido, Beyala é duplamente culpada. Por um lado, por ter transgredido com sua escritura, mesmo que ficcional, os limites do pudor, daquilo que é julgado conveniente; e, por outro lado, por tê-lo feito às custas do homem africano, participando assim do imaginário colonial e do imperialismo cultural. Em uma entrevista também publicada vários anos antes da publicação de Femme nue, femme noire, Emmanuel Matateyou (1996, 605) apresenta Beyala como uma autora que “incomoda e inquieta” e que não poupa “certas sensibilidades”. Ele afirma, entre outras coisas, que “Maman a un amant[mfn]”Mamãe tem um amante”, em tradução livre.[/mfn] é um título que choca”, pois “não é normal que mamãe tenha um amante”, ao que Beyala responde que, se seu título fosse Papa est polygame[mfn]”Papai é polígamo”, em tradução livre.[/mfn], isso não teria chocado ninguém e que “o problema decorre do fato de que a África não está acostumada que certas palavras venham da boca de uma mulher”. As vivas reações que sua obra provoca de fato parecem ligadas à sua fala como mulher e, mais precisamente, como mulher africana de origem camaronesa que escreve para um público não africano. Mesmo Ambroise Kom (1996, 606 & 614), segundo quem Beyala e seus romances são totalmente ignorados na África tanto pelo grande público quanto pelos universitários, concede que “apesar das dificuldades econômicas que são um sério entrave para a leitura na África, é preciso admitir que o espaço e o tipo de personagem presente na obra de Beyala são uma clara ruptura com os textos africanos precedentes”[mfn]Em um artigo posterior, Kom (2001,43) confirma que o conteúdo dos romances de Beyala não corresponde às expectativas do leitor africano, apesar de sua consagração na França, lugar de canonização dos autores francófonos.[/mfn].
Do lado dos críticos anglófonos, especialmente nigerianos, sua denúncia da opressão da mulher é muito bem recebida, mais os meios para atingi-la e a liberdade sexual palpável em quase todos seus romances suscitam reações semelhantes: sua falta de pudor é deslocada. Segundo um crítico e professor conhecido na Nigéria, J. Ukoyen, a escritura de Beyala reproduz, sob a cobertura de um engajamento feminista que é, na realidade, um “feminismo auto-destrutivo”[mfn]Ver Ndidiamaka Ononuju Ejechi (2015, 530), que cita um trecho do artigo de J. Ukoyen, “Self-Destructive Feminism in Calixthe Beyala’s Les Honneurs perdus.[/mfn], a permissividade do modo de vida ocidental e os “problemas” (homossexualidade, lesbianismo, prostituição) que são a ele associados. Como o desvela Ndidiamaka Ononuju Ejechi (2015) e como o mostra Jacques Chevrier em seu artigo sobre o obsceno, as referências ao sexo são entretanto muito presentes nas obras de autores africanos conhecidos, como Sony Labou Tansi e Ahmadou Kourouma. No que diz respeito a Sony Labou Tansi, Chevrier (2000) escreve: “da anatomia humana, o romancista parece não reter nada que não seja orifício, boca, vagina, ânus e uma clara predileção pela “hernia”, metáfora de um pênis fora de proporção e que parece definitivamente substituir o pensamento para a maior parte dos ditatores de Sony”. A crítica não se ofende com esse estilo livre, observando sua originalidade, como se a obscenidade, ou seja, aquilo que ofende o pudor, fosse prerrogativa dos homens. Sobre esse tema, Madeleine Borgomano (1996, 74) nota que as audácias de Beyala, sua escritura às vezes brutal e provocante e sua linguagem crua e de baixo calão, « chocam muito mais porque a escritora é uma mulher, e as mulheres escritoras africanas adotam mais frequentemente uma escrita sábia, de acordo com a norma, quase o conformismo, apegando-se às leis da bela linguagem aprendidas na escola ». Além disso, Beyala escreve « aquilo que não se deve dizer » e « não se usa seus romances para tirar lições ». Aqui sem dúvidas reside outra explicação para a hostilidade que ela suscita: não apenas há muitas descrições corporais e cenas sexuais em seus livros, mais essas parecem gratuitas pois não carregam uma moral para as mulheres.
Capa do romance C’est le soleil qui m’a brûlée. Foto: Editor.
Paradoxalmente, o romance mais pornográfico de Beyala é aquele que veicula um discurso moralizante. Publicado em 2003, Femme nue, femme noire traz a intervenção de todas as práticas sexuais (felação, cunilíngua, orgia, sodomia, sadomasoquismo, pedofilia, voyeurismo, zoofilia) e a participação de todos os grupos: heterossexuais, homossexuais, mulheres, homens, garotas, garotos, bonitos, veios, velhas, velhos… até mesmo uma galinha! Segundo Nicki Hitchcott (2006, 29), o lancaçamento desse livro é estratégica na medida em que ela coincide com a moda francesa do “porno féminin”[mfn]Em francês no texto de Hitchcott.[/mfn] do início dos anos 2000, em que A vida sexual de Catherine M. de Catherine Millet é emblemático, e Beyala acrescenta seu toque de “exotismo”. O relato de Beyala é contudo muito diferente do de Millet, pois não é autobiográfico[mfn]À questão sobre “a parte de elementos autobiográficos no ‘eu'” da narração, Beyala respondeu: “eu jamais vivi a experiência de Irene Fofo, se é isso que você deseja saber” (“L’écriture dans la peau. Entretien avec Calixthe Beyala, Tirthankar Chanda 2003, 44).[/mfn] e situa-se no excesso e devassidão sem ser verossímil. Se as cenas de sexo são descritas de maneira “clínica”[mfn]Millet discorre sobre o tema: ” frequentemente eu recebo essa reprovação: meu relato não é suficientemente erótico, suficientemente excitante, ele é muito frio, muito clínico” (“Entrevue avec Catherine Millet“, Christine Palmiéri 2001, 18).[/mfn] em A vida sexual de Catherine M., elas são descritas de maneira tragicômica em Femme nue, femme noire. Por sua vez, Odile Cazenave (2003, 62) vê nesse romance uma “nova etapa” na obra de Beyala, uma exploração do “sexo em todos seus estados” para “falar do desejo em toda sua força” e uma escritura que “demonstra que o obsceno e o vulgar não são mais prerrogativas do homem e que a sexualidade é escrita múltipla na pluma de uma mulher”. Já no título Beyala convoca um homem célebre, que contudo não tem nada a ver com o obsceno ou o vulgar: Léopold Senghor, Acadêmico. Além de retomar um dos versos famosos de Senghor em seu título, ela cita na epígrafe a primeira estrofe de “Femme noire” (Sédar Senghor, 1990, pp.18-19), assinalando desde o início do jogo a relação intertextual com o poema de Senghor. Tudo acontece como se ela dissesse: pronto, eu cito minhas fontes, vocês estão contentes? A alusão a seu primeiro acusador, Pierre Assouline, dá-se também por intermédio da descrição de sua personagem principal, Irene Fofo, adolescente de quinze anos, “uma ladra, uma cleptomaníaca para fazer parecer culto” (2003, 12). A palavra “cleptomaníaca” não é por acaso, pois Assouline chamou Beyala de reincidente em “delitos flagrantes de cleptomania literária” (1997, II). Além disso, a expressão “para fazer parecer culto” retoma a oposição que a própria Beyala faz entre “a camponesa”, “a descalça africana”, a “pobre negra deslocada vinda de lugar nenhum”, a “africana ignorante de um tanto de coisas do mundo literário parisiense”, a “negra que está onde ela não deveria estar” e Pierre Assouline, o intelectual de Paris, o “grande dignatário da literatura francesa”[mfn]Todas as citações dessa frase são retiradas da carta de Beyala enviada ao Figaro “ Moi, Calixthe Beyala, la plagiaire !” (1997).[/mfn].
Não é a primeira vez que a autora faz eco do “Affaire Beyala” em um de seus romances, já tendo acertado as contas em La Petite fille du réverbère (1998) por intermédio de passagens virulentas colocadas aqui e ali. Esse romance sobre a infância é atravessado por uma ironia agridoce trazida pela jovem narradora, Tappoussière, mas o discurso violento e vitimador da autora adulta se impõe desde o início :
Na época em que começo essa história, eu ainda não era a escritora condecorada, sério? … que sacaneiem, que insultem, que vilipendiem, que chamem de cérebro de saias! Mas não mais de a negra que faz pasmar as calças sem fim, as barbichas sem virilidade, todos esses nadas que me cobrem de suas frustrações — porque eles acreditam, esses imbecis, que uma mulher, sobretudo uma negra, não saberia se defender.
Beyala exprime aqui claramente aquilo que ela dizia implicitamente em sua carta publicada no Le Figaro :além de ser uma “pobre negra” e uma “pobre mulher”, ela é percebida e tratada como um objeto sexual a que não pode ser atribuído o título de escritor. Se seu argumento pode, em parte, ser justificado e válido no conteúdo, ele é problemático na forma : o tom panfletário rompe com a fluidez do resto da narração e não vai além de ataques e de insultos. Um pouco depois, seus detratores tornam-se “esses Sinhô Riene Poussalire” (2003, 72), anagrama de Pierre Assouline, e em “viciados em maledicência” (2003, 98), “Papas da Literatura francesa” (2003, 146) e críticos “invejosos” e “ignóbeis” (2003, 233).
As alusões ao “Affaire Beyala” são mais sutis em Femme nue, femme noire e se manifestam apenas em paratexto e logo no início do romance. A violência e o descomedimento estão em outro lugar, como se Beyala tivesse decidido ir até o fim do impudor e assumido totalmente a etiqueta de autora pornográfica que colam nela desde o início de sua carreira. Ela o faz ao se opor ao estilo de Senghor, o gramático de língua refinada, com a vulgaridade, a língua das ruas de sua jovem narradora Irene: “‘Mulher nua, mulher negra, vestida de sua cor que é vida, de sua forma que é beleza …”. Esses versos não fazem parte de meu arsenal linguístico. Vocês verão: minhas palavras sacodem e rangem como correntes. \[…] Palavras que batem, esbofeteiam, quebram e esmagam! Aquele que se sentir desconfortável que siga seu caminho …” (2003, II). Desse modo, o prólogo serve de aviso : a mulher e a África não serão aqui idealizadas e nenhuma “sensibilidade” será poupada. Em Senghor, a mulher seguramente faz referência à amante, mas também à mãe e à mãe África. Como recorda Beyala, é o passado e a “grandeza da civilização negro-africana” que são valorizados por intermédio da imagem idealizada da mulher negra. Ao se apropriar dos versos de Senghor, ele quer “os investir de toda a violência, das humilhações e do sofrimento de que é feito o cotidiano da mulher” e assim “o esvaziar de sua carga patriarcal” [mfn]Todas essas citações são provenientes de “L’écriture dans la peau. Entretien avec Calixthe Beyala” (Tirthankar Chanda 2003, 42).[/mfn]. Ora, em Femme nue, femme noire o cotidiano de mulheres (e de homens) é feito apenas de atos sexuais, qualquer que seja o local, e de relatos escabrosos que Irene exige das pessoas que lhe visitam para se “curar”. No começo, a narradora reinvindica “uma moral do excesso, da luxúria e da devassidão” (2003, 20) e se apresenta como uma jovem rebelde : “eles me chamam de maluca para preservar sua supremacia, para que não ressuscitem nunca mais as mulheres rebeldes, comedoras de sexo”. Contudo, de volta a sua aldeia no final do romance, ele é brutalmente agredida e violentada por quatro homens loucos de raiva, e, no limiar da morte, essa “comedora de sexo” (2003, 31) promete se tornar uma garota sábia :”a partir de agora, mamãe, eu controlarei minhas fomes. Eu não serei mais voraz. Eu não mais morderei na vida igual a uam esfomeada que perdeu várias refeições. Eu entrarei na linha como todas as outras antes de mim” (2003, 189).
Se é verdade, como o nota Lydie Moudelino (2006, 156), que Beyala ataca em Femme nue, femme noire a “nudez passiva do modelo feminino de Senghor”, também é verdade que sua tentativa de liberar a mulher-garota por uma sexualidade ilimitada falha no final do relato. Irene não apenas é duramente punida por ter desafiado as leis do “pudor feminino”, mais ela entende e aceita a lição que lhe é violentamente inflingida, a de retomar “seu” lugar, de reintegrar a comunidade das mulheres púdicas e razoáveis.Em uma entrevista, Beyala evocou o excessivo pudor que se destaca no poema de Senghor e uma “espécie de rigor moralista” (Chanda 2003, 42) nele. O poeta da negritude, convocado no início do romance para em seguida ser expulso uma vez que não há nenhuma outra referência à sua obra, incarna assim o pudor da escritura que serve para acentuar o impudor do estilo de Beyala. Mas o impudor literário não é necessariamente sinônimo de subversão, e ao explorar até o limite a ideia da transgressão pelo sexo e pla indecência, o romance acaba por banalizar aquilo que não deveria ser banalizado, como a “educação sentimental africana” de uma adolescente rebelde como Irene consistir em aprender “as cem mil posições sexuais da fornicação” (Beyala 2003, 154) e uma jovem infértil como Fatou dever aceitar todas as infidelidades e pervesões sexuais de seu marido, exceto a zoofilia. Apesar da intenção de Beyala de liberar a “mulher nua, mulher negra” da visão patriarcal de Senghor que faz dela um ser “puro”, símbolo de toda uma raça, seu romance não exclui uma espécie de purificação. Após o estupro coletivo, Irene tem “a impressão de estar em uma bolha, um lugar ascético onde desaparece o sofrimento” (Beyala, 2003, 188)
Ao contrário do autor maliense Yambo Ouologuem, que desapareceu completamente da cena literária na sequência das acusações de plágio alguns anos depois de ter ganho o Prêmio Renaudot por Le Devoir de la violence (1968), Beyala não hesita em alimentar a controvérsia em seus romances, deixando sua escritura ser influenciada pelo recebimento de seus livros. Assim como C’est le soleil qui m’a brûlée (1987, 122) aspirava a falar o “prazer sem pudor”, a dissociá-lo da vergonha, Femme nue, femme noire coloca em cena um despudor extremo que, no final, leva a um retorno à sabedoria “feminina”. Esse romance, qualificado de forma unânime pela crítica como pornográfico, não é então uma “empreendimento totalmente iconoclasta” (Moudileno, 2006, 158), mas sobretudo passa de uma “moral sádica” (Asaah, 2006a, 29) è “redenção das almas perdidas” (Beyala, 2003, 185), como a de Irene. Femme nue, femme noire mostra que não é fácil escapar das representações obsoletas da mulher e da ideia de uma consciência moral da qual ela seria detentora, mesmo para uma autora rebelde como Beyala. Além disso, a recepção de sua obra e as reações ao “Affaire Beyala” colocam sob o holofote o lado “imoral” da autora. Nesse sentido, é legítimo se perguntar se a falta de comedimento em alguns falas não está ligada à sua reputação de autora obscena, como se fosse de fato inútil colocar luvas brancas com uma mulher tão impudica que ela mesma frequentemente faz declarações exacerbadas. Na esteira do “Affaire Beyala”, Pierre Assouline denunciou o “politicamente correto” que adentra nos debates literários e torna suspeita toda crítica de “abusar de uma romancista africana porque ele é mulher e negra”[mfn]Citado em “ Moi, Calixthe Beyala, la plagiaire! ou Ambiguïtées d’une ‘défense et illustration’ du plagiat” (Véronique Porra, 1997, 30).[/mfn]. Ora muitas observações sugerem que certos críticos e autores se permitem alguns comentários — sejam “elogiosos” por sua aparência física, sejam mordazes por sua escritura — porque Beyala é mulher e negra.
Traduzido do francês por Luiz Capelo
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