Numa obra pouco lida e discutida no Brasil (infelizmente), denominada Questão de método (Sartre 1972), o filósofo Jean-Paul Sartre falava de um certo historicismo marxista nada racional, que ele acusava de ser antidialético, já que prejulgava em lugar de analisar. Não por outra razão, Sartre escusava o termo materialismo dialético (que ele via como uma absolutização reificada da dialética), mas defendia o materialismo histórico. Este pequeno texto não é sobre Sartre, então não vou discutir os embates entre a ala fenomenologista existencialista de esquerda versus o materialismo dialético, mas começo o texto, que em termos de metodologia geral, e continuo a me colocar ao lado dos materialistas dialéticos, no entanto, com relação à reificação e à dogmatização de uma teoria, Sartre tinha sobradas razões.
E o que é a reificação de uma teoria? É quando esta teoria se torna uma realidade à parte. Assim como os moinhos diante de Quixote se tornam verdadeiros gigantes, o que vale são os pré-juízos da teoria que apenas classificam uma realidade sem fazer a síncrese, a síntese e a análise. Há um prejulgamento teórico para o qual a realidade tem que se encaixar, em geral, de forma moralista e maniqueísta, e todo aquele que discordar desta forma de se analisar a história tem que ser denunciado como um ímpio e traidor.
Esta forma de prejulgamento, apenas pretensamente científica, tem dois inconvenientes. O primeiro é que suprime fatos. Trabalha sempre por aproximação. Todos aqueles fatos que forem contra a minha conclusão, eu os ignoro, para que meu pré-juízo faça sentido, e realço aqueles que são a meu favor. A todos os que são contra, basta eu apresentar a falácia: ad hominem, e acusá-los de serem inimigos da minha causa, para dar ao meu juízo apodítico, a forma perfeita de um julgamento moral, ao qual não cabe dúvida. O segundo inconveniente é que, quando este tipo de pré-juízo moral se torna prática cotidiana, a preguiça de pensar cria imensos guetos de pensamento único que transformam partidos em seitas – não há espaço para dúvidas, em casos muito complexos.
Tal raciocínio se aplica ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, por exemplo, onde ocorre um debate encarniçado sobre desdobramentos de um fato, cujo desenrolar, nenhum ser sobre o planeta pode ter, uma previsão segura. Não obstante, nos confrontamos com argumentações que expressam uma certeza real: nas seitas dos juízos apodíticos, qualquer dúvida sobre este sofisma tem que ser combatida como uma conspiração de quintas colunas egressos da CIA. Sartre exemplificava essa situação ao analisar posições da esquerda europeia, na década de sessenta: as invasões da URSS na Hungria, em 1956, e na Tchecoslováquia, em 1968. Dias após a incursão terrestre dos tanques do Pacto de Varsóvia, ambos os lados da contenda teórica da esquerda – os stalinistas e os trotskystas – já tinham a convicção sobre os fatos. Para os stalinistas, a URSS estava salvando o mundo da OTAN, da contrarrevolução e do capitalismo; do outro lado, os trotskystas, objetivamente, sustentavam que a burocracia stalinista de um país de capitalismo de Estado afogava em sangue a experiência revolucionária de dois povos. Sartre apenas perguntava: como poderiam ter tanta certeza, em poucos dias, de fatos, cuja compreensão e análise nos escapam até hoje?
Os movimentos em 56 e 68, disseminados nos ex-Estados de socialismo real, que não passaram por uma revolução e tiveram regimes pró-URSS instituídos a partir da guerra de libertação do Exército Vermelho, continham fatores tão complexos que iam desde a tentativa de restauração de um modelo de mercado (movimentos dissidentes da esquerda pró autonomia e participação política) a movimentos de libertação nacional, os quais nutriam um ódio secular à dominação anterior do Império Russo. Nada disto entrava na balança ou era simplesmente considerado, já que os juízos apodíticos não ligam para os fatos. Se os fatos não se encaixam em meus argumentos, danem-se os fatos!
Numa coisa Sartre estava muito correto: isso não é dialética! Nunca foi. Marx e Lênin nunca analisaram história assim e nunca elidiram os povos e as classes sociais em suas análises. O internacionalismo proletário e o princípio da guerra justa e injusta não são um princípio abstrato, amorfo, “dado para sempre”, em absoluto. Estão ligados à análise da situação concreta. Não por outra razão, Lênin, tornando-se pequena minoria no movimento social-democrata em 1914, junto com Rosa Luxemburgo, Liebknetch e outros poucos, denunciou, desde o primeiro segundo, as guerras injustas nacionais e nacionalistas.
Lênin nunca teve dúvida sobre que “pátria” defender na batalha entre um imperialismo dominante (o inglês) e outro que tentava ascender (o alemão). A consigna baseada na análise da realidade e do caráter de classes era, é e será: o proletariado não pode apoiar nenhuma guerra em que os trabalhadores se matem em nome dos seus patrões. Paz entre nós, guerra aos senhores! Que as nossas balas sejam destinadas aos nossos generais! Lênin foi caçado como um cão, tachado de espião alemão, sua cabeça estava a prêmio e, se fosse preso durante a guerra, seria executado. Rosa Luxemburgo, sua parceira de primeira hora na luta contra todas as guerras imperialistas, foi executada com um tiro na cabeça. Estas posições têm pouco, na verdade nada que ver, com os juízos apodíticos sobre a invasão (sim, o nome é invasão) da Rússia contra a Ucrânia. O que a esquerda brasileira passou a utilizar para analisar a realidade, na verdade, são muitas coisas, menos o marxismo e muito menos dialético.
O campismo no Brasil assemelha-se, assim, muito mais à escola reacionária “histórica” alemã positivista, que vê o mundo “a partir da geopolítica” e dos aparatos estatais e militares. Essa escola, à primeira vista, parece realista, mas, no fundo, é positivista e reacionária. Primeiro, porque a história é feita pelas grandes lideranças, pelos grandes “estadistas” e os “grandes generais” que comandam seus exércitos. Buchas de canhão, os povos são um mero detalhe. Essa paixão demonstrada por parte da esquerda brasileira pelo ex-agente da KGB e que hoje faz parte de uma elite que assaltou o Estado russo, Vladimir Putin, manifesta a mesma raiz positivista. A história é feita pelos grandes líderes. Nem Marx, nem Lênin, muito menos Sartre acreditavam nisso. Nessas circunstâncias, o povo, as classes sociais e os coletivos de pessoas desaparecem: simplesmente não são importantes. Não por acaso, nas últimas semanas escutei as maiores banalidades serem tratadas com ares científicos: “na análise da história temos que ser pragmáticos” – como se o pragmatismo não fosse também uma ideologia e uma superestrutura capaz de justificar tudo, até Hitler. “Não há moralismo na análise histórica”. É óbvio que não há, mas são vocês, senhores, que escolheram um lado como portador de uma moral supra histórica, e assim querem nos convencer que uma guerra de invasão é boa, desde que seja empreendida por um inimigo do meu inimigo.
Poderia encher páginas com a coleção de frivolidades apodíticas que dão uma aparência moral progressista ao pré-juízo que existe por trás do apoio a esta guerra, mas fugiria largamente do escopo deste artigo. A análise “geopolítica” é apenas pretensamente científica, porque é, acima de tudo, reacionária. Através dela, somem os verdadeiros atores coletivos e tudo fica subsumido a uma disputa entre potências, nas quais devemos tomar um lado como numa decisão de Copa do Mundo. A Real Politik, sem dialética, transforma-se no fim da história, onde não há opção possível. No caso concreto da invasão russa, a primeira coisa a se sacrificar, na análise, é a historicidade real e dialética (não esta reacionária, tomada de empréstimo à escola alemã e dissimulada como “geopolítica” marxista). E não! A Ucrânia não é nem uma invenção de Lênin, nem um acampamento de nazistas. Essa análise maniqueísta quer tornar o inimigo do meu inimigo em um grande Satã a ser aniquilado para que, ao juízo apodítico daqueles, não caiba nenhuma dúvida sobre em que lado devem estar.
Nenhum marxista vai negar o papel agressor da OTAN, muito menos a utilização de grupos pró-nazistas ucranianos para desestabilização não só da Rússia, mas de outros países. Ninguém vai negar a ilegitimidade da repressão em Donbass, ou a eclosão do sentimento anti-russo por parte do governo ucraniano. Mas, a nação ucraniana não é uma base nazista, o governo eleito, depois de um golpe, o qual podemos questionar a legitimidade, não é composto, em sua maioria, por elementos do partido nazista, partido que sequer conseguiu eleger um deputado para o novo parlamento. As hostilidades russo-ucranianas remontam ao grande Império Russo, às nações que este Império subjugou, e à sua política de grão-chauvinismo russo com relação às nacionalidades. Esses problemas não foram resolvidos com a revolução de 1917, muito menos com a guerra civil posterior. Durante a Segunda Guerra Mundial, parte da Ucrânia, que tinha um governo colaboracionista pró-Hitler e contava com um gigantesco exército, lutou junto com os nazistas, fornecendo oficiais ucranianos a fazerem parte do corpo de estrangeiros da SS. A conclusão antidialética a que chegam os que analisam a Ucrânia é que ela já era pró-nazista antes de Hitler chegar lá, e não que o sentimento pró-nazista estava calcado num sentimento de bases históricas primeiro anti-russo e, depois, anti-soviético. Os fatos históricos são substituídos por confusos genes ou DNAs fascistas ad eternum, que não são explicados por fatos históricos, mas por sentimentos que devem estar, a priori, na “alma dos ucranianos”.
“Invasão é invasão, e nenhuma guerra de invasão jamais foi vencida na humanidade. Nenhuma, a não ser que se extermine o povo que antes morava naquele território”.
Roberto Ponciano
Desde a dissolução da URSS, boa parte do revisionismo histórico nazifascista na Ucrânia alimenta-se exatamente dessa rivalidade com o vizinho poderoso e permanentemente ameaçador. Os nazistas não têm nenhuma razão, mas se nutrem da ameaça real. Aliás, o nazismo e o fascismo sempre se utilizaram do medo que assola o imaginário para avançar. Ainda assim, a maioria da população não votou, nem elegeu um governo pró-fascista. Há alas deste governo que são de extrema direita, mas o que verdadeiramente pode causar dano ao mundo é a aventura belicista da Ucrânia tentando abrir suas fronteiras para a OTAN. Vejam, não escrevi nada que seja novidade ou de desconhecimento público, mas ao contrário do julgamento da “gente da geopolítica” não utilizo a dialética para apoiar uma invasão, muito menos para justificar a ocupação da Ucrânia. O princípio das guerras justas e injustas de Lênin não é um princípio vazio. Tal princípio atrela ao caráter de classe a definição de uma guerra ser progressista ou reacionária. Uma guerra de libertação popular, de revolução socialista ou de revolução democrática contra uma tirania são exemplos de uma guerra justa.
Não se trata meramente de um princípio pacifista burguês, até porque parte do que conhecemos historicamente sobre o capitalismo também significa guerra e que só será possível pensar em um mundo sem guerras quando pensarmos em um mundo sem capitalismo. Vi muita gente da geopolítica xingando quem está contra a invasão do pacifista liberal russo. A contradição desse discurso é que citam Lênin só até a página 3. Lênin nunca disse que não era um pacifista. Ele foi um pacifista revolucionário comunista para quem o fim de todas as guerras é o fim do capitalismo, ou seja, ao fim e ao cabo, Lênin é, sim, o maior dos pacifistas.
Para um socialista, um comunista, um revolucionário e um internacionalista proletário, uma guerra só pode se justificar se for UMA GUERRA DE LIBERTAÇÃO. Que a Rússia (que não é um Estado socialista) houvesse apoiado a guerra de independência dos povos separatistas da Ucrânia seria um fato completamente incensurável para qualquer leninista, pois cabe dentro das obrigações da luta pelo socialismo. Que o país capitalista Rússia invada a Ucrânia, destrua seu exército, derrube seu governo e mantenha indefinidamente um governo pró-Moscou lá não tem nenhum suporte nos princípios tanto das guerras justas, quanto do internacionalismo proletário. Sim, esses princípios e essa análise foram substituídos por outra teoria, NÃO MARXISTA, chamada, desde há muito, de “geopolítica” (pseudocienticifista), passando por cima de toda a história e a tradição do marxismo-leninismo.
Todos os argumentos pró-invasão são mais emocionais que “científicos”. Demos nome aos bois. Invasão é invasão, e nenhuma guerra de invasão jamais foi vencida na humanidade. Nenhuma, a não ser que se extermine o povo que antes morava naquele território. Até hoje Israel não conseguiu subjugar a Palestina, e nunca conseguirá. Será um encrave e um território ocupado permanentemente, isto é, uma ocupação militar mantida a ferro e fogo. Nada diferente ocorreu no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão, este ocupado, em diferentes momentos, por cada uma das duas potências, a URSS e os EUA, e que acabaram sendo expulsas de lá. Não há saída para uma “guerra limitada” na Ucrânia. Trata-se apenas de uma grande mentira que queremos contar para nós mesmos. A única maneira de a Rússia manter o controle da região é cravar permanentemente um exército de ocupação (como os EUA no Kosovo). Teremos, então, um governo tutelado pelos militares (como na Bielorrússia). E isso tem pouco que ver com socialismo, autodeterminação ou emancipação dos povos.
Poderemos dourar a pílula se queiram, mas não é possível uma vitória parcial, assim como não é possível uma vitória sem ocupação permanente e sem tutela permanente da Ucrânia. Tal façanha não fará avançar em nada o multilateralismo. Tão somente reforçará as soluções de força nos conflitos, a ideia da legitimidade da ocupação do mais forte e, num momento em que se criava um consenso entre os povos da Europa e se abria um debate sobre sua desnecessidade, a OTAN reativará o seu papel como uma “aliança defensiva”. Se a ideia era fazer a OTAN recuar, o contingente e o investimento militar nas ex-repúblicas do socialismo real, como Hungria e Polônia, aumentarão exponencialmente nos próximos anos.
Parece um jogo de cartas marcadas. Todos aqueles que antevêem uma “vitória espetacular” da Rússia omitem o fato de os EUA jubilosamente reconhecerem que não podem ajudar um país “não membro da OTAN”, enquanto dobram ou triplicam sua presença nos outros países circunvizinhos. Se antes da guerra os EUA eram o único vilão, depois da guerra eles passam a serem vistos com simpatia por húngaros, poloneses, tchecos, etc. Se isto não é um gol contra, as análises devem estar sendo feitas evitando todas as contradições. No calor da luta, no qual 99% da esquerda brasileira decidiram vestir uma camisa de urso e fingir que Putin é Stálin combatendo o avanço de Hitler pelo mundo, é quase impossível que se analisem as contradições. Guerra de invasão é guerra de invasão, e não se justifica nos princípios socialistas e comunistas. Cabe alertar para o futuro de uma ilusão.
A guerra começou há alguns dias, mas não será breve. Seus resultados futuros estão condicionados à derrubada de um governo cuja legitimidade cabe apenas ao próprio povo ucraniano definir (e não ao governo do país vizinho). Tendo gerado um sentimento anti-russo na Ucrânia, que foi durante mais de um século uma nação sem Estado (assim como são os curdos, os bascos, os irlandeses, os palestinos, entre outros), a guerra tende a perdurar por décadas.
Toda guerra de invasão é muito fácil de se vencer na sua primeira fase (invasão) e absolutamente impossível de se vencer numa segunda fase (ocupação). Uma ocupação permanente russa será o corolário permanente uma legítima guerra de autodeterminação ucraniana, que, por sua vez, sempre será gestada exatamente contra os russos. A invasão não trará a paz, mas apenas a retroalimentação de uma guerra de ocupação permanente.
Por Roberto Ponciano
Bibliografia
Sartre, Jean-Paul. 1972. Questão de Método. 3 edição. São Paulo, SP: Difel-Difusão Europeia Do Livro
Nota da redação
“Nossa operação militar especial na Ucrânia também contribui para o processo de libertação do mundo da opressão neocolonial do Ocidente, fortemente misturada ao racismo e a um complexo de exclusividade. Quanto mais cedo o Ocidente se conformar com as novas realidades geopolíticas, melhor será para si mesmo e para toda a comunidade internacional.”
Na véspera de 1 de maio de 2022, estas palavras de Sergei Lavrov, Ministro das Relações Exteriores da Rússia, elogiam uma frente anti-imperialista contra o Ocidente. Esta retórica de uma “nova ordem geopolítica” constituída com a China passa em silêncio a agressão caracterizada da Ucrânia, um país associado ao projeto socialista dos russos entre 1921 e 1991 e que se une ao Ocidente apenas por causa dos repetidos e assassinos ataques russos, que reconstituem a lógica dos blocos de outra época. Roberto Ponciano, desde o início da guerra, alertou os militantes brasileiros contra qualquer confusão. O Coletivo Brasil considera sua contribuição essencial em um momento em que o correspondente do Le Monde no Brasil aponta que as ambiguidades dos políticos brasileiros estão se tornando críticas:
“o PT e seu líder voltaram a declarações mais radicais, apoiando os regimes cubano, venezuelano e nicaraguense de braço dado, e assim assumindo um lugar secundário no conflito ucraniano. O gigante latino-americano precisa mais do que nunca de um estadista pronto para assumir posições responsáveis e corajosas na cena internacional”
A reflexão de Ponciano demonstra sua contemporaneidade, mesmo a guerra já tendo entrado em seu terceiro mês, já que parte das lideranças de esquerda ainda se associa às posições russas como se assim defendessem o ideário socialista. Os próximos meses dirão se ainda há alguma esquerda coerente.