Tetradracma ateniense. Foto: Gallica – Bibliothèque nationale de France
A humanidade dispõe de inúmeros instrumentos para analisar e compreender a realidade que a cerca. Utilizamos os sentidos — a visão, o olfato, a audição, o paladar e o tato — mas também construímos ferramentas teóricas e intelectuais para discernir a physis ao nosso redor. Dentre esses constructos, a “poética da putaria” tem sido particularmente útil para entender algumas coisas que estão acontecendo no Brasil atualmente. Assim, para iniciarmos a discussão, recorremos a um questionamento levantado por Silvio Santos:
Silvio Santos. Fonte: Medo e Delírio em Brasília
“Sim! Sim! Eu! Eu! Eu gosto muito de dinheiro”, respondem alguns elementos do brioso Exército Brasileiro — que doravante chamaremos apenas de EB. Ora, o tema do texto não poderia ser outro, é preciso se falar sobre o muambagate de Jair Bolsonaro, capitão do EB, de Mauro Cesar Lourena Cid, general do EB, e de Mauro Cesar Barbosa Cid, tenente-coronel do EB que atualmente passeia por ae com uma linda tornozeleira eletrônica. Esses ávidos representantes do EB estão sendo investigados pela Polícia Federal por terem desviado e vendido jóias dadas ao Estado brasileiro por autoridades estrangeiras. A relação entre a cupidez de nossos militares e o mundo da pornografia remete a alguns epigramas da Antologia Grega, a AG. Podemos começar com as palavras de Antipater da Tessalônica.
δραχμῆς Εὐρώπην τὴν Ἀτθίδα, μήτε φοβηθεὶς
μηδένα, μήτ᾽ ἄλλως ἀντιλέγουσαν, ἔχε,
καὶ στρωμνὴν παρέχουσαν ἀμεμφέα, χὠπότε χειμών,
ἄνθρακας. ἦ ῥα μάτην, Ζεῦ φίλε, βοῦς ἐγένου.
Leva para Europa, a ateniense, uma dracma e não corres risco algum, nem ela te contradiz de nenhuma outra forma; ela também possui um leito irretocável e, quando é inverno, carvão. Ora, querido Zeus, à toa te tornou touro[mfn]Todas as traduções do grego são de minha autoria.[/mfn]. (Antipater, AG 5.109)
Quando se está falando de prostituição, um de seus elementos definidores é a troca de dinheiro por uma relação sexual. Davidson[mfn]Davidson, James N. 2011. Courtesans and Fishcakes: The Consuming Passions of Classical Athens. Chicago, IL: University of Chicago Press. https://press.uchicago.edu/ucp/books/book/chicago/C/bo11541590.html.[/mfn] afirma que um dos mais recorrentes temas do mundo do sexo é a tentativa de traçar uma linha divisória entre a estratégia romântica da sedução e do cortejo e a perspectiva da compra e venda do sexo. Essa distinção é fulcral, pois a partir dela se estabelecem dicotomias como esposa-prostituta, casto-pornográfico, legítimo-ilegítimo, moral-imoral, etc. O epigrama de Antipater objetivamente representa uma situação em que há troca de dinheiro por uma relação, e é interessante notar que não há referência explítica ao sexo no texto. Fala-se do leito irretocável e de Zeus, que no mito se tornou touro para ter Europa. Contudo, o que é dito claramente é que Europa, a ateniense, proverá conforto, até mesmo quando for inverno, e que ela não contestará o cliente. Não é afirmado categoricamente em momento algum que ela transará. O sexo é conclusão do leitor. No século X, um monge bizantino anota no códice que o epigrama é “para uma puta (pornēn) chamada Europa“. É nesse momento que o epigrama começa a fazer parte da construção daquilo que, posteriormente, será o conceito de pornografia.
A palavra pornografia é um termo dissimulador. Sua etimologia está entre as várias coisas que esconde quando pretende algo revelar. Em um primeiro momento, imagina-se que o termo tenha origem grega. Afinal, “grafia” é de origem grega — vem do verbo γράφω, que significa escrever, representar — e é recorrente na língua portuguesa — podemos citar como exemplo os termos litografia, escrito em pedra, e taquigrafia, a técnica de escrever rápido. Em grego, πόρνη,ης (ἡ) significa prostituta. Assim, a origem etimológica da palavra seria grega, e a pornografia, seguindo sua etimologia, seria a representação de prostitutas, seu mundo e suas ações. Ora, nada mais enganador. Inicialmente, em grego antigo não há o termo ou o conceito de pornografia. Um dos termos próximos existente é πορνικός, que abordamos anteriormente. Em língua portuguesa, a primeira ocorrência do termo pornografia é de 1899 e sua origem é o francês[mfn]Antônio Geraldo da Cunha. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2010.[/mfn]. Em francês, a palavra pornographie foi utilizada pela primeira vez em 1806[mfn]Gladfelder, Hal. 2013. Literature and Pornography, 1660‒1800. Oxford Handbooks Online. https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199935338.013.001.[/mfn]. Percebe-se assim que na aparência pornografia é um termo de origem grega, porém factualmente é uma criação do século XIX. Em relação ao sentido, levando em consideração a pretensa etimologia grega, a pornografia seria apenas a mediatização da prostituição, o que também não é verdadeiro.
A pornografia não é a prostituição filmada ou declamada em versos. A pornografia é, tal qual o pornikos, um espaço outro regido por outras regras[mfn]Vitali-Rosati, Marcello. « Pornspace ». Médium 46‑47, nᵒ 1‑2 (2016): 306‑17. https://doi.org/10.3917/mediu.046.0306.[/mfn], é uma heterotopia. Ora, pode-se afirmar que o militar-muambeiro e o trabalhador do sexo são semelhantes no aspecto que ambos vendem algo — o trabalhador vende um serviço, o milico, jóias desviadas. Mas não é só por isso que se pode chamar de pornográficos a venda das jóias e os valores envolvidos na transação. A regra diz que presentes dados ao Estado brasileiro devem entrar no acervo do Estado. Contudo, nossos milicos pensaram diferente e venderam os presentes recebidos por altos valores. De alguma forma, eles subverteram a regra — e, ao que parece, cometeram crimes no processo. Mas, como a seara criminal não é de nossa competência, voltemos ao texto do epigrama.
Malditos milicos. Fonte: Medo e delírio em Brasília
Tal qual uma língua, o preço do sexo tem variações diacrônicas, diatópicas e diastráticas. Isso quer dizer que se paga mais ou menos baseado em quando a transação está ocorrendo, em que local e pelo estrato social daqueles envolvidos no comércio carnal. Para ter Europa, a ateniense, é preciso pagar apenas uma dracma. Supondo que esse preço é baseado em conhecimento empírico de Antipater, paga-se menos pelo sexo na Tessalônica durante o período romano do que se pagava na Atenas clássica. Ali, o preço do sexo era regulamentado. Dentre as diferentes categorias de trabalhadores sexuais — emprego o termo ciente de seu anacronismo nesse contexto — do período clássico, as mais baixas na escala são a pornē, a prostituta e que, como vimos, é a origem etimológica da pornografia, e a aulētris, a tocadora de flauta. Ora, a cidade de Atenas tabelava o preço da noite com uma aulētris em 2 dracmas. E se mais de um homem quisesse a aulētris, caberia aos astynomoi[mfn]Os astynomoi eram uma espécie de magistrado cujo principal função era manter as cidades e os santuários limpos e sem obstruções. Além disso, eles também eram responsáveis pela manutenção da lei.[/mfn] resolver a questão. A aulētris não era consultada. Além disso, as pornai tinham de pagar um imposto específico, o pornikon telos[mfn]O pornikon telos não se limitava às prostitutas. Homens que se prostituíssem também deveriam pagar o imposto.[/mfn]. Nesse contexto, não é de se estranhar que Europa, a ateniense, não seja a única que tem seus valores expostos na AG:
πέντε δίδωσιν ἑνὸς τῇ δεῖνα ὁ δεῖνα τάλαντα,
καὶ βινεῖ φρίσσων, καὶ μὰ τὸν οὐδὲ καλὴν
πέντε δ᾽ ἐγὼ δραχμὰς τῶν δώδεκα Λυσιανάσσῃ,
καὶ βινῶ πρὸς τῷ κρείσσονα καὶ φανερῶς.
πάντως ἤτοι ἐγὼ φρένας οὐκ ἔχω, ἢ τό γε λοιπὸν
τοὺς κείνου πελέκει δεῖ διδύμους ἀφελεῖν.
Um fulano dá a uma fulana cinco talentos por umazinha,
trepa tremendo e, meu Deus, nem bonita ela é;
já eu dou cinco dracmas para Lisianassa por dozes vezes,
além disso ainda trepo muito melhor e às claras.
Certamente ou eu não tenho nada na cabeça,
ou precisam cortar as bolas do outro com um machado. (Filodemo, AG 5.126)
Nesse epigrama, Filodemo de Gádara discute abertamente algumas qualidades de Lisianassa, dentre elas o preço para transar. Para melhor entender o texto, é preciso fazer discorrer sobre as moedas da Antiguidade clássica. Há quatro moedas que devemos considerar aqui: o óbolo, a dracma, a mina e o talento — 1 dracma vale 6 óbolos ; 1 mina vale 100 dracmas ; e 1 talento vale 60 minas. Vamos calcular então o valor de cada relação sexual em dracmas. A transa do fulano, que foi ruim, feita às pressas e no escuro, custou 5 talentos, então custou 300 minas e isso equivale a 30.000 dracmas. Já Filodemo pagou 5 dracmas por 12 transas, o que dá 0,41 dracmas por cada relação sexual. A discrepância nos valores é absurda. A conclusão de Filodemo não poderia ser outra: há algo errado nessa situação.
Talvez cortar as bolas do fulano com um machado seja um solução radical, mas o extremismo da solução dada equivale ao tamanho da disparidade. É interessante salientar que Filodemo frequentou o Jardim, escola fundada por Epicuro em Atenas. Ao mesmo tempo em que o Epicurismo é uma filosofia hedonista que argumenta que o ser humano deve buscar o prazer e a felicidade, essa filosofia também defende o comedimento. Como dito no epigrama, Lisianassa, cujo custo é ínfimo se comparado à outra prostituta em questão, é bonita e transa bem. Não é preciso se abster do prazer, nem pagar as 30.000 dracmas para se ter safistação sexual. Prazer e comedimento, eis os temas que o epigrama traz.
Zeus é um deus capaz das maiores proezas para satisfazer seu inesgotável apetite sexual. Como citado no epigrama 5.109, em uma de suas aventuras o deus transformou-se em touro para poder ter relações com a princesa Europa — inclusive, um dos filhos de Zeus com Europa é Minos, aquele que constrói o labirinto-prisão do Minotauro. Em outros momentos, ele transforma-se em águia para capturar Ganymedes e em ganso para se relacionar com Leda. O insaciável chega até mesmo a tornar-se chuva de ouro no episódio envolvendo Dânae. Tornar-se uma chuva de ouro para poder transar é simbólico. É o ouro que está permitindo que o deus tenha relações. Não é necessário grandes imaginações para ler o mito como Zeus usando ouro para comprar sua noite com Dânae, o que pode ser interpretado como um referência à prostituição. Mas nem todos os amantes estão dispostos a realizar as peripécias de Zeus:
οὐ μέλλω ῥεύσειν χρυσός ποτε: βοῦς δὲ γένοιτο
ἄλλος, χὠ μελίθρους κύκνος ἐπῃόνιος.
Ζηνὶ φυλασσέσθω τάδε παίγνια: τῇ δὲ Κορίννῃ
τοὺς ὀβολοὺς δώσω τοὺς δύο, κοὐ πέτομαι.
Nunca sou o ouro prestes a chover, e outro que se transforme em touro ou no ribeirinho cisne de voz doce.
Deixe essas brincadeiras para Zeus. Para Corinna, eu darei seus dois óbolos, mas não saio voando. (Lollius Bassus, AG 5.125)
Lollius Bassus foi um autor de epigramas do I século d.C. Pouco se sabe com certeza sobre o poeta, além do fato de que há 8 epigramas de sua autoria na Antologia Grega. Possivelmente, ele viveu em Roma durante o reinado de Tibério e fazia parte do grupo de letrados em torno de Sêneca. Do texto do epigrama 5.125 extraímos um pragmatismo cortante. Bassus não quer saber de brincadeira alguma, ele não está disposto a fazer nada além de pagar 2 óbolos para Corina, um valor um pouco menor do que o pago a Lissianassa.
A “poética da putaria” é um efetivo instrumento de análise da realidade objetiva. A partir dela vê-se que o conceito de pornografia, que se pretende grego, não existe no concepção da Antiguidade clássica. Pornografia é uma criação do século XIX. Além disso, a etimologia é duplamente escorregadia, pois tampouco a pornografia se limita a uma mediatização da prostituição. O pornográfico não necessariamente representa uma situação de prostituição. Pode ser o caso, mas não é a regra. Como já argumentamos anteriormente, o critério essencial do pornográfico é a criação de um espaço outro, em que há relações e regras próprias. Já a prostituição é a venda de um serviço sexual mediante pagamento. Os valores variam enormemente. As escravizadas pornai do período clássico recebiam 2 dracmas, Europa, a ateniense, cobrava 1 dracma, Lissianassa por 5 dracmas abre as portas de seu leito por 12 vezes e Corinna ganha apenas 2 óbolos. Ora, já nossos briosos oficiais do EB custam um pouco mais. Para eles, foi preciso um relógio Rolex, um Patek Philippe e outras jóias. Cada um cobra aquilo que acha que vale. Contudo, Europa, Lissianassa e Corinna eram mulheres escravizadas e submetidas a um regime de servidão. Não se pode dizer o mesmo dos oficiais do EB envolvidos nesse pornográfico esquema de enriquecimento ilícito. Assim, em guisa de conclusão, podemos deixar um conselho de Cillactor bastante pertinente aos vorazes militares brasileiro:
ἁδὺ τὸ βινεῖν ἐστι: τίς οὐ λέγει; ἀλλ᾽ ὅταν αἰτῇ
χαλκόν, πικρότερον γίνεται ἐλλεβόρου.
Fuder é gostoso, quem não acha? Mas, quando é pedido cobre,
fica mais ardido que urtiga. (Cillactor, AG 5.29)
Bibliografia
Antônio Geraldo da Cunha. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2010.
Davidson, James N. 2011. Courtesans and Fishcakes: The Consuming Passions of Classical Athens. Chicago, IL: University of Chicago Press. https://press.uchicago.edu/ucp/books/book/chicago/C/bo11541590.html.
Gladfelder, Hal. 2013. Literature and Pornography, 1660‒1800. Oxford Handbooks Online. https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199935338.013.001.
Vitali-Rosati, Marcello. « Pornspace ». Médium 46‑47, nᵒ 1‑2 (2016): 306‑17. https://doi.org/10.3917/mediu.046.0306
Waltz, Pierre, Robert Aubreton, Jean Irigoin, Francesca Maltomini, et Pierre Laurens. Anthologie grecque. Collection des universités de France. Série grecque 481; Paris: Société d’édition “Les Belles Lettres, 1928.