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Agnès Varda, os caminhos da criação
Parte 1
Mireille Brioude

Cartaz de “Murs, Murs”, 1981, de Agnès Varda

De Violette Leduc a Agnès Varda: da encenação do Eu à cinética do Eu

Em um trabalho intitulado La mise en scène du Je1Brioude, Mireille.Violette Leduc: La mise en scène du Je. Rodopi. Amsterdã. 2000, abordamos a escrita de Volette Leduc, começando com um estudo estilístico do episódio conhecido como “tailleur anguille”, uma passagem de La bâtarde2Leduc, Violette. 2022. A bastarda. 1ª edição. Rio de Janeiro, RJ. Bazar do Tempo, de 1964, que concentra elementos que demonstram a proposição de uma teatralidade do texto. Colocamos a seguinte questão: como o “eu”, que não é autor nem pessoa, apenas instância de enunciação, torna-se, no ato de escrever a si mesmo, autor e ator do drama de sua própria vida? De fato, o texto transforma-se em palco, perceptível para o leitor graças a essa “voz” tão presente no texto de Leduc. A autobiografia se constrói a partir de uma forma específica de escrita entre o texto e a fala. A abordagem semiótica de sua obra leva a uma concepção pluripolar da autobiografia, resultante da interação entre o escritor, o “eu” enquanto objeto e sujeito da enunciação e, acima de tudo, o leitor, diretor de cena idealizado e idealizador.

Os trabalhos de Patrice Pavis e Anne Ubersfeld, que formam a base da semiologia teatral3Ubersfeld, Anne. Lire le théâtre. Belin Sup, 1996, nos incentivam a identificar no texto narrativo e autobiográfico de Leduc as redes de significação trabalhadas pelo código teatral. As teorias de Benveniste, aplicadas ao campo da criação literária, refletem sobre o sujeito que se autodenomina “eu”, flexionando essa cisão rumo a manifestações especificamente dramáticas.

A reflexão sobre o fenômeno do eu literário está associada à reflexão sobre o processo de escrita, um processo que é, por sua vez, inseparável de uma concepção “de gênero” da escrita. Em 1929, Virginia Woolf foi a primeira a se questionar sobre as mulheres e o romance e a propor uma definição relacionada ao gênero. Ela define, não o tema de sua futura conferência, mas o caminho mental e geográfico de seu pensamento pessoal sobre o assunto, da seguinte forma:

Tentarei demonstrar como cheguei à minha opinião sobre o quarto e o dinheiro… Irei desenvolver, da forma mais explícita possível, a cadeia de ideias que me levou a essa convicção… Quando um assunto se presta a muitas controvérsias – como é o caso de tudo que, de uma forma ou de outra, diz respeito ao “sexo” – não se pode esperar a verdade, é preciso indicar o caminho percorrido para chegar à opinião defendida4Woolf, Virginia. A Room of one’s own. Hogarth, London, 1929. Tradução de Clara Malraux, Une chambre à soi, éditions 10/18, p.8..

O golpe desferido por Virginia Woolf não está tanto na ideia que dá título ao ensaio, embora ela seja essencial, mas na expressão do seguinte postulado: a verdade na arte não é um objetivo, mas uma práxis. No livro de Woolf, acompanhamos a jornada geográfica e metafórica de uma mulher culta, do início do século XX, por ambientes culturais reservados a homens. Woolf propõe uma nova hermenêutica do sujeito feminino, colocando-o radicalmente em dúvida e em cena, para em seguida rastreá-lo em uma investigação sócio-histórica magistral.

Fica claro, então, que o trabalho criativo das mulheres se distingue do trabalho dos homens por sua propensão à busca criativa e que a metáfora é o veículo da expressão de uma arte poética no feminino.

Vamos denominar “cinética” essa aliança entre a “kinê”, movimento, e a “poïesis”, a criação resultante desse movimento. Uma criação que combina cinema e escrita, guiada por uma busca que não tem outro objetivo além de si mesma: a forma-significado de uma reflexão do sujeito criativo sobre si mesmo. Particularmente (mas não exclusivamente) feminino, o cinetismo rejeita normas estéticas e integra os dados sócio-históricos de gênero ao processo de criação e representação. Nesse sentido, as diretoras e escritoras são herdeiras de uma atitude política e estética que é exclusiva das mulheres.

Além disso, na literatura francesa, a questão de um “território feminino”, seja ele reivindicado ou simplesmente ocupado, parece essencial. O local da criação feminina não é mais uma circunstância, mas a própria linguagem: testemunhamos a criação de um mito moderno, o mito do “outro sujeito”, da “outra linguagem”, explorado por Irigaray, Wittig e Cixous. O questionamento sobre a pesquisa e a fortiori sobre a ameaça do “eu” feminino adentrou o campo literário tardiamente, na década de 1970, sob a influência da psicanálise lacaniana. Hélène Cixous propõe uma poesia do sujeito e, em La venue à l’écriture, segue com humor o caminho da metáfora:

Para os filhos do Livro, a busca, o deserto, o espaço inesgotável, desencorajador, encorajador, a marcha adiante. Para as filhas da dona de casa, a perambulação pela floresta… Então, quando tudo está perdido, significado, signo fixo, chão, pensamento… É nesse momento que as escritas te atravessam e canções de pureza inaudita te percorrem5Cixous, Hélène; Gagnon, Madeleine; Leclerc, Annie. La venue à l’écriture. Union Générale d’éditions, collection 10/18, 1977, o. 22.

Com essas palavras, Cixous funda, ao que parece, uma nova abordagem da criação feminina: nenhum objetivo e nenhuma busca, a não ser dentro de si mesma. As “filhas da dona da casa” certamente precisam de um quarto próprio e de um pouco de dinheiro, mas, acima de tudo, adoram perder-se nas florestas.

No início da década de 1970, a crítica feminista moderna adotou a literatura como base de uma abordagem polêmica do tema da escrita.

O filme de Agnès Varda Les Glaneurs et la glaneuse (Os catadores e Eu) chegou às telas em 2000: a transição entre as artes, do teatro à autoficção, tema sensível em Leduc, ocorre ao longo de toda a carreira cinematográfica de Varda, assim como em suas exposições mais recentes, locais complexos de representação.

A carreira de Varda é particularmente interessante. Inicialmente, formou-se como fotógrafa, trabalhando ao lado de Jean Vilar. À fotografia e ao teatro, se seguiu então uma surpreendente filmografia, composta de documentários e curtas-metragens. Quanto aos longas-metragens, eles oscilam entre ficção, investigação e documentário. Antes de definir a noção de cinescritura cunhada por Varda, iremos examinar os desafios estéticos de seus documentários, com base em uma dupla reflexão sobre a realidade e a assinatura da própria autora.

Jeanne Moreau e Gérard Philippe em “Prince de Hombourg”, 1952, Festival de Avignon. Foto: Agnès Varda

Um de seus primeiros e mais cativantes documentários, l’Opéra-Mouffe (A Ópera Mouffe), relata indiretamente a gravidez da autora e mistura a chamada reportagem com metáforas e fantasias, que encontrariam seu caminho quarenta anos depois em Les Glaneurs et la glaneuse. Nesse primeiro documentário, já é possível notar toda a complexidade do cinema de Varda: abordagem política da realidade através de pessoas comuns, uma construção poética baseada na metáfora da comida exposta no mercado da rua Mouffetard, a encenação de um eu feminino que fantasia sobre a nova vida que ela está prestes a trazer à luz.

A diversidade desses “documentiras”, usando a expressão tornada célebre pela própria Varda, é fascinante. Eles variam de reportagens falsas sobre um determinado lugar a documentários sobre diretores de documentários. Há ainda os filmes de longa-metragem, como o célebre Murs Murs (Muros e Murmúrios), que flertam com a autoficção. Sabemos que, mesmo ao falar sobre o outro, Varda fala sobre si mesma, mas de maneira generosa e não narcisista: o retrato de Ydessa é uma prova disso6Ver a filmografia abaixo. Nota da tradução. Ao longo de sua carreira, camadas temáticas e poéticas tomaram forma, ao mesmo tempo que redes de significado se construíram no plano sintagmático. É fascinante ver até que ponto a obra de Varda combina riqueza, criatividade e inovação com uma coerência muito forte de temas e motivos que estruturam toda a sua obra.

A invenção da cinescritura, por sua vez, é um processo teórico apoiado pela prática da direção. Distante da caméra-stylo evocada por Alexandre Astruc7Astruc, Alexandre. « La caméra-stylo » em L’Écran français no 144, 30 de março de 1948. e pelos proponentes da Nouvelle Vague, de que Varda foi considerada precursora, a cinescritura traz uma definição de cinema que se autodenomina escritural, no sentido de que a imagem é um signo, assim como a palavra, em que a representação tem precedência sobre a mimese. Não importa se os processos são relacionados à câmera ou à caneta e se o meio é o filme ou o papel. Ousamos acrescentar que a cinescritura se refere ao próprio processo de criação artística.

Examinaremos, portanto, os aspectos essenciais da poética de Varda em três etapas. Do ponto de vista do gênero, o desejo de filmar o feminino (encarnado especialmente em Jane Birkin) e o desejo de filmar o masculino (seu companheiro Jacques Demy) se realizam através de temas como a perambulação e o luto.

Mais adiante, veremos como a cinescritura endossa metáforas sucessivas, como a velocidade (evocada pelos caminhões), a respiga e o labirinto, entre muitas outras. A particularidade do cinema de Varda surge, então, como a criação de uma forma particular de encenação do eu, uma espécie de autobiocinética, cujo ponto culminante atual é seu último filme, Les Plages d’Agnès.

Por fim, veremos o ápice procedural de sua poética com o deslocamento do campo de criação do filme para a exposição, último lugar de encenação de e por Varda.

Filmar o feminino e filmar o masculino sob o signo da perambulação e do luto

Um cinema feminino: a expressão não é trivial quando se trata de Agnès Varda, na medida em que revela uma consciência particular, a de um “eu que filma o Outro”, ou melhor, a de um eu feminino que filma o Outro, homem ou mulher, objeto de desejo. A problemática do desejo ligado ao fascínio estético e amoroso implica um sujeito filmando sua relação com o Outro, uma relação recíproca e viva, ainda mais viva que aquela estabelecida entre o escritor e seu personagem.

Na obra de Varda, o feminino é, antes de tudo, a relação criativa que uma mulher mantém com outras mulheres, ao discorrer sobre feminino em termos de doença, perambulação e precariedade, bem como através de seus aspectos luminosos: beleza, prazer, energia vital e erótica. Cada um à sua maneira, os seres investigados por Varda trabalham uma outra fronteira, aquela entre a pessoa real, de carne e osso, e o ator ou a atriz. Além disso, exploraremos o limite entre aquele que filma e aquele que está sendo filmado. Essa reciprocidade ocorre no nível profissional e criativo e o personagem, tornando-se ator, constrói, de forma concomitante, a personagem da diretora.

O filme é o cenário onde ocorrem esses vários processos estilísticos, que são metáforas para a criação a dois. Desde seus primeiros filmes, Varda introduziu as figuras da perambulação e do travelling, associadas a uma visão particular do corpo feminino.

Cléo de 5 à 7 (Cléo das 5 às 7), de 1962, traz a personagem feminina Cléo, atormentada por uma doença. Apesar de tudo, a grande beleza da atriz torna-se ainda mais impressionante, pois é trabalhada através de um mito pictórico bastante caro a Varda: a jovem e a morte. Cléo de 5 à 7 conta a história de um momento na vida de uma mulher que enfrenta o câncer, na forma de uma crônica que abrange as duas horas indicadas no título. Cléo vaga pelas ruas de Paris com os dias contados. O tempo torna-se forma-significado, selando a aliança entre o tempo da ficção e o tempo da projeção. Além disso, testemunhamos o desenvolvimento ainda tímido do processo estilístico central dos filmes de Varda: a tomada em travelling como metáfora da perambulação. O travelling parece relutar em se construir. No início do filme, na cena da “escadaria”, os movimentos verticais da câmera, artificialmente bruscos, precedem um travelling da rua, em um ligeiro mergulho, que se cola à personagem, preservando inclusive o realismo do toldo que por vezes encobre o movimento da silhueta de Cléo. O travelling é portanto uma forma-significado importante da perambulação e da confusão da jovem: para onde ela está indo? Seu percurso seria uma corrida precipitada, uma demonstração desesperada de energia vital ou uma corrida rumo à morte?

Outra personagem feminina importante é Mona, de Sans Toit ni loi (Os Renegados): em contraposição a Cléo, Mona é suja, cheira mal, mas é “bonita” na opinião dos personagens masculinos que cruzam seu caminho. A presença da cineasta fica evidente desde o início, nos fazendo deixar a ficção para trás: a narração constitui, por si só, uma estrutura narrativa independente da imagem (mesmo que, é claro, aparentemente busque casar-se com ela), dissociando assim a atriz de “seu” set, fazendo com que o espaço filmado adquira, por assim dizer, um “duplo sentido”. Em Sans Toit ni loi é estabelecido um discurso de várias vozes, a da câmera e aquela dos travellings, com seus diferentes sentidos. A câmera, acompanhada pela narração de Varda, não se contenta em seguir a jornada fatal de Mona, parando de tempos em tempos para ouvir as pessoas que passam por ela. Em uma entrevista, Varda afirma que o filme foi concebido como uma grande série de viagens acompanhadas de músicas (doze, para ser exata), editadas em alternância, dando lugar às narrativas. O esquema narrativo clássico que segue a lógica do encontro ou da reviravolta é radicalmente derrubado e tornando o ato de caminhar a razão de ser do filme: caminhar ou vagar…

Imaginei uma série de travellings contínuos-descontínuos, com um elemento no final de cada um deles que se repetiria no início do próximo, como um gancho virtual separado por oito ou dez minutos. Por exemplo, uma ferramenta agrícola enferrujada no final de um dos travellings e uma outra ferramenta agrícola no início do próximo. Ou ainda uma cor ou um material: um pedaço de madeira, uma parede de gesso ou uma cabine telefônica. Eu suspeitava que a vaga memória das imagens ligadas à permanência delas na retina faria com que o espectador sentisse, se não percebesse de fato, a continuidade dessa longa marcha de Mona rumo a sua própria morte, que configura a estrutura da narrativa e a forma do filme em si8Sans Toit ni loi, Cinétamaris, 1985. Entrevista com Varda em anexo do DVD, « Música e travellings » (transcrição nossa)..

O travelling é um procedimento da cinescritura que dispõe uma variedade de sinais na tela e transmite uma mensagem em si, uma metáfora da perigosa jornada de Mona. Varda brinca com sua personagem em movimento, parecendo por vezes esperá-la, atenta ao momento em que ela entrará no campo de visão da câmera. Ela também pode abandonar Mona a seu triste destino, como na cena do estupro, em que o travelling se afoga nos galhos da floresta, escapando, ao que parece, da crueldade do ato. Além disso, ao filmar Mona, a câmera frequentemente adota uma tomada em travelling da direita para a esquerda: a mudança da direita para a esquerda é simbólica porque “marca o caminho de Mona na direção errada, contra a norma ocidental que lê da esquerda para a direita, construindo desse modo o senso comum”9Smith, Alison.Cinécriture and the power of images, Manchester University Press, 1998..

Léon Gischia, Gérard Philipe e Jean Vilar, Avignon, 1951. Foto: Agnès Varda

Por fim, o travelling constitui uma denúncia: Mona congela até a morte diante de nossos olhos, tornando-nos testemunhas impotentes e cúmplices involuntários da indiferença das pessoas ou, na melhor das hipóteses, cúmplices da investigadora que se manifesta através da narração. O filme-investigação admite assim suas próprias limitações, ele não é mais criterioso ou eficaz que todas as pessoas que se depararam com Mona sem saber que ela corria perigo de vida. Para concluir, temos a análise de Alain Kleinberger: “Sans Toit ni loi, seguindo o exemplo dos maiores filmes da história do cinema, é de fato um filme-trajeto e o caminho é percorrido em diversos níveis: geográfico, físico (a caminhada), intelectual (a investigação), biológico (morte) e metafísico10Kleinberger, Alain. Sans Toit ni loi, cours du C.NE.D, Agregação interna de lettresmodernes, 2003. Inédito..”

Jane B. e a arte da carícia

O feminino, visto como um corpo contra a morte, também é personificado na atriz e amiga de Varda, Jane Birkin. O filme Jane B. par Agnès V. (Jane B. por Agnès V.) oferece um olhar não convencional, no qual a personagem Jane Birkin desempenha todos os papéis, começando pelo próprio, e cujo projeto é definir em imagem espelhada o papel da diretora. O título é uma construção em imagem espelhada, primeiro efeito anunciado. Desde os primeiros momentos, Agnès comenta: “não importa que às vezes eu apareça no campo de visão da câmera”. É por meio dessa relação com o Outro em Jane B que o “projeto” que será o de Varda em les Glaneurs toma indiretamente forma: contar a si mesma. O filme tem início e fim com uma reflexão sobre a passagem do tempo e a juventude. No final, comemoramos o quadragésimo aniversário de Jane. Retomando a posição que ocupava na primeira sequência principal, sentada no centro da pintura (um quadro flamengo do século XVII), Jane ganha vida: “Sim, eu me lembro exatamente do meu trigésimo aniversário… Eu estava só…”. A montagem faz um enquadramento cuidadoso do retrato, inscrevendo-o em uma temporalidade artificial, dez anos antes, com a mise en abyme do aniversário de trinta anos da atriz. Leve e sério ao mesmo tempo, o elogio à velhice e à maturidade forma a base do retrato duplo de Agnès e Jane.

Ora, parece que filmar o feminino é tornar-se portadora do desejo de expressar o corpo da Outra mulher. Trata-se mais uma vez da forma-sentido assumida pelo travelling, uma verdadeira carícia ao corpo de Jane. O tema do tableau vivant, leitmotiv do filme, serve aqui como pretexto ou pré-cena: “é uma imagem muito calma, fora do tempo”, diz a narradora, introduzindo Jane no quadro, imobilizando-a e colocando-a à distância. O travelling que percorre seu corpo torna-se uma viagem poética e sobrenatural por um universo macroscópico, composto pelos contornos do corpo nu de Jane como única paisagem, em um fundo de seda e música. O travelling está associado ao plano fechado, outra característica estilística da cinescritura de Varda.

Na verdade, o filme apresenta sempre a mesma discrepância entre o projeto declarado aqui – homenagear Jane – e um projeto mais profundo: registrar a relação da diretora com a beleza e a morte. O tema da beleza, nesse sentido, é particularmente ambíguo: no início do filme, Varda diz a Jane que ela é bonita e por isso deseja fazer seu retrato. Finalmente, essa leve carícia que solda a relação artística e íntima entre o eu que filma e o outro filmado assumirá um significado trágico em Jacquot de Nantes, quando o corpo do homem amado será filmado. A dupla tendência de filmar o corpo feminino e o corpo masculino começou em 1990, em uma época em que o cinema e a escrita de Varda foram marcados pelo luto de Jacques Demy. O projeto de Jacquot de Nantes é “recordar memórias”, como a própria Varda diz, e significar a perda irrecuperável desse ser, através de imagens de seu olho cansado e de sua pele danificada pelo tempo e pela doença. Em Jacquot de Nantes, essas breves sequências, às vezes próximas do plano único e intercaladas ao longo da narrativa, são ao mesmo tempo sinais de pontuação, lembretes e perspectivas. Essa pontuação é uma forma discreta, mas pungente, de expressar a morte de um ente querido. Em uma dessas sequências, Agnès faz um plano bastante fechado da pele doente de Jacques. Ouve-se uma canção melancólica: “après toi je n’aurai plus d’amour” (Depois de ti, não terei mais amor). A sequência segue para uma foto do jovem Jacques, fascinado por sua vitrola, de onde ecoa uma canção: “après toi je n’aurai plus d’amour” (“Depois de ti, não terei mais amor”). A notável sequência final apresenta os créditos e o encerramento, em um processo de recordação caro à autora. Jacques Demy é filmado à beira mar: o som das ondas… O cineasta de cabelos grisalhos, vestindo um terno de brim, aparece deitado de lado. Ele nos observa. Plano fechado de sua mão pegando areia e deixando-a escapar entre os dedos. O simbolismo é óbvio, mas funciona como um prólogo para um filme que, de outra forma, não passaria de uma homenagem rasa. Por fim, a cena final usa o mesmo enquadramento: o cineasta em uma praia, de costas olhando para o mar. O som das ondas sobre a areia. A voz de Agnès Varda: ela canta: “Des mots et merveilles, vents et marées. Au loin déjà la mer s’est retirée… et toi comme une algue… deux petites vagues pour me noyer”. (Palavras e maravilhas, ventos e marés. Ao longe o mar já recuou… e você como alga marinha… duas pequenas ondas a me afogar.” O rosto de Demy é enquadrado em uma rápida panorâmica. O mar sobre a areia. O rosto de Demy reaparece no final da panorâmica e sorri para nós,desviando o olhar em seguida.

A mão, a pele, o olho em foco, o cabelo: assim entendemos, e isso chamou a atenção dos críticos, a ligação com o projeto profundo de Glaneurs, o autorretrato e o trabalho de memória e homenagem ao ente querido. Jacques se encontra indiretamente no espelho em frente ao qual Agnès penteia o cabelo, alguns anos depois, mostrando os mesmos sinais de idade. É certo que em Les Glaneurs não há alusão direta ao vínculo que uniu a cineasta a Demy, mas a recorrência do mesmo processo permite que esse tema seja duplamente inscrito: Varda fala de si mesma apenas por meio da evocação de outros.

Cléo, Mona, Jane e Jacques: a cinescritura, sob o signo do desejo e do luto, favorece processos como o travelling e o reenquadramento, acentuando a edição, que se torna cada vez mais sofisticada, e jogando com a encenação dos processos de representação.

Tradução do francês de Clara Cerqueira



Mireille Brioude
Nascida em 1962, é formada em literatura moderna e tem doutorado pela Universidade de Paris VIII. Desde 2010, ela preside a associação que fundou, a Association des ami.e.s de Violette Leduc. É autora de várias publicações sobre Violette Leduc, notadamente o site violetteleduc.net e participou da publicação da nova edição de Ravages, uma edição especial da Imaginaire-Gallimard em 2023. Desde 2007, ela também tem contribuído para o estudo dos filmes e instalações de Agnès Varda, por meio de artigos on-line, nas revistas Sens Public e image and narrative. Interessada no trabalho inicial de Varda como fotógrafa na trupe de Jean Vilar, ela também publicou um estudo sobre fotografia no teatro.

Referências

Bibliográficas

Astruc, Alexandre. « La caméra-stylo » em L’Écran français no 144, 30 de março de 1948.

Aumont, Jacques. L’Image. Paris: Éditions Colin, 2005

Brioude, Mireille.Violette Leduc: La mise en scène du Je. Rodopi. Amsterdã. 2000

Cixous, Hélène; Gagnon, Madeleine; Leclerc, Annie. La venue à l’écriture. Union Générale d’éditions, collection 10/18, 1977, o. 22

Kleinberger, Alain. Sans Toit ni loi, cours du C.NE.D Agregação interna de lettresmodernes, 2003. Inédito.

Leduc, Violette. 2022. A bastarda. 1ª edição. Rio de Janeiro, RJ. Bazar do Tempo

Smith, Alison. Cinécriture and the power of images, Manchester University Press, 1998.

Ubersfeld, Anne. Lire le théâtre. Belin Sup, 1996

Woolf, Virginia. A Room of one’s own. Hogarth, London, 1929. Tradução de Clara Malraux, Une chambre à soi, éditions 10/18, p.8.

Filmográficas

1955: La Pointe Courte

1957: Ô saisons, ô châteaux (curta metragem)

1958: L’Opéra mouffe (documentário)

1958: Du côté de la côte (documentário)

1962: Cléo de 5 à 7

1963: Salut les cubains (curta metragem)

1965: Le Bonheur

1966: Les Créatures

1967: Oncle Yanco (curta metragem)

1967: Loin du Viêt Nam (documentário coletivo com Chris Marker, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Joris Ivens, William Klein e Claude Lelouch)

1968: Black Panthers (documentário)

1969: Lions Love

1970: Nausicaa (TV)

1975: Réponses de femmes (documentário)

1976: Plaisir d’amour en Iran (curta metragem)

1977: L’Une chante, l’autre pas

1977: Réponses de femmes (documentário)

1978: Daguerréotypes (documentário)

1982: Mur, murs (documentário)

1982: Documenteur

1982: Ulysse (curta metragem)

1983: Une minute pour une image (TV)

1984: Les Dites cariatides (documentário)

1984: 7p., cuis., s. de b., … à saisir (curta metragem)

1985: Sans toit ni loi

1986: T’as de beaux escaliers tu sais (curta metragem)

1987: Jane B. par Agnès V.

1987: Kung-fu master!

1991: Jacquot de Nantes

1993: Les Demoiselles ont eu 25 ans (documentário)

1995: Les Cent et une nuits de Simon Cinéma

1995: L’Univers de Jacques Demy (documentário)

2000: Les Glaneurs et la glaneuse (documentário)

2002: Les Glaneurs et la glaneuse… Deux ans après (documentário)

2003: Le Lion volatil (curta metragem)

2004: Ydessa, les ours et etc. (documentário)

2004: Cinévardaphoto (documentário)

2004: Der Viennale ’04-Trailer (curta metragem)

2007: Quelques veuves de Noirmoutier (curta metragem)

2009: Les Plages d’Agnès, production Cinetamaris.

Notas

  • 1
    Brioude, Mireille.Violette Leduc: La mise en scène du Je. Rodopi. Amsterdã. 2000
  • 2
    Leduc, Violette. 2022. A bastarda. 1ª edição. Rio de Janeiro, RJ. Bazar do Tempo
  • 3
    Ubersfeld, Anne. Lire le théâtre. Belin Sup, 1996
  • 4
    Woolf, Virginia. A Room of one’s own. Hogarth, London, 1929. Tradução de Clara Malraux, Une chambre à soi, éditions 10/18, p.8.
  • 5
    Cixous, Hélène; Gagnon, Madeleine; Leclerc, Annie. La venue à l’écriture. Union Générale d’éditions, collection 10/18, 1977, o. 22
  • 6
    Ver a filmografia abaixo. Nota da tradução
  • 7
    Astruc, Alexandre. « La caméra-stylo » em L’Écran français no 144, 30 de março de 1948.
  • 8
    Sans Toit ni loi, Cinétamaris, 1985. Entrevista com Varda em anexo do DVD, « Música e travellings » (transcrição nossa).
  • 9
    Smith, Alison.Cinécriture and the power of images, Manchester University Press, 1998.
  • 10
    Kleinberger, Alain. Sans Toit ni loi, cours du C.NE.D, Agregação interna de lettresmodernes, 2003. Inédito.

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