Povos indígenas reivindicam o cumprimento de seus direitos assegurados na Constituição de 1988, durante a mobilização nacional no Acampamento Terra Livre, em 2017. Foto: Fábio Nascimento
Os povos indígenas nos desafiam em meio às catástrofes de um presente não imaginado. Observá-los a partir do que eles têm dito nos remete aos diferentes estratos de tempo que compõem o que vivemos, tanto no que concerne às camadas de passado quanto à pluralidade de ritmos sociais que se apresentam. Ao nos lembrarem constantemente do caráter agonístico da democracia, eles desvelam aspectos importantes do que tem sido recorrentemente caracterizado como uma crise em suas distintas dimensões: sanitária, econômica, política, ambiental e constitucional.
Suas lutas e narrativas expõem as dificuldades de longa duração que enfrentam para garantir seus direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, nos lembram que estes foram conquistas de sua intensa afirmação e mobilização no campo democrático. A partir dela, foram garantidos os direitos originários às suas terras, a ruptura com a tutela do Estado e o reconhecimento de suas identidades, organizações sociais e capacidade jurídica na Constituição de 1988, o que representou um verdadeiro giro paradigmático.
Povos indígenas comemoram, na frente do Congresso Nacional, a aprovação do capítulo sobre seus direitos na Constituição de 1988. Foto: Beto Ricardo, Acervo do ISA (Instituto Socioambiental)
No presente, o crescimento de discursos discriminatórios e os processos desconstituintes tornam ainda mais urgente aquilo que eles têm a nos dizer sobre os impactos trazidos pela pandemia. Os desafios já se faziam crescentes na última década. Proposições legislativas restritivas a seus direitos avolumam-se no Parlamento brasileiro, a exemplo da proposta de regulamentação da exploração de minérios em suas terras. O argumento de que seus direitos fundamentais podem ser discricionariamente desconsiderados tem sido recorrente na cena política.
Os desafios vivenciados perante o Poder Judiciário são grandes, sobretudo após o Supremo Tribunal Federal ter estabelecido a tese do marco temporal da ocupação, que impõe a comprovação documental da ocupação indígena na data da promulgação da Constituição de 1988 como critério para reconhecimento de suas terras. Tal exigência, no entanto, ignora o longo processo de esbulho sofrido por esses povos antes da Constituinte. Criada a partir do julgamento do caso Raposa Serra do Sol em 2009, a tese será reavaliada pela Corte na apreciação de um recurso dotado de repercussão geral (RE nº 1.017.365) sobre as terras dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, na região Sul do país, o que trará relevantes consequências para todos os processos de demarcação de terras indígenas1O julgamento do caso da Terra Indígena Xokleng La Klaño foi iniciado pela Suprema Corte e paralisado a pedido de um ministro para vistas do processo. Os povos indígenas têm reivindicado a sua retomada com celeridade.
Nota do editor: O julgamento sobre o caso da Terra Indígena Xokleng La Klaño foi retomado e finalizado pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu pela rejeição da tese do Marco Temporal..
Como afirma Ailton Krenak (KRENAK, 2015), importante liderança e filósofo indígena, para esses povos “o enunciado de uma identidade significa reivindicar o Brasil de volta”. A disputa intrincada por e entre “Brasis” é bem representada na relação que esses povos mantêm com suas terras, o que para eles é um direito fundamental que define sua identidade, cultura e modos de se relacionar com seus antepassados e com as gerações futuras. Essencialmente distinta da lógica proprietária hegemônica, a relação dos povos indígenas com a terra, resguardada na Constituição brasileira, comporta dimensões constitutivas de suas próprias existências, mas não apenas delas: estudos expressivos têm demonstrado a relevância das terras indígenas para a população global, por sua contribuição para a redução do desmatamento e a manutenção do equilíbrio climático.
Foto com o Raoni de autoria do fotógrafo Beto Ricardo. Disponível no Acervo do ISA
O reconhecimento e a proteção de seus modos de vida e territórios, além de assegurados pela Constituição brasileira de 1988, também são alvos de importantes instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Sistematicamente, esses povos têm denunciado a exploração ilegal dessas áreas por invasores, situação que intensifica a disseminação da Covid-19 em ritmo acelerado. Por serem mais vulneráveis à contaminação pelo vírus, em especial os povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato, o avanço da doença foi alarmante e levou a uma taxa de letalidade significativamente maior do que a experimentada pelo conjunto da população brasileira, o que lança o desafio de uma atuação efetiva pelo Estado para a urgente garantia do direito à vida e à saúde. Sobre a questão, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil — APIB elaborou um plano emergencial no qual propõe medidas para o combate à pandemia.
As denúncias e as demandas indígenas parecem nos remeter a um passado que se insiste presente, marcado por acentuado processo depopulacional em razão de contatos forçados e da expropriação de seus territórios, como nos lembra o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Em 2014, o documento revelou terem sido mortos pelo menos 8.350 indígenas no país entre 1946 e 1988 em decorrência da ação direta ou da omissão estatal, grande parte pela proliferação de doenças virais.
Como medida de enfretamento ao avanço da pandemia entre os povos indígenas, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.021/2020. Proposta por um conjunto de deputados, entre os quais a primeira parlamentar indígena do país, Joenia Wapichana, e alvo de intensa articulação do movimento indígena, a norma definiu uma série de medidas de proteção social e prevenção do contágio da Covid-19 nas terras indígenas e instituiu um plano emergencial para contenção da doença entre esses povos. Entretanto, foram apresentados 16 vetos à norma em sua sanção, que limitaram substancialmente seu alcance.
Foto de autoria da fotógrafa Claudia Andujar. Disponível no Acervo do ISA
Nesse difícil contexto, hoje sem dúvidas agravado, o recurso à jurisdição internacional e nacional tem se mostrado um relevante instrumento. Em 2018, a partir de denúncia encaminhada pelo povo Xucuru, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por violação do direito à propriedade coletiva dos povos indígenas, previsto nos artigos 21 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em julho de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos determinou ao Brasil o estabelecimento de ações necessárias para a proteção da saúde, da vida e da integridade dos povos Yanomami e Ye’kwana, em pedido de medida cautelar formulado pela Hutukara Associação Yanomami e pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
Em mais um recurso para se fazerem ouvidos, a APIB ingressou com uma ação perante o Supremo Tribunal Federal destinada ao controle concentrado de constitucionalidade (ADPF 709), com o objeto de garantir medidas efetivas de combate à pandemia em suas terras. Em uma vitória histórica, os membros da Corte concordaram, por unanimidade, com o deferimento de medida cautelar que determinou a elaboração de um plano emergencial de combate à Covid-19 entre os povos indígenas a partir do diálogo intercultural, a instalação de uma sala de situação para monitoramento da pandemia, a criação de barreiras sanitárias nas terras indígenas, com especial atenção às habitadas por povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato, e um plano de retirada de invasores dessas áreas.
Tratam-se de ações imprescindíveis e urgentes que têm sido acompanhadas por representantes do próprio Supremo Tribunal Federal, apesar das dificuldades apontadas por pesquisadores que acompanham o cumprimento da decisão (GODOY, 2021). Mas a vitória também se revela por sua dimensão histórica. Foi a primeira vez em que os povos indígenas acessaram a jurisdição constitucional no país em seu próprio nome e representados por um advogado indígena, Dr. Eloy Terena, que, em sua sustentação oral no julgamento, nos demonstrou o que esperam de um efetivo diálogo intercultural e a dimensão fundamental dos direitos indígenas.
Os problemas enfrentados pelos povos indígenas no Brasil atual são latentes, demandam soluções urgentes e constituem uma fundamental questão de direitos humanos. Suas lutas têm sido igualmente grandes e a constante mobilização na afirmação de seus direitos nos demonstra a importância da comunidade de princípios criada pela Constituição de 1988 no país, ao articularem passado, presente e futuro. Seus alertas apontam para soluções de interesse global. Escutá-los é imprescindível.
Manoel Batista do Prado Junior
Historiador e indigenista. Graduou-se em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e. Atualmente, cursa o Doutorado em Direito, Estado e Constituição, na Universidade de Brasília (UnB), onde se dedica à pesquisa sobre história constitucional e povos indígenas.
Bibliografia
Godoy, Miguel Gualano de, Carolina Ribeiro Santana, e Lucas Cravo de Oliveira. 2021. «STF, povos indígenas e Sala de Situação: diálogo ilusório». Revista Direito e Práxis 12 (3):2174–2205. https://doi.org/10.1590/2179-8966/2021/61730.
Krenak, Ailton. 2015. Encontros. São Paulo: Ateliê Editoral.