Cartaz de “Les plages d’Agnès”, 2009, de Agnès Varda
Os veículos metafóricos da criação: os caminhões, o labirinto, a respiga
As metáforas estruturantes do cinema de Varda fazem parte do processo estilístico da cinescritura, em conjunto com a encenação do Eu. Mas não devemos nos esquecer da influência indireta de outras mulheres, notadamente Marguerite Duras e, mais discretamente, de Nathalie Sarraute1Uma entrevista com Nathalie Sarraute é um dos bônus do DVD de Sans toit ni loi.. A influência de Duras, embora não seja explícita, é aparente em Les Glaneurs et la glaneuse como uma piscadela, nas sequências dedicadas aos caminhões: no início da jornada, quando um leitmotiv se faz presente (“eu voltarei”), no meio do filme, (capítulo 15: a estrada, Agnès e os caminhões) e no terço final (capítulo 27: Agnès pega os caminhões). Não é preciso dizer que pistas fílmicas espalhadas dessa forma constituem marcos que fundam o filme como um filme-trajeto, à maneira de Sans toit ni loi, que também possui o valor retórico da insistência, já que a metáfora do caminhão serve de contraponto à metáfora da respiga: a respiga é feita lentamente e a pé, a viagem motorizada é feita rapidamente, de forma lúdica, através da corrida entre o carro de Agnès e os caminhões que cruzam a autoestrada.
Em Duras e no filme apresentado como condicional, “o caminhão seria um filme”. Não podemos esquecer também da narração, totalmente fora de sincronia com a imagem, do uso alternado do travelling interno, dos planos externos fixos, da narração fascinante e desesperada constantemente colocada em questão pelo tema da loucura e pela metáfora de um mundo desumano, em que os seres humanos só se movem em veículos. Na obra de Varda, o caminhão se torna os caminhões, símbolos grotescos do nosso mundo cotidiano: mas, sob a aparente leveza do travelling em câmera subjetiva, encontra-se o mesmo desespero imperceptível de Duras.
De fato, o tema da viagem de carro vincula de forma divertida a relação da cineasta com a realidade. Nas sequências 15 e 27, a câmera captura os caminhões cercados por sua mão semicerrada: “mais uma mão que filma e outra que permanece aqui: e sempre os mesmos caminhões. Quero pegá-los. Para lembrar dos acontecimentos? Não, para brincar”2« Encore une main qui filme et l’autre qui est là : et toujours ces camions. Je voudrais les attraper. Pour retenir ce qui se passe ? Non, pour jouer ».. A mão da cineasta se fecha em torno do caminhão, entre a apreensão ansiosa da modernidade e a apropriação lúdica da mesma. Esse gesto também é uma metáfora de uma vida errante dedicada à criação, assim como um desejo de redescobrir a criança que ela já foi. Poderíamos nos perguntar por que esse gesto recorrente está espalhado por várias sequências graças à edição: essa figura retórica da insistência retoma o tema da perambulação (como em Sans toit ni loi), apresentando uma figura do eu em constante movimento, entre partidas e retornos e entre dois países. A imagem inscreve uma temporalidade complexa moldada pela figura da viagem. Uma jornada que não é sem volta, assim o tema do retorno marca uma das sequências mais importantes em Glaneurs.
Em suma, Les Glaneurs também é um “filme-trajeto” que incorpora a metáfora do caminhão como uma possibilidade descartada de um filme, um filme da velocidade, da violência. Durante a respiga, a camponesa prefere se curvar, se demorar e finalmente se perder. O labirinto, segunda metáfora estruturante, expressa o prazer de se perder e retorna ao esquema wolffiano do caminho criativo. O labirinto é a metáfora do fio e do filme que se desenrola em todas as direções sem um objetivo preconcebido. Para provar a persistência dessa metáfora estruturante, vamos voltar um pouco para o filme Jane B par Agnès V.. “O que fazemos, para onde vamos?”3« On fait quoi, on va où ? », Jane pergunta a Agnès. E Agnès responde: “dissemos que faríamos um filme como uma balada…”4« on avait dit qu’on ferait un film comme une ballade… ». Uma das sequências mostra Jane disfarçada de Ariadne desenrolando um carretel de linha em um labirinto, sob o olhar de um monstro que carrega… uma câmera.
Outras metáforas surgem: de um filme para o outro, a criação é vista como uma construção paciente, uma montagem ou um quebra-cabeça. É essa última imagem, a do quebra-cabeça, que Varda gosta de usar para evocar Les Plages d’Agnès5Entrevista com Agnès Varda. France Inter, 29 de janeiro de 2009. (As Praias de Agnès). Ela diz muito sobre o trabalho de exposição de si realizado em cada um de seus filmes, incluindo o mais recente. É importante notar, entretanto, que o caminho de Varda não leva necessariamente a esse último filme testamento, pois ele já está presente na forma de arte poética, ao longo de sua carreira.
Vejamos então como Les Glaneurs estabelece uma arte poética baseada na metáfora da respiga.
Desde o início, a edição e a composição final do filme adotam sequências que se cruzam de forma a enfatizá-las. Na quarta sequência, Agnès aparece carregando um feixe de trigo no ombro, tendo como pano de fundo a pintura La Glaneuse, de Jules Breton. Em Une trame nommée désir, Varda explicou a importância da edição que dá significado ao real filmado, e deu o exemplo de pessoas filmadas em Murs…Murs, que realmente se destacam de sua própria efígie retratada em uma parede de Los Angeles. E assim, vinte anos depois, Agnès estreou o primeiro filme explicitamente pessoal de sua carreira, em frente à pintura de Breton. O tema da descoberta falsamente ingênua é usado para revelar uma nova direção no cinema: não filmamos a realidade, mas nos filmamos descobrindo a realidade. A velhice é então mostrada como gatilho para o projeto autobiocinético: o cinema, como qualquer obra de arte, é visto como uma sublimação do mal-estar existencial, uma retrospecção em lugar de uma introspecção: esse é o significado da caminhada “para trás” que abre Les Plages d’Agnès.
Para maior clareza, é possível relembrar o paradigma triplo desenvolvido em Les Glaneurs. A respiga torna-se investigação social em um documentário engajado contra uma sociedade injusta: um enorme desperdício é feito às custas dos mais pobres que tentam recuperar o que foi desperdiçado. Essa é a primeira temática do filme e o elemento que o tornou tão célebre. Em um segundo plano temático, aparece a arte de ver, de observar e de filmar, das pinturas e dos artistas. A contemplação ativa toma amplitude, desde a leitura do retábulo de Beaunes de van Weyden à exumação, nos porões do museu de Villefranche, de uma pintura que retrata os respigadores fugindo da tempestade, na cena final. O terceiro tema nos interessa enquanto revelador da criação cinematográfica, que toma a escala de uma vida inteira: é o tema do autorretrato ou, mais precisamente, do autorretrato de Varda como criadora, em um processo que pode ser chamado de “autobiocinético”.
Em Les Glaneurs, os processos cinematográficos são portanto consecutivos aos meios técnicos utilizados e, assim como a Nouvelle Vague se apodera da câmera de 16 mm, Agnès se apodera da câmera digital, que lhe permite filmar tudo com mais leveza, inclusive a si mesma, e se divertir com seus efeitos “estroboscópicos e narcisistas”. A câmera posicionada à frente, mostra Varda deitada em um sofá e, ao invés do clássico fade to black, vemos sua mão cobrindo a lente. De fato, graças à câmera digital, o modo analógico, que é inseparável do modo digital de captura da imagem, substitui a impressão em filme, que é comumente associada a sua materialidade. O filme Les Glaneurs utiliza diferentes redes temáticas ao mesmo tempo, não necessariamente de forma simples ou sucessiva. A relação com o “eu”, o tempo, a morte e a criação se expressa por meio da respiga, que se torna uma metáfora totalizante. De um ponto de vista externo, é o espectador que conecta sequências temporalmente distantes. Do ponto de vista da cineasta, a ausência da película, associada à captura analógica, também significa que a edição é mais livre, mais flexível e mais rápida. É claro que o trabalho de edição permanece, mas o método de corte é diferente. O fato é que, devido a restrições de transmissão, o resultado final do processo de edição é transferido para um filme de 35 mm. Por outro lado, a metáfora está sempre ativa: a ausência de filme significa a ausência de tela, a penetração direta da realidade por meio da imagem. Ela se adequa ao real. Veremos que a pele, em particular a da mão, é o objeto paradoxal em que a barreira fantasmática do filme é apagada em favor do desejo de entrar no real.
Adentrar o horror
A mão é de fato o emblema do projeto autobiocinético. Ela aparece várias vezes no campo de visão da câmera, sempre intervindo de forma aparentemente aleatória, na curva desse caminho criativo que é o documentário sobre a respiga. Na sequência 10, a cineasta se entrega a um “exercício” – em termos de estilo, é claro – um desafio divertido com um toque de coquetismo fingido: filmar com uma das mãos a outra recolhendo uma batata em forma de coração.
Por um momento, a mão filmada se mostra em relevo, uma camada extra de espessura, um intermediário entre o mundo e o olho da câmera, assim como entre o espectador e o mundo. A mão é tanto um obstáculo quanto uma vitrine/tela para a realidade crua e frágil. A batata é filmada porque está ameaçada: exposta ao ar livre por um longo período, ela se torna imprópria para consumo. A batata morre, brota e apodrece: o apodrecimento é tema de Glaneurs deux ans après (Os Catadores e Eu: Dois Anos Depois) e esse apodrecimento lento é filmado em tempo real e exibido na tela tridimensional do curta-metragem “Patatutopia”, criado em 2003 para a Bienal de Arte de Veneza. A velhice, o tempo e a morte da batata expressam a angústia essencial: “desta vez, está tudo acabado”6« cette fois-ci, c’est tout à fait fini ». Essa é a única frase de uma pequena sequência “post-filmum”: “batata derradeira-batata sublime”7« patate ultime-patate sublime », um epílogo bônus do filme.
Os fios se entrelaçam em torno de uma palavra-chave que torna-se central para o filme: “projeto”. Velhice, viagens, respiga. Aqui, durante o “desempacotamento” da viagem ao Japão, Agnès exibe os produtos de sua coleta, pequenos objetos, em sua maioria imagens: gravetos e fotografias diversas8A sequência sobre o autorretrato é analisada em meu artigo Varda et l’autoportrait fragmenté”, publicado na Image and narrative.. Dentre eles, uma série de cartões postais de uma loja de departamentos de Tóquio, aos quais a narradora parece atribuir grande valor, diante do olhar espantado do espectador esnobe que há em nós: “Rembrandt um verdadeiro Rembrandt”9« Rembrandt, un vrai Rembrand », anuncia Varda com um misto de espanto e ironia. Um dos mais famosos autorretratos do mestre envelhecido (ele mesmo) aparece diante da mão que o manuseia. Tudo acontece muito rapidamente: a câmera desliza sobre a mão que segura o cartão e repentinamente se prende a ela, se perde, afunda, penetra na pele, enquanto a narrativa se torna mais séria. Ela evoca um projeto: “Em outras palavras, esse é o meu projeto: filmar de uma mão a outra mão… Adentrar o horror… Acho isso extraordinário”10« c’est-à-dire, c’est ça mon projet : filmer d’une main mon autre main… Rentrer dans l’horreur. Je trouve ça extraordinaire… ». Os muitos deícticos: “é”, “aqui está”, “e então”, “mas na verdade é”, indicam, em perfeita sincronia entre a narração e o objeto filmado, o processo de descoberta. “Voltar”: estamos dentro do paradoxo imaginário da irrupção da imagem no real, de sua apropriação e revogação. Além disso, o dispositivo da imagem é negado verbalmente em nome da vertigem existencial. Se levarmos a análise adiante, ela é, no sentido mais verdadeiro da palavra, uma demonstração, uma vez que torna o monstruoso visível. Tudo isso parece acontecer por acaso, por uma mudança metonímica entre o objeto filmado, o cartão postal – um avatar da obra de arte – e a mão que filma, que se torna um objeto essencial, bem diante de nossos olhos, a ponto de se tornar signo metonímico do “projeto”. Aqui, o “projeto”, um termo que designa o que está por vir, se funde com o presente performático da filmagem.
Na sequência do início do filme intitulado Agnès-vieillesse, ficam mais uma vez aparentes a mudança de sotaque e a mudança de tonalidade, de um tom suave a um mais grave. Entre a dêixis do filmado e a análise das sensações e emoções, percebemos agora um discurso mais reflexivo sobre o sentimento em relação à existência, na concepção sartreana do termo: “Sou uma besta… pior, uma besta que não conheço”11« Je suis une bête… pire, une bête que je ne connais pas ». A conclusão estética “trata-se de um autorretrato”12« c’est un autoportrait » liga duas temporalidades: a do passado, à qual pertence o pintor, e a do presente, ameaçada pela morte, à qual pertence a mão da cineasta.
Em Les Glaneurs, essa irrupção prematura de uma parte do corpo filmado, a mão, é, portanto, uma encenação de uma consciência do tempo e da morte em marcha e de seus impactos no corpo. A tomada de consciência horrorizada se torna, nesse instante, um projeto e devemos entender que ela é, no momento em que é filmada, recuperada na forma de projeto. Isso nos leva de volta ao tema subjacente do filme: a respiga, a recuperação, o encontro inesperado com um elemento do real, que pode ser transformado, imediata ou virtualmente, em obra de arte.
Portanto, precisamos voltar a um aspecto essencial do processo criativo de Varda: a escolha das artes visuais e da exposição como modalidades inclusivas da cinescritura.
De uma exposição à outra
Agora iremos analisar a delicada relação entre a “auto(bio)cinescritura” e a exposição, já que esse é o novo dispositivo icônico escolhido por Agnès Varda para representar o eu, nos últimos anos, com exceção de seu filme mais recente. Essa operação conjunta é articulada de duas maneiras: diacronicamente, temos a construção de um dispositivo retrospectivo, por meio da técnica da “citação” e da alusão à criação fílmica anterior; do ponto de vista sincrônico, a artista oferece ao visitante-espectador figuras do “eu”, habilmente dispostas no espaço tridimensional da exposição, que se cristalizam no dispositivo cenográfico e topográfico (a ilha, por exemplo) da exposição. O tema do luto torna-se o fio condutor que nos liga à retrospecção visível nos filmes, para além da exposição.
A exposição “Patatutopia”, apresentada em Veneza em 2003, por exemplo, retoma o tema das “batatas” desenvolvido em Les Glaneurs. Essa instalação fílmica concebida em três partes, com três fotos de uma batata apodrecendo, acompanhada por sons naturais, foi incluída na exposição de 2005, “3+3+15=3 installations”, na galeria Martine Aboucaya, em Paris.
De uma exposição a outra, motivos, temas e jornadas imaginárias tomam forma. Nós mostramos a ligação metafórica entre a batata, seu formato de “coração” e a pele que enruga e apodrece em um ritmo acelerado, tornando-se permanentemente seca. Agnès Varda, vestida com uma roupa de batata, abriu sua exposição “3+ 3+15”: uma maneira divertida de mostrar que a autora sabe como entrar na pele de um personagem! Da mesma forma, os dois elementos principais das exposições italiana e francesa, a “Tryptique de Noirmoutiers” e da instalação “Veuves”, foram repetidos na exposição “L’île et elle”, em 2006.
Metáforas estruturantes
As três exposições não apenas compartilham temas e motivos em comum, entrelaçando-se firmemente no tempo e no espaço para formar um único “tríptico”, mas extraem seus motivos dos quarenta anos de produção fílmica da autora. Temas como a pele, a batata, a mulher jovem nua, o apodrecimento estético da matéria e mesmo o conceito de tela múltipla são encontrados tanto diacrônica quanto sincronicamente na obra de Varda, constituindo uma forma única e complexa de autorrepresentação metafórica.
Dessa forma, a imagem na obra da cineasta aparece impressa em relevo junto com o cartão postal da jovem nua, lembrando o autorretrato invertido de Jane B. par Agnès V. Da mesma forma, a instalação com várias telas intitulada “Les Veuves de Noirmoutier” (As viúvas de Noirmoutier) é a última e mais forte imagem da artista como viúva. Imóvel em uma cadeira, cercada pelo silêncio e pela dor, Agnès é o ponto silencioso, o ponto negativo das confissões de outras viúvas.
Que processos foram usados para incorporar o filme à exposição? O principal elo entre os temas e processos obsessivos que compõem o “eu” criativo é a instalação da tela, ou melhor, das telas. A tela exposta forma uma moldura dentro da qual o curta-metragem exibido em loop brinca com as noções de “moldura-limite” e de “moldura-objeto”13Aumont, Jacques. L’Image. Paris: Éditions Colin, 2005. Enquanto na moldura-limite, a tela se abre para um sujeito móvel, uma viúva falando sobre seu luto ou caminhando pela praia, enquanto objeto-moldura, ela recebe, por exemplo, o título de “tríptico”, como é o caso do Triptyque de Noirmoutiers, e é inserida na exposição da mesma forma que outros elementos plásticos: colagens e materiais diversos…. Descendente direta da representação sacra, ela introduz essa dimensão, sem dúvida ironicamente, para filmar o real e permitir o desenvolvimento de três temporalidades diferentes e simultâneas. Uma praia vazia, um homem, dois e depois três personagens em uma cozinha. O olho está atrás da câmera, assim como o espectador, que também participa do processo fílmico. A crônica é negada pela eternidade do filme “em loop” e pela eternidade vivida pelo espectador. Varda propõe um vínculo invisível entre as duas facetas da cena fílmica. Além disso, há a presença de uma “piscadela”, uma citação cinematográfica indireta, pois esse tríptico não deixa de evocar o comentário sobre o político Julgamento Final em Les Glaneurs….
A instalação chamada “Les Veuves de Noirmoutier” também concentra a atenção do espectador na “construção” do dispositivo. Essa instalação em forma de tela, central para a dramaturgia da exposição, retoma o tema do luto. Em essência universal, ele revela a própria “descentralização” do discurso pessoal, próprio de Varda. Os visitantes sentam-se por um determinado período de tempo em cadeiras voltadas para nove telas, cada uma ligada a um fone de ouvido. As viúvas falam de sua tristeza, de seus maridos mortos, respondendo a perguntas que podemos apenas intuir. Abaixo, Agnès repousa solitária em sua cadeira. Ao lado, uma tela cita os créditos de Jacquot de Nantes que já mencionamos: Jacques deitado na praia olhando tristemente para a câmera. Diante desses dispositivos, os visitantes estão sujeitos portanto à temporalidade interna dos filmes, que podem abraçar simultaneamente com o olhar, mas podem ver apenas de forma sucessiva, se entrarem no jogo e reservarem um tempo para contemplá-los. Estamos particularmente interessados na forma como o testemunho é multiplicado, no efeito simbólico da irredutibilidade da dor e sua universalidade. Nós ficamos marcados pela beleza das letras, nascida de sua própria autenticidade combinada à triste beleza da paisagem.
Com os olhos repletos dessas extensões de areia, lama e mar, com ou sem pequenas figuras distantes em poses de respigadores, nos encontramos na ilha e na exposição. “O percurso proposto tem início em um túmulo e se encerra com as viúvas, testemunhos do luto e da melancolia que por vezes me domina…”14« Le parcours proposé commence par un tombeau et finit par des veuves, témoignages de ces deuils et de la mélancolie qui m’envahit parfois… », escreve Agnès sobre a reprodução do Triptyque, incluída no catálogo da exposição “L’île et elle”.
No entanto, testemunhamos uma mudança radical nos procedimentos relacionados ao roteiro: embora, em seus filmes, Varda tenha dado preferência às tomadas em travelling, nos deparamos aqui com tomadas estáticas de imagens e objetos reais inertes. A aniquilação do motivo cinético e a abolição do filme como uma representação imaginária se tornam sinal de uma vida que se detém, para melhor se oferecer ao olhar. O visitante se move, ao contrário do espectador. Ele é guiado, é claro, mas tem liberdade para ir e vir quando quiser.
Por fim, em relação à edição retrospectiva, um novo dispositivo estilístico é destacado: o da autocitação. “Les veuves de Noirmoutier” é, portanto, parte de um processo de intertextualidade (ou seja, de referências a filmes) por meio de citações. Trata-se, é claro, da tela de Veuves, que repete a última sequência do filme Jacquot de Nantes. O texto do catálogo da exposição é inestimável para nós pois, mais uma vez, enquadra essa imagem.
“Há também a mão que revela a mão de Jacques Demy, que filmei em 16 mm. Ele estava vestido com um jeans azul-acinzentado. Ele já estava muito doente. Ele pegou um pouco de areia em sua mão e deixou escorrer. Eu lhe pedi para fazer isso”15« Il y a aussi la main qui dévoile la main de Jacques Demy que j’ai filmée en 16 mm. Il était habillé d’un jean bleu gris. Il était déjà très malade. Il a pris du sable dans sa main et l’a laissé glisser. C’était à ma demande. ».
A citação fílmica apela para a memória do espectador que foi (ou poderia ser) visitante da exposição. Por meio dessa figura retórica, o espectador torna-se centro de um processo de convergência de signos, trazidos à tona para que ele possa interpretar a mensagem pessoal da artista.
Outra citação importante: no catálogo da exposição “L’île et elle”, encontramos Jane, ou “Jane B.”, de forma indireta. A maja desnuda, reclinada de frente é o tema desses cartões-postais populares e antiquados dos anos 1950, especialmente o da página 29, a mesma posição adotada por Jane vestida de Vênus em Jane B. Mas a beleza nua de Jane não aparece dessa forma para o espectador da exposição “L’île et elle”. A maja da ilha é de fato fotografada de costas e não de frente, seu perfil (parecido com o de Rosalie, de acordo com Agnès) revela um olhar malicioso. No cartão-postal, há pequenas portas de papelão, uma delas na altura das nádegas, que podem ser abertas sem ordem específica e em que é possível ver crianças, um homem se afogando, uma gaivota presa no óleo, a mão de Jacques… “Basta atravessarmos a superfície das imagens para ver outra coisa ou suscitar lembranças”16« Il suffit de traverser la surface des images pour voir autre chose ou réveiller des souvenirs », conclui Varda.
“A travessia de imagens” é portanto a nova forma assumida pelo discurso de Varda sobre si mesma. À essa travessia se soma um efeito de sobreposição, uma camada de imagens e memórias. O percurso labiríntico, que também faz parte do quebra-cabeça, não pode ser concebido de forma linear: sem um objetivo, ele abriga camadas e espessuras próprias da memória humana. A arte de se enunciar, de se filmar e de se expor resulta desse duplo movimento. O labirinto metafórico, a mise en abyme em Jane B. como em Les Glaneurs, é substituído pela jornada do espectador através da exposição-revelação, como uma confidência sussurrada e sempre indireta.
Passemos agora às metáforas que estruturam a transição da produção fílmica para a exibição. Vimos que o tema do luto foi cristalizado no dispositivo atemporal dos filmes exibidos na exposição “L’île et elle”, através inclusive da utilização de citações. Mas no plano da poética pessoal, a inscrição do eu é ainda mais sutil. De fato, o tema da pele é comum a todas as exposições:
“Duas ou três coisas a comentar antes de abordarmos o tripé de Noirmoutier: No chão, 700 kg de batatas, essa era a Patatutopia. As batatas foram filmadas no processo de decomposição, em três enquadramentos e um campo sonoro externo: gotas de água e sons diversos. A pele se decompõe diante de nossos olhos”17« 2 ou 3 choses à dire avant de parler du triptyque de Noirmoutier: Au sol, 700 kg de patates, ce fut Patatutopia. : Les patates étaient filmées en voie de décomposition, en trois cadrages et un hors champ sonore : gouttes d’eau, sons divers. La peau se décompose sous nos yeux. ». Em outra sala, toneladas de batatas eram expelidas por uma chaminé barroca: a mesma que Agnès havia fotografado anos antes, sem as batatas, na Itália18Ver o catálogo da exposição L’île et elle, edição da Fundação Cartier de Arte Contemporânea, 2007..
As batatas são um “assunto do coração”. Les Glaneurs et la glaneuse baseia-se no tema da decadência e o bônus da “patate ultime” acrescenta um toque irônico ao filme. No entanto, o tema da pele torna-se metáfora da produção fílmica e, portanto, do processo criativo de Varda: que confissão pode ser mais íntima que essa metáfora pessoal? A genealogia torna-se evidente: todos os vegetais filmados desde o curta-metragem na rua Mouffetard, todos os minerais, muros descascados e janelas danificadas encontrados em Jacquot de Nantes, são sempre inseridos de forma fugaz ou no tempo de uma música… Todas aquelas fissuras no teto filmadas na casa de Agnès e emolduradas como guaches e obras de arte… O cinema de Varda, e mesmo seu trabalho como fotógrafa, são compostos por esses estratos temáticos obsessivos e criativos: a abóbora e sua pele rachada em L’Opéra-Mouffe precedem, em trinta e dois anos, o coração de batata em Glaneurs. No final, o lançamento do filme Les Plages d’Agnès mostrou que Varda não havia desistido da cinescritura: sua preocupação com a coerência anda de mãos dadas com a incessante interação entre todas as formas de criação artística, desde que elas tragam uma reflexão interessante sobre a criação.
Tradução do francês de Clara Cerqueira
Mireille Brioude
Nascida em 1962, é formada em literatura moderna e tem doutorado pela Universidade de Paris VIII. Desde 2010, ela preside a associação que fundou, a Association des ami.e.s de Violette Leduc. É autora de várias publicações sobre Violette Leduc, notadamente o site violetteleduc.net e participou da publicação da nova edição de Ravages, uma edição especial da Imaginaire-Gallimard em 2023. Desde 2007, ela também tem contribuído para o estudo dos filmes e instalações de Agnès Varda, por meio de artigos on-line, nas revistas Sens Public e image and narrative. Interessada no trabalho inicial de Varda como fotógrafa na trupe de Jean Vilar, ela também publicou um estudo sobre fotografia no teatro.
Referências
Bibliográficas
Astruc, Alexandre. « La caméra-stylo » em L’Écran français no 144, 30 de março de 1948.
Aumont, Jacques. L’Image. Paris: Éditions Colin, 2005
Brioude, Mireille.Violette Leduc: La mise en scène du Je. Rodopi. Amsterdã. 2000
Cixous, Hélène; Gagnon, Madeleine; Leclerc, Annie. La venue à l’écriture. Union Générale d’éditions, collection 10/18, 1977, o. 22
Kleinberger, Alain. Sans Toit ni loi, cours du C.NE.D Agregação interna de lettresmodernes, 2003. Inédito.
Leduc, Violette. 2022. A bastarda. 1ª edição. Rio de Janeiro, RJ. Bazar do Tempo
Smith, Alison. Cinécriture and the power of images, Manchester University Press, 1998.
Ubersfeld, Anne. Lire le théâtre. Belin Sup, 1996
Woolf, Virginia. A Room of one’s own. Hogarth, London, 1929. Tradução de Clara Malraux, Une chambre à soi, éditions 10/18, p.8.
Filmográficas
1955: La Pointe Courte
1957: Ô saisons, ô châteaux (curta metragem)
1958: L’Opéra mouffe (documentário)
1958: Du côté de la côte (documentário)
1962: Cléo de 5 à 7
1963: Salut les cubains (curta metragem)
1965: Le Bonheur
1966: Les Créatures
1967: Oncle Yanco (curta metragem)
1967: Loin du Viêt Nam (documentário coletivo com Chris Marker, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Joris Ivens, William Klein e Claude Lelouch)
1968: Black Panthers (documentário)
1969: Lions Love
1970: Nausicaa (TV)
1975: Réponses de femmes (documentário)
1976: Plaisir d’amour en Iran (curta metragem)
1977: L’Une chante, l’autre pas
1977: Réponses de femmes (documentário)
1978: Daguerréotypes (documentário)
1982: Mur, murs (documentário)
1982: Documenteur
1982: Ulysse (curta metragem)
1983: Une minute pour une image (TV)
1984: Les Dites cariatides (documentário)
1984: 7p., cuis., s. de b., … à saisir (curta metragem)
1985: Sans toit ni loi
1986: T’as de beaux escaliers tu sais (curta metragem)
1987: Jane B. par Agnès V.
1987: Kung-fu master!
1991: Jacquot de Nantes
1993: Les Demoiselles ont eu 25 ans (documentário)
1995: Les Cent et une nuits de Simon Cinéma
1995: L’Univers de Jacques Demy (documentário)
2000: Les Glaneurs et la glaneuse (documentário)
2002: Les Glaneurs et la glaneuse… Deux ans après (documentário)
2003: Le Lion volatil (curta metragem)
2004: Ydessa, les ours et etc. (documentário)
2004: Cinévardaphoto (documentário)
2004: Der Viennale ’04-Trailer (curta metragem)
2007: Quelques veuves de Noirmoutier (curta metragem)
2009: Les Plages d’Agnès, production Cinetamaris.