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Marielle Franco: a ameaça do movimento de mulheres negras às políticas de morte
Coletivo Cabelaço

O cronista constata que os passarinhos de São Paulo vêm cantando fora de hora, há algum tempo. Ele cogita que a poluição sonora do grande centro leva as avezinhas a trocarem a noite pelo dia e a cantarem de madrugada, quando certo silêncio se impõe. 

A crônica ia bem, e eu curtia a leitura, até que o cronista roubou a cena do galo. Explico: eu tinha anotado uma ideia sobre os galos que não cantam mais (pela primeira vez) às cinco ou às quatro da manhã, como tem sido desde que a biologia dos relógios foi inventada. Vários deles cantam entre 2h30 e 3h30, levando vizinhos contrariados a solicitar a execução sumária dos cantores destemperados. […]

Embora tenha tomado de aCaptura de Tela 2018-05-29 às 16.37.16ssalto meu tema, a boa notícia é que o cronista levou-me a especular por que os galos estão acordando mais cedo, e nisso eu não havia pensado. Acho que é uma chamada. A vida dos nossos está indo embora antes da hora, com a mesma naturalidade de quem olha distraído o reinado de um galo no galinheiro”. pp 57-58

Cidinha da Silva, “E foi por ela que o galo cocorocou”,

em Baú de miudezas, sol e chuva: crônicas

​​Lágrimas e sorrisos permeiam a abertura do baú de nossas negras vivências, nos presenteando com a convicção de que nosso baú de miudezas não guarda esquecimentos, mas sim nossa grandiosidade. As crônicas da Cidinha emocionam a nós duas, tendo Adriana por indicação de Cecília levado-as em sua bagagem de mão como companhia para viajar de Recife ao Rio de Janeiro. Foram dois dias de viagem cortados pela notícia da execução de nossa colega de profissão Marielle Franco. Falar no canto do galo que tempera a aurora, nos ajuda a fazer do engasgo, palavra. E este começo não poderia ser menos emotivo, considerando que a caminhada de Marielle reflete nossos passos de modo que de tão similar chega a ser assustador. 

No dia 14 de março de 2018 a socióloga e vereadora (a quinta mais bem votada do município do Rio de Janeiro, em 2016), foi assassinada com quatro tiros na cabeça  no centro da capital fluminense, enquanto voltava para casa após um evento. Junto a ela, alvo da ação homicida, o motorista Anderson Pedro Gomes não resistiu aos tiros. Até o término desta escrita, 28 de Abril de 2018, não houve resposta oficial de quem matou ou mandou matar Marielle Franco.

Marielle lançava aos quatro ventos sua identidade de mulher negra periférica (criada na Favela da Maré[1]), mãe solo e bissexual casada com uma mulher. Sua autodefinição aponta os caminhos e o recorte de nosso sentimento e reflexão, o que demanda necessariamente figurar acerca da população negra, da resistência de mulheres negras, das demandas LGBT’s e das consequências de uma produção intelectual crítica coerente à práxis política que visibiliza injustiças sistêmicas. Marielle trabalhava cotidianamente esmiuçando e denuciando o cenário das políticas de segurança pública do Rio de Janeiro, que incorre na naturalização/banalização das mortes da população negra  como uma estratégia de poder, um jogo intencional que demarca territórios (lógica bélica) e mapeia corpos conformando quem detém ou não o direito legítimo à vida ou à morte.

Para contextualizar o que evidenciamos acima, consideramos a defesa de Marielle Franco, especialmente na seção de sua dissertação, onde ela trata sobre as “Operações de pré UPP na Maré – onde uma tragédia não apaga a outra”, Franco (2014) analisa um episódio que aconteceu no complexo da Maré em 2013, quando houve uma entrada do BOPE (batalhão de operações policiais especiais) e do Batalhão de Choque resultando em horas de trocas de tiros com grupos armados e um saldo de dezmortos – havendo veiculação na mídia de até treze mortos, entre policiais e suspeitos de envolvimento com o tráfico. Marielle fundamenta seus argumentos na ausência de qualquer resposta da segurança pública do Rio de Janeiro sobre esta ocasião, que informasse o objetivo e resultados da operação – relatório, avaliação da política pública etc. 

Os órgãos de segurança pública criam e guiam suas políticas pela necessidade consensuada da morte, de que é possível matar tendo em vista a segurança e a paz. Entretanto, o aumento da segurança social não é revelado, não tendo sua eficácia declarada e, na prática, determina um aumento no número de mortos em detrimento de uma maior vulnerabilização do direito à vida. 

Marielle construiu um inventário de ocorrências e análises possíveis que sustentam o genocídio da população negra, parecendo um jornal tentando alcançar o tempo e a imagem real dos fatos de um  quilombo urbano, a Favela da Maré. Agora, o que Marielle Franco trouxe em seus próprios argumentos constitui sua memória póstuma, recaindo sobre sua própria morte o olhar que ela trouxe sobre seu lugar de origem. O jogo político que banaliza nossas mortes as retira de seu caráter sistêmico, escondendo seu caráter genocida. 

Achille Mbembe (2016) tipificando as bases da existência de um poder dominante baseado no controle e manutenção de um estado de morte, a se entender pela descrição do autor sobre os mecanismos de uma  necropolítica, pensada enquanto este exercício de um poder soberano que define que vidas devem ser protegidas e quais podem ser descartadas. Tal decisão é sempre a partir de uns em detrimento de outros, estes primeiros como quem exercem um poder hegemônico que tem como base a supremacia branca. 

Nesse aspecto, podemos, em diálogo com o referido autor, tomar como exemplo a realidade de diversos países africanos aos quais o processo colonizador ocidental, ainda tão vivo, impôs drásticas mudanças ao longo do último quarto do século 20. Muitos Estados africanos já não podem reivindicar monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. 

A própria coerção tornou-se produto do mercado. A mão de obra militar é comprada e vendida num mercado em que a identidade dos fornecedores e compradores não significa quase nada. Milícias urbanas, exércitos privados, exército de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar. (Mbembe, pp. 139)

O que há em comum entre os escritos de Mbembe e de Marielle? Ambos denunciam relações de opressão que tem como base estrurural a manutenção do poder, e com isso a legitimação de desigualdades que só se sustentam na ideia de que algumas vidas são mais valiosas do que outras, a saber, as vidas de pessoas brancas em detrimento da vida de negras e negros. 

Tal conclusão, somada ao assassinato de Marielle, reforça o que nós feministas negras e população negra em geral já vem denunciando há tempos: nossos corpos representam nesta sociedade de pilares racistas, classistas e patriarcais o alvo dessas distintas forças que Mbembe descreve. 

A repercussão do assassinato de Marielle Franco afina-se a construção ideológica de mártires, valendo refletir sobre como a ética individualista dissocia a identidade do sujeito da de sua comunidade. Ocorre um desmonte das narrativas de resistência coletiva a partir da elaboração midiática de heróis, nas  construções que se dão por mecanismos que personificam, perseguem, encarceram e matam. 

Angela Davis, em entrevista, aponta isso ao mostrar como a mídia mesmo ao falar sobre lideranças negras históricas, construiu “heróis salvadores”, indivíduos excepcionais sem os quais nada do que foi realizado poderia ter sido feito, na tentativa de uma desmobilização dos movimentos sociais.

Mesmo que Nelson Mandela tenha sempre insistido que suas realizações foram coletivas, conquistadas também por homens e mulheres que o acompanhavam, a mídia tentou alçá-lo a herói. Um processo similar tentou dissociar Martin Luther King Jr. do imenso número de mulheres e homens que constituíram o verdadeiro cerne do movimento pela liberdade nos Estados Unidos em meados do século XX. É fundamental resistir à representação da história como um trabalho de indivíduos heróicos, de maneira que as pessoas reconheçam hoje sua potencial agência como parte de uma comunidade de luta sempre em expansão” (DAVIS, 2018, p. 19)

No caso da vereadora, a repercussão da sua morte teve duas grandes interpretações: a de que ela como mulher negra e periférica estaria envolvida com traficantes ou seu inverso, a “mulher negra periférica” que alcançou numa perspectiva meritocrática este lugar. Sendo as duas concepções individualistas e segregadoras, além de persecutórias e difamadoras.

Abordar sua morte como o nascimento de um novo mártir traz consigo tanto o que já refletimos sobre naturalizar a violência quanto requer que lidemos com o inevitável: seu assassinato e as perspectivas de continuidade a partir de então. No dia 14 de março, um pouco antes de sua morte, Marielle  participou de seu último encontro a tratar sobre perspectivas para o movimento de mulheres negras, nos deixando a seguinte reflexão:

O mandato de uma mulher negra favelada periférica precisa tá pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto a quem tá fazendo pra nos fortalecer naquele local onde a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê. A negação é o que eles apresentam como nosso perfil. Então, ter a nossa casa, ter o nosso local, ter o nosso período, ter o nosso local de resistência. Daí fazer esse evento no bojo das atividades do 21 Dias de Ativismo, que a gente sabe que a gente tá ativa, tá militando, tá resistindo o tempo todo, mas com alguns períodos aonde a gente se fortalece na luta (…)”[2]

O reconhecimento do seu local de partida enquanto mulher negra favelada nos diz muito sobre o pensamento do feminismo negro. Marielle reconhecia em sua vivência e particularidades a dimensão da luta coletiva para mover as estruturas, mesmo estando imersa em uma estratégia de ação política convencional disputando no campo do centralismo democrático.

A contribuição de sua atuação condiz com o pensamento da socióloga Patricia Hill Collins (2016), a respeito de suas observações sobre o feminismo negro a partir do lugar de outsider within. Para nós é transferida uma dupla condição: a de estar dentro e fora ao mesmo tempo. São exemplos, a histórica presença de empregadas domésticas negras em casa de famílias brancas, mulheres negras universitárias no espaço acadêmico extremamente racista,  parlamentares negras em um parlamento branco e patriarcal.[3]

Contudo, esta condição permite a todas nós, mulheres negras na condição de outsider within, perspectivas particulares e ao mesmo tempo mais abrangentes de conceber nossa potência a partir de nossas vivências que remontam nossa coletividade. A própria condição de “estrangeira íntima”[4]  incentiva uma prática criativa acerca de nossa identidade, a se perceber na definição de “mulher negra, favelada, periférica” que culturalmente demarca um lugar de desvantagem, mas é deste mesmo ponto que se alavanca valorização, autoestima e criação.

O caminhar após o dia 14 de março não está sendo fácil, na verdade não vem sendo desde o início da colonização. Insistentemente, a escravidão tentou nos forçar o distanciamento, desarticular nosso aquilombamento, nossas famílias, de cultivar nossas memórias e referências, permanecem sem data de validade com sua política genocida, na tentativa contínua de noseliminar tratando como corpos descartáveis nesta política de morte. E é por isso mesmo, que vivas e marginais, perguntamos no eco de Lucille Clifton: “Você não vai celebrar comigo?”

você não vai celebrar comigo 
o que moldei num
modo de viver? não tive modelos.
nascida na babilônia
nascida não-branca e mulher
o que eu vim para ser, além de mim mesma?
eu inventei aqui nessa ponte entre
pó-de-estrela e barro,
essa minha mão;
vem celebrar comigo
que todo dia
alguma coisa tentou me matar
e facassou.

Somos muitas e todas nós compomos esse baú de miudezas que Cidinha da Silva nos traz, somos águas deste oceano atlântico dos dizeres e pensamentos da Beatriz Nascimento, assistimos, compartilhamos e vibramos juntas ao ouvir a Mãe Stella de Oxóssi em um canal da internet, somos inspiradas e inspiramos as leituras noturnas dos becos da memória de Conceição Evaristo, fomos as crianças ninadas com as histórias de Inaldete Pinheiro que tanto nos fortalece na luta por uma educação sem racismo, ofertamos o engajamento, coragem, beleza e cuidado a nossa saúde e direitos como a que recebemos da Ya Vera Baroni, com as sementes crioulas de Luiza Cavalcante nos nutrimos e semeamos resistência e autocuidado, somos e para sempre seremos a memória viva de Marielle Franco!

por Coletivo Cabelaço-PE [5]

[1]    A  Maré é um complexo de 16 favelas situadas na Zona Norte do Rio de Janeiro-RJ, onde existem cerca de 129 mil habitantes. Lugar que abriga uma grande população negra e descendentes de nordestinas(os) é um centro de grande potência artística, política, econômica e cultural, mas que sofre com estratégias sistemáticas de políticas racistas. O descaso do estado, a disputa territorial pelo tráfico, a guerra às drogas e ações desmedidas das polícias, a construção imagética que criminaliza moradoras e moradores, são alguns exemplos.

[2]   Fala feita por Marielle Franco no evento:“Jovens Negras Movendo Estruturas” realizado na Casa das Pretas-RJ, integrando a agenda de seu mandato junto às atividades do 21 Dias de Ativismo contra o Racismo.

[3]   Patricia Hill Collins expressa comungar com o pensamento de outras intelectuais negras como Audre Lorde com a representação da sister outsider (1984) e bell hooks, em seu artigo “Intelectuais Negras”(1985) quando traça uma dualidade inerente à vivência das intelectuais negras marcada por um intenso envolvimento com a produção intelectual em um contexto de hostilidade pela existência do racismo em intersecção com o sexismo.

[4]  Tentativa de deixar mais próximo o termo outsider within para as manas que falam português, apesar de o termo não ter nenhuma correspondencia inquestionável – estrangeira íntima foi a forma que nos tocou o conceito. No caso de Marielle a condição de outsider within se evidencia no momento em que para ganhar  visibilidade e dar forma as suas premissas e práticas ela amplia seu campo de atuação para além  do movimento auto-organizado negro para assumir e dedicar sua potência à uma legenda partidária que não é necessariamente negra, mas que flutua numa variedade de pautas políticas que podem ser englobadas num homogêneo entre minorias políticas e esquerda progressista. Ela representa uma exceção entre as mulheres periféricas e uma minoria dentro da Assembléia Legislativa.

[5]    O Cabelaço-PE é um coletivo de mulheres negras que existe há 5 anos atuando no enfrentamento do racismo, machismo e heterosexismo com atividades de educação e arte-política integradas. Realizamos retiros de imersão com base no autocuidado para mulheres negras aliados a estudos sobre direito, saúde integral, produção intelectual, comunicação e cultura da população negra. Escrito pelas integrantes Adriana Mendes – Mulher Negra e Lésbica formada em Ciências Sociais pela UFPE, Educadora Social –; e Cecília Godoi – mulher negra e bissexual, Cientista Social (UFPE) e mestra em Educação, Culturas e Identidades (UFRPE/FUNDAJ).

Bibliografia

COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. in:Revista Sociedade e Estado- volume 31 número 1 Janeiro/Abril 2016. Brasília.

DAVIS, Angela. A Liberdade é uma luta constante. São Paulo: BOITEMPO, 2018.

FRANCO, Marielle. UPP- A Redução da Favela a Três Letras: Uma Análise da Política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação. Rio de Janeiro: UFF, 2014.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. in: Revista Arte e Ensaios – número 32. Rio de Janeiro: UFRJ, 2016.

SILVA, Cidinha da. Baú de Miudezas, Sol e Chuva: crônicas. Belo Horizonte: Mazza Edições,2014.

Vídeos

Fala Marielle Franco. In: https://www.youtube.com/watch?v=meKepBFqSs8&t=163s:

Marielle Franco Presente! Roda de conversa Mulheres Negras Movendo Estruturas! Último Vídeo dela!

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