Sônia Guajajara e Célia Xakriabá em Paris, novembro de 2019. Foto: Gérard Wormser
Neste mês ocorreu a 20a edição do Acampamento Terra Livre em Brasília, no momento em que temos um Ministério dos Povos Indígenas; em que a FUNAI é presidida por uma mulher indígena e em que um indígena foi eleito como imortal da Academia Brasileira de Letras. Os ventos parecem soprar favoravelmente, mas nem sempre foi assim.
A luta dos povos indígenas é ancestral. Ela começa no exato momento em que se inicia a empresa colonial portuguesa na Terra Brasilis. Não há julgamento algum que altere esse fato. Se precisamos realmente falar em Marco Temporal, é melhor começar falando do Cabral. A causa indígena é de suma importância para a compreensão do Brasil. É uma luta que concerne aos povos indígenas, diretamente implicados, mas também aos não indígenas.
Durante a pandemia Junia Barreto idealizou o projeto Vozes indígenas, trilhas para renovar o Brasil com o objetivo de abrir espaço às diferentes comunidades indígenas de norte a sul do país. O dossiê foi publicado em português e francês pela revista internacional Sens public em novembro de 2022. Publicamos, hoje, seu texto de apresentação do dossiê. No Coletivo Brasil, percorremos o caminho inverso e republicamos este texto ao final das diferentes contribuições. Ao finalizar as republicações do dossiê, esse texto contextualiza o projeto e dá sentido de conjunto à obra.
O dossiê Vozes indígenas, trilhas para renovar o Brasil é fruto de uma parceria de longa data. Já no evento internacional realizado na Universidade de Brasília “Alucinação política das telas”, Erisvan Bone Guajajara expôs sobre seu trabalho na criação do Mídia Índia. A jornada “Sangue indígena, nenhuma gota a mais”, em périplo pela Europa para denunciar as atrocidades cometidas durante o governo Bolsonaro, se fez anunciar em outubro de 2019 no 29e Salon de la Revue, em Paris; em jantares íntimos parisienses e mesmo durante a comemoração em homenagem a Clemenceau patrocinada pelo Estado francês. Também no ATL de 2021, estivemos ao lado dos povos indígenas e em apoio a suas reivindicações.
Nesse momento em que o Acampamento Terra Livre 2024 está em seu pleno curso, a professora e pesquisadora Junia Barreto renova seu apoio à luta e à resistência indígenas. Frente ao conformismo, à passividade e até mesmo à violência reinantes, os indígenas se organizaram e fizeram a diferença.
Assim como no momento de publicação do dossiê Vozes indígenas, trilhas para renovar o Brasil, o Coletivo Brasil pretende reforçar o seu apoio aos povos indígenas, assim como reiterar o convite para que participem de nossa plataforma com suas ideias testemunhos e projetos, multiplicando suas vozes e amplificando o som de seus maracás …
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O estado caótico do mundo contemporâneo em seus diferentes governos das diversas sociedades — com suas tantas línguas e especificidades, produtores/as de largo conhecimento sobre o planeta, detentores/as de infinitas e multifacetadas experiências — nos obriga a refletir sobre como e para onde estamos nos encaminhando hoje, em 2022. Nos sugere pensar, e de forma radical, sobre como temos administrado nosso espaço global, como temos nos relacionado entre nós — homens, e como temos gerenciado a nossa própria produção nas mais diversas instâncias e sistemas — político, econômico, social, humano e ambiental. Em meio ao desregramento geral, a percepção crítica sobre a evolução da organização das comunidades indígenas do Brasil se impõe. No momento em que a circulação mundial é realidade e que as muitas populações migram e se misturam e as civilizações intercambiam, povos chamados originários clamam sua ancestralidade e suas tradições, o direito ao seu ‘lugar’ e a fazer escutar a sua voz. Os tão distintos indígenas brasileiros mostram que a imagem do índio “nu e inocente” — assim descrita por Pero Vaz de Caminha em 1500, contribuindo ao mito do ‘bom selvagem’, de espírito simples e subordinado, e um dos ícones do exotismo mais absoluto — se confirmou completamente incongruente, uma ideia pequena, falida e ultrapassada. Deixemos aos antropólogos, filósofos e psicólogos da posteridade a reflexão em torno da perspectiva humana que separa nosso projeto de existência, confrontado à ideia central que anima e une o projeto desse imenso arquipélago indígena, hoje drasticamente reduzido, mas que ainda existe e resiste nas diferentes regiões dessa extensa terra que é o Brasil. Apesar das tantas tentativas de exterminá-los, de aculturá-los, de calar as suas vozes, de tomar-lhes o território e de impedi-los de exercer sua interação com o meio, os indígenas resistem! Resistência é a palavra de ordem para exercer seu bem viver.
E sem fazer alarde, os indígenas brasileiros se organizaram. Diante do avanço mundial do pensamento extremista e de sua prática, o que, no Brasil, culminou no governo Bolsonaro, os indígenas construíram a resistência. Não mais se faziam entender de forma isolada como os míticos Caciques Juruna e Raoni, os grandes líderes Aritana Yawalapiti e Ailton Krenak ou o emblemático xamã Yanomami Davi Kopenawa, que alcançaram expressividade internacional.
Face ao conformismo e à passividade dos indivíduos da sociedade brasileira, inscritos em um contexto que ultrapassa o nacional, o acanhado número de indígenas que ainda resta no país se organizou, se agigantou, se multiplicou em vozes ecoando mundo afora. Denunciou no continente do outrora colonizador, hoje consciente da necessidade de preservar o planeta, as barbáries às quais ainda continuavam sendo submetidos nos anos ditos ‘hipermodernos’ de 2020. Os indígenas não só bradaram para denunciar o projeto de genocídio indígena empreendido pelas ações em favor de interesses econômicos sectaristas da política do governo Bolsonaro, como fizeram soar seu maracá para clamar pela floresta e os diferentes biomas brasileiros, alguns quase dizimados outros largamente desmatados; isso, no momento em que a enorme aldeia global mal começa a despertar para a crise climática deflagrada pelas mãos do homem.
Impôs-se, então, ir além da franca simpatia e do interesse que os povos originários da terra do pau-brasil sempre nos suscitaram. Ouvindo o som do maracá e escutando a entoada das vozes indígenas, tornou-se impossível não se juntar a eles de alguma maneira. E a forma que encontramos, modesta, mas que se pretende multiplicadora, se constituiu na escuta do chamado e no franqueamento dos espaços diversos em que transitamos afim de acolher as suas vozes, a sua presença.
Em 2019, o Núcleo de Pesquisas e Realizações TELAA — Telas Eletrônicas, Literatura & Artes Audiovisuais, ora baseado na Universidade de Brasília, realizou o terceiro encontro interdisciplinar Entre Telas, centrado na presença das telas na cultura contemporânea, para discutir a Alucinação política das telas. Hoje, os fundamentos e a prática da política passam necessariamente pelas telas, sendo também, e cada vez mais, o caso da cultura. Daí sucedem as confrontações essenciais para todos nós, não importa qual seja a nossa atuação no corpo social. Atualmente, nada escapa às telas — de todos os tipos. As redes sociais revelam seu largo alcance, seu poder e sua soberania. Acreditamos que a utopia de transparência coexiste com uma espécie de alucinação, que mostra a cada um aquilo que ele quer ver — quando a autossugestão substitui a janela sobre o real e gera passividade diante da submersão dos indivíduos.
Já àquela época, em 2019, a cena nacional, no rastro da política de Donald Trump, parecia ter se tornado uma telenovela de mau gosto e horror, na qual assistíamos aos episódios vulgarizados na internet, sem aferir ou intervir, tomados por um estranho fascínio acrítico. No contexto político nacional do final daquele ano, após o golpe de Estado ao governo de Dilma Rousseff em 2016, o subsequente encarceramento arbitrário do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — assim impedido de concorrer às eleições em 2018, vivíamos sob a catastrófica gestão do senhor Jair Bolsonaro, político obscuro e de extrema direita que, rapidamente, imprimia na população suas pulsões de violência, tornava o país um pária mundial e impulsionava o Brasil a regredir em todos os setores que envolvem o desenvolvimento humano, econômico, ambiental e institucional.
Foi diante do desmantelamento da educação e da saúde; do descaso e do desmatamento da floresta amazônica e de outros importantes biomas nacionais, a um ritmo alucinado; da crescente retomada da injustiça social e da miséria; e, sobretudo, do apequenamento dos ideais políticos e da violação das práticas republicanas brasileiras; que nos pareceu urgente discutir a política das telas — mal sabíamos nós que estávamos a poucos meses de uma crise mundial gerada pela pandemia da COVID-19, que coibiu o contato humano e nos enredou todos, ainda mais, diante das telas.
Com os subsídios para as universidades, a cultura e a pesquisa drasticamente reduzidos pelo governo Jair Bolsonaro, o Núcleo TELAA, apoiado sobretudo pela Embaixada da França e pela associação Sens public, pôde, enfim, reunir um grupo heterogêneo de pesquisadores, artistas e agentes culturais no âmbito nacional e internacional para refletir e tentar compreender o fenômeno das ‘telas’ e suas implicações sociopolíticas.
Nesse contexto, antenados com o som do maracá indígena já ecoando forte aqui e lá, decidimos convidar para integrar o grupo de uma das linhas de discussão, em torno das narrativas de mídias eletrônicas (TV, vídeo, revista digital, videogame, filmes publicitários, redes sociais, blogs e smartphones), o jornalista Erisvan Bone — ativista indígena, liderança jovem do povo Guajajara no Maranhão e também fundador da rede “Mídia India”, veículo que pretende dar voz aos povos indígenas.
O contato estabelecido com o jovem Erisvan Bone Guajajara nos aproximou das pautas indígenas, assim como acresceu ainda mais o nosso respeito pela fina articulação de ideias e de ações empreendidas pelas diferentes comunidades em todo o país. Nosso encontro com Erisvan Bone também nos informou que, no mês seguinte, lideranças indígenas de diferentes comunidades deixariam o continente e atravessariam o Atlântico em direção à Europa, para realizar uma jornada de 35 dias intitulada ‘Sangue indígena, nenhuma gota a mais’, percorrendo 12 países. Seu objetivo: “denunciar as graves violações perpetradas contra os povos indígenas e o meio ambiente do Brasil, que vem ocorrendo sistematicamente desde a posse do presidente Jair Bolsonaro.”
Impossível negar que muito nos impressionou a ação de tamanho porte realizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil — APIB, em parceria com organismos da sociedade civil, “para promover medidas que pressionem o governo brasileiro e empresas do agronegócio a cumprirem os acordos de preservação do meio ambiente e respeito aos direitos dos povos indígenas”.
Nessa perspectiva, a APIB incrementou e institucionalizou seu departamento jurídico, hoje coordenado pelo indígena Luiz Eloy Terena, estabelecendo o que definem como ‘advocacia indígena orgânica’, em que a atuação judicial técnica está alinhada com as decisões políticas do movimento indígena. A equipe jurídica da APIB trabalha a partir de 4 linhas de atuação: atuação no contencioso judicial, parlamentar, criminal e em âmbito internacional.
Por ocasião de uma outra realização intelectual, dessa vez em Paris, em outubro do mesmo ano e por ocasião do 29e Salon de la Revue, trouxemos à mesa a solitária, mas potente e atuante, resistência indígena diante das atrocidades cometidas pelo governo Bolsonaro e do desmantelamento das instituições democráticas brasileiras, durante as intervenções e as discussões em torno do tema proposto pela revista internacional Sens public – Résistance culturelle & démocratique au Brésil [Resistência cultural e democrática no Brasil].
Aos nossos olhos, a resistência das lideranças indígenas se destacava diante do mutismo e da inércia da sociedade brasileira em geral, escancarando sua incapacidade em se organizar para resistir ao retrocesso a que o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro condenou o país. Assim, centramos nossa intervenção na questão indígena e aproveitamos do momento para contribuir com a divulgação das pautas da Jornada indígena em sua trajetória através de 18 cidades europeias.
Nessa ocasião, juntamente com a filósofa Márcia Tiburi — exilada em Paris devido a graves ameaças e retaliações advindas do campo bolsonarista, decidimos acolher e preparar em nossa casa um jantar para a delegação indígena, que já viajava há quase um mês pela Europa. Chegara até nós a informação de que os indígenas estavam cansados da alimentação que lhes era servida ao longo da Jornada, em muito distante do seu cotidiano e hábitos alimentares. Recebemos, então, os 13 indígenas ora reunidos em Paris (Ângela Kaxuyana, Dinaman Tuxá, Alberto Terena, Kretã Kaingang, Célia Xakriabá, Sônia Guajajara, Erisvan Bone Guajajara, Gasparini Kaingang, Erick Terena, Nara Baré, Elizeu Guaraní Kaiowa, Djuena Tikuna e Diego Janatã), assim como duas outras integrantes da comitiva, membros da Mídia Ninja — que se define como base informativa digital em que o jornalismo se apresenta como “uma das ferramentas e linguagens utilizadas para levantar temas e debates, fortalecendo narrativas que não tem visibilidade nos meios convencionais de comunicação”. Juntamente à comitiva, convidamos alguns amigos seletos para uma noite fora do comum, em que a força do discurso e o canto indígena na voz de Djuena Tikuna contaminou todos os presentes. Era mais um elo que se construía com a causa indígena!
Entre apresentações, conhecimentos e conversas diversas soube-se que, no dia seguinte, 11 de novembro, data em que se comemora o fim da 1ª Guerra Mundial (11/11/1918), estaríamos no Champs-Élysées diante da estátua do chefe do governo francês daquela época, para a homenagem anual. Georges Clemenceau, Président du Conseil Français — o equivalente à figura de Primeiro Ministro, a termo de uma longa carreira política e em idade avançada, soube mobilizar a sociedade francesa ao lado do exército dos aliados, para alcançar a vitória e pôr termo à guerra. Evento restrito, com a presença do chefe de Estado, de altas personalidades políticas e de descendentes da família Clemenceau, nossa presença ali se justificava por razões familiares que nos ligam ao chefe do Gabinete de Guerra de Clemenceau, que permaneceu ao lado do Presidente do Conselho até o momento do Tratado de Versalhes, em junho de 1919.
Eis que ganhou força a ideia de burlar a segurança presidencial que policiava o entorno do evento e fazer passar conosco, munidos de apenas dois convites nominais, as indígenas Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, para chamar atenção para a presença, os trabalhos e as manifestações indígenas que ocorreriam naqueles dias na capital francesa e obter um quase impossível aperto de mão do presidente Emmanuel Macron. Em nosso périplo com as duas indígenas devidamente paramentadas pelas ruas molhadas e frias da estação outonal, não só conseguimos chamar a atenção, como ser barrados pelos militares, na espera de uma ordem superior acordando o acesso das indígenas à cerimônia. A resposta positiva nunca veio. Mas, aproveitando de um deslize da guarda ou de sua indulgência, eis-nos aos pés da estátua de Clemenceau com as duas indígenas, prontos para assistir à cerimônia. Sob os olhares assustados e reprovadores da família, nos instalamos com Célia e Sônia, que posicionamos na linha de frente para o aperto de mão não só da prefeita de Paris Anne Hidalgo e outros representantes oficiais, como do próprio presidente Emmanuel Macron. Missão cumprida!
Para além do nosso próprio engajamento com a causa indígena, temos a convicção de que a presença de Célia Xakriabá e Sônia Guajajara ao nosso lado em tal comemoração e homenagem se justificou plenamente pela figura de resistência, coragem e afeita à democracia de Georges Clemenceau, tal como, bravamente, resistem os indígenas em sua luta pela manutenção da democracia em terras brasileiras. Contra os ares de reprovação familiar inicial, o nosso orgulho ao poder circular as fotos obtidas!
Em 2020, a exposição da fotógrafa Cláudia Andujar, La lutte Yanomami [A luta Yanomami], apresentada na Fondation Cartier, em Paris, nos levou ao delírio! A mostra reuniu mais de 300 fotografias da artista (em cores e em preto e branco), uma série de desenhos dos próprios indígenas Yanomami, assim como algumas instalações audiovisuais, montadas a partir do vasto acervo de Andujar e também as intervenções em imagem de Davi Kopenawa. A exposição é marcada pela sensibilidade, seja a da pessoa da fotógrafa (que depreendemos através de diferentes testemunhos), de sua arte ou de sua própria experiência ao lado dos Yanomami e a relação que constroem, na qual a arte fotográfica foi o vetor principal de comunicação. As fotografias de Cláudia Andujar transmitem a força desse povo de pouco mais de 30.000 pessoas, mas que reúne um largo conjunto cultural e linguístico. O militantismo de Andujar pela causa Yanomami, durante anos a fio, também impressiona; e compreendemos nas palavras de Davi Kopenawa que, para além do engajamento, está o afeto sobre o qual se construíram suas relações. A artista também nos parece conseguir estabelecer um forte pacto com o espectador. Suas fotos parecem transpor o papel, dando vida aos inúmeros ‘personagens’ captados por suas lentes e suscitando no espectador admiração e respeito por esse povo originário, habitante da floresta amazônica na fronteira com a Venezuela, em um território vivamente cobiçado pelos interesses desenvolvimentistas e cuja superfície excede a de Portugal.
A exposição de Andujar aguçou ainda mais o desejo de empreender a leitura do instigante livro escrito por Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, La chute du ciel. Paroles d’um chaman yanomami [A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami], nascido dos relatos de Kopenawa ao etnólogo, em sua língua materna, traçando sua trajetória pessoal, desde a descoberta de sua vocação para xamã ainda na infância, até o avanço devastador do homem branco pela floresta, assim como sua luta e suas viagens ao exterior, na tentativa de denunciar a barbárie e defender seu povo.
O interesse pelo líder Yanomami e seu manifesto xamânico nos levou até Julien Pallotta, filósofo e tradutor francês da obra de Ailton Krenak. Convidado a intervir no seio da equipe da revista Sens public, Pallotta nos ajudou a entender uma forma de triangulação entre (1) o posicionamento científico da antropologia ocidental na abordagem do bem viver indígena e das crenças ligadas a esse mundo em desaparecimento (Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro, etc.); (2) a autenticidade da transmissão feita por Davi Kopenawa em sua própria língua a Bruce Albert, pois, ciente da fragilidade dos saberes da floresta, Kopenawa aceitou relatar a vivência espiritual dos xamãs Yanomami para o mundo exterior, vigilante em não trair os mais íntimos afetos dos povos da floresta; (3) Ailton Krenak, assumindo sua integração na esfera midiática urbana, se posiciona como tradutor para seu público e no próprio idioma brasileiro, das formas mais genéricas e acessíveis da experiência do bem viver.
O dossiê que aqui constituímos se posiciona no lugar da mediação dessas três perspectivas, entre as quais convidamos o leitor a circular, pois as experiências são múltiplas. Mas todas as comunidades indígenas estão fatalmente confrontadas com o imperativo de fazer coabitar a sua perspectiva original com as representações dominantes. Essa necessidade foi claramente percebida, e de forma extremada, no confronto com a nova pandemia, quando assistimos à deflagração de um conflito entre visões contraditórias.
Foi também em 2020 que a pandemia do coronavírus se espalhou e abraçou a aldeia global. O negacionismo e o descaso do presidente Jair Bolsonaro com a população brasileira foram responsáveis pela disseminação do vírus entre 162 povos indígenas, resultando em 75.711 indivíduos infectados e 1.324 óbitos registrados, segundo o site Emergência Indígena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil — APIB, dados de 13/11/2022. À revelia do governo e de instituições oficiais como a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) — claramente anti-indígena na gestão Bolsonaro — que tanto negligenciaram as ações de apoio aos povos indígenas para enfrentar a pandemia, a APIB, juntamente a suas organizações de base, lançou uma mobilização internacional para tentar salvar vidas indígenas, visto que mais de 50% dos povos foram diretamente atingidos pelo coronavírus.
Em meio à pandemia da Covid-19, nos veio o desejo de acolher e dar espaço nesta revista aos povos indígenas de todo o Brasil, sob toda forma de expressão, através de textos, fotos, vídeos, testemunhos ou contribuições artísticas de toda espécie. Obviamente que não se divulga uma tal proposta aos moldes das conhecidas ‘chamadas para contribuição’. Além do que, em tempos bolsonaristas obscuros, toda e qualquer proposição de cunho midiático dirigida diretamente poderia produzir desconfiança e impor incertezas, quando o número de indígenas, indigenistas e aqueles engajados na luta pela preservação da floresta e de seus povos poderiam ser intimidados e/ou assassinados, sem que tais crimes fossem claramente elucidados e devidamente punidos. Por outro lado, muitas das lideranças de cada uma das 7 organizações regionais da APIB em todo o Brasil estiveram concentradas, de forma inédita, em convocar e preparar candidaturas indígenas, com vistas a ingressar suas lideranças no cenário político nacional via eleições para deputados, senadores e presidente da República, que ocorreram entre 02 e 30 de outubro deste ano.
Assim, para além dos convites feitos a alguns indígenas diretamente, fomos ao encontro das manifestações empreendidas em 2021, em Brasília — ‘Acampamento Luta pela vida’ e ‘Marcha das Mulheres Indígenas’, cujas mobilizações visavam, sobretudo, acompanhar o julgamento do processo do marco temporal pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que definirá, ao seu término, o futuro das demarcações das Terras Indígenas no país. A absurda tese do marco temporal de ocupação da terra pretende que somente aqueles indígenas que estavam em suas terras em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira, teriam direito à demarcação das mesmas. Nas palavras do indígena Marcos Sabaru,
o marco temporal é uma máquina de moer história… ele acaba com a história, muda toda a história. Porque de 5 de outubro de 88 pra trás não há mais história. (…) Ele reposiciona as pessoas, coloca o colonizador como dono da terra e o indígena como invasor. O marco temporal nega a presença do indígena neste território. (…) Nega que nesses milênios todos os povos indígenas estiveram presentes e cuidando da biodiversidade. O marco temporal é isso, ele é temporal mesmo, essa máquina volta no tempo, reverte o tempo, troca as pessoas de tempo, coloca as pessoas em tempo diferente, apaga a memória e muda a história (Sabaru, Marcos. «Máquina de moer história sobre o marco temporal». APIB Oficial. Acessado 24 de Janeiro de 2023. https://apiboficial.org/marco-temporal/.)
Durante essas vultuosas manifestações ocorridas em Brasília entre 22 e 28 de agosto de 2021, filmamos, fotografamos e, sobretudo, conversamos com alguns indígenas ali reunidos para denunciar os invasores de seus territórios e os constantes ataques aos seus direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Mobilização impressionante!
Iniciamos os contatos para este dossiê ao final de 2020 e demos a cada um ou a cada povo que aqui se manifesta o tempo que cada qual precisou. Dissemos a todos que a ideia era manifestar-se sobre a perspectiva do bem viver, tão cara às comunidades indígenas e ameaçada em tempos de governo Bolsonaro. O material que nos foi enviado não sofreu restrição alguma e figura aqui, essencialmente em sua forma integral, tal como desejado por seus autores.
O dossiê se constitui em 4 grandes tempos: eles escrevem, eles testemunham, eles criam e escrevendo sobre eles; o todo capitaneado por esta introdução e um derradeiro tempo, que pontua uma das perspectivas essenciais desta manifestação. No quarto tempo, intitulado ‘escrevendo sobre eles’, convocamos olhares externos à comunidade de origem indígena, como o jovem linguista Ariel Pheula, especialista da língua Avá-Canoeiro, da família Tupi-Guarani, falada nos estados de Goiás e Tocantins pelo povo Avá-Canoeiro, para testemunhar sobre seu trabalho como pesquisador do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas da Universidade de Brasília — LALLI/UnB, assim como suas vivências no seio de comunidades indígenas. Convidamos também o historiador Manoel Batista do Prado Junior, indigenista especializado da Fundação Nacional do Índio — FUNAI, que realiza, atualmente, pesquisa de doutorado em Direito em torno do tema ‘Terras indígenas, direitos em disputa: a proteção constitucional da posse indígena, propriedade fundiária e os fundamentos do conflito’.
Dado o caráter internacional e transatlântico da revista Sens Public (baseada entre a França, o Québec e o Brasil), este dossiê foi construído inteiramente em português e em francês, separadamente. Usando recursos distintos de cunho textual, gráfico, imagético e sonoro, procuramos atentar aos eventuais problemas de acessibilidade, tentando incluir, na maior parte das produções em áudio e vídeo, seus equivalentes em formato texto.
Os indígenas que participam do dossiê são juristas, educadores, agentes de saúde, líderes comunitários, antropólogos, cultivadores, geógrafos, ativistas, artesãos, linguistas, domésticas, nutricionistas, artistas… São homens e mulheres engajados não apenas nas pautas indígenas e comunitárias, mas também na luta pela solidificação da democracia no Brasil, pela preservação do meio ambiente e pelo uso consciente e responsável dos recursos naturais. Em tempos de exacerbação do individualismo, do avivamento dos interesses individuais, da competição desenfreada, do desinteresse pelo conhecimento e a memória; os indígenas nos ensinam a importância da comunidade, do outro, da partilha, do aprendizado, das tradições. E, sobretudo, nos mostram que são eles os verdadeiros guardiões da floresta e os agentes estabilizadores entre a ação humana e o meio ambiente.
A grande família indígena brasileira reivindica hoje o seu lugar enquanto povo originário das terras brasileiras e não pretende aceitar o lugar de alteridade ao qual foi relegada, sobretudo nos últimos anos. Sua organização e capacidade de superação e resistência mostram que não mais suportarão a tutela das classes dominantes ou jugo de qualquer espécie. Os indígenas se prepararam para serem também atores e não apenas coadjuvantes de uma história brasileira, na qual se inscreveram em primeira mão.
No momento em que escrevo, a gestão de Jair Bolsonaro definha, após perder as eleições para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nem as mais torpes atitudes, as fake news, a tentativa de cooptar as Forças Armadas ou de manipular as instituições, o suborno popular com auxílios de última hora, as intimidações de toda espécie dentre uma longa lista de atitudes execráveis de uma extrema direita opaca e retrógrada não puderam impedir a queda do governo Bolsonaro.
Queremos iniciar um outro tempo e trabalhamos para virar essa página sombria da nossa história. Detrator incondicional da população indígena, usurpador financista e interessado dos territórios indígenas, carrasco do bem viver das comunidades indígenas, o iminente ex dirigente, pária diante da comunidade internacional, assiste, hoje, o êxito da atuação indígena junto aos organismos internacionais e no seio da organização político-social brasileira. Acontece nesse momento a reunião internacional da COP27 com a participação de lideranças indígenas das diferentes regiões de todo o país, trabalhando em prol da adoção de ações imediatas para o enfrentamento da crise climática e apontando a demarcação das terras indígenas como parte do “eixo central das estratégias para um futuro possível”. Com Luiz Inácio da Silva convidado, Jair Bolsonaro, ainda em mandato, permanece isolado.
Criado recentemente na cidade de São Paulo, o Museu das Culturas Indígenas tem como finalidade a proteção, a difusão e a valorização do patrimônio cultural indígena. É “um novo conceito de museu, que nasce com uma proposta inovadora de gestão compartilhada a ser construída ao longo da experiência, com o fortalecimento do protagonismo indígena. Um espaço de diálogo intercultural, pluralidade, encontros entre povos indígenas e não-indígenas, onde a memória da ancestralidade permitirá aos diversos povos originários compartilharem suas mensagens, ideias, saberes, conhecimentos, filosofias, músicas, artes e histórias”, prenuncia a equipe à frente do museu.
Ainda mais determinante será a criação do Ministério dos Povos Originários no novo governo Lula, que toma posse em janeiro de 2023, e que certamente será comandado por uma liderança indígena. Na expectativa desse marco na história do país, os indígenas trabalham na preparação de propostas cunhadas pelas lideranças nacionais, que deverão municiar a equipe responsável pela transição entre os governos atual e porvir. As propostas traçadas pela APIB para encaminhar e reconstruir a política indígena do governo, afim de resgatar e fortalecer os direitos tolhidos pela gestão Bolsonaro, são baseadas em seis eixos fundamentais: (1) Direitos Territoriais Indígenas: Demarcação e Proteção Territorial; (2) Reestabelecimento de/ou criação de instituições e políticas sociais para povos indígenas; (3) Retomada e/ou criação de instituições e espaços de participação e/ou controle social; (4) Agenda Legislativa: interrupção de iniciativas anti-indígenas no Congresso Nacional e ameaças no Judiciário; (5) Agenda ambiental; (6) Articulação e incidência internacional e composição de alianças e parcerias. A coordenadora executiva da APIB, Eunice Kerexu, já declarou que “durante os últimos quatro anos vimos a política indígena e ambiental brasileira ser desmontada. (…) Queremos ser ouvidos e consultados, algo que está previsto na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e não foi respeitado por Bolsonaro”.
Em contraponto à mediocridade e ao despreparo de grande parte da classe política brasileira na atualidade, a recente eleição para o Congresso Nacional de mulheres indígenas como Célia Xakriabá e Sônia Guajajara nos orgulha e conforta. Às vésperas da saída de Jair Bolsonaro, a decisão pelo tema da redação do ENEM deste ano — “desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil” — suscitou o seguinte comentário da atuante Sônia Guajajara nas redes sociais, antevendo o tom de sua futura atuação no Congresso: “desde a invasão em 1500 nossos direitos tem sido violados, sobretudo, nos últimos quatro anos onde declaradamente a atual gestão, que já derrotamos nas eleições, executava sua política de extermínio dos povos originários e comunidades tradicionais”. Célia Xakriabá pontuou que “é tempo de olhar para a nossa ancestralidade, para a nossa cultura e para nossos povos originários. Que isso entre nas escolas e no imaginário de todos os brasileiros e brasileiras.”
A sensação que temos é de vitória e de reais perspectivas para o avanço das pautas indígenas, da demarcação de seus territórios ancestrais e da consequente preservação da Amazônia e outros biomas, essenciais ao equilíbrio do clima e do planeta. A vitória do ‘Fora Bolsonaro’ reabre a viabilidade do projeto do ‘bem viver’ indígena.
Agradeço aqui, em nome da revista Sens public, a todos aqueles e aquelas que contribuíram para este projeto com seus testemunhos, reflexões e manifestações artísticas. Tenham a certeza de que estamos bastante orgulhosos de apresentar-lhes este dossiê! Sens public guardará as portas sempre abertas para as pautas indígenas e permanecerá alerta e vigilante do engajamento do novo governo brasileiro com a causa indígena e a questão ambiental.
Após o resultado da eleição presidencial brasileira, o xamã Davi Kopenawa e os Yanomami de Watoriki comemoram a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (“a liderança Lula”) ao lado de suas próprias lideranças. Nessa festa de luta, eles aproveitam para reivindicar suas demandas urgentes. A principal delas: a desintrusão dos garimpeiros que ocupam e degradam a Terra Indígena Yanomami e Ye’kwana.
Junia Barreto
Psicóloga clínica, doutora em Literatura Comparada (UFMG) e em Literatura e Civilização Francesa (Sorbonne Nouvelle), professora universitária, especialista na obra de Victor Hugo, pesquisadora da Universidade de Brasília. Suas pesquisas, centradas nas expressões da alteridade, cruzam a literatura e as artes visuais, especialmente o cinema, assim como a psicanálise, a filosofia e a tradução. Tendo sido produtora e editora de televisão e vídeo e redatora para jornais e revistas, é atualmente diretora executiva da Associação Sens Public (www.sens-public.org), um espaço internacional para publicações culturais e em ciências sociais. Ela é fundadora da Revue XIX — Arts et techniques en transformation e coordenadora do Núcleo TELAA, que se concentra nas múltiplas criações literárias e visuais ligadas às telas eletrônicas. Autora de vários artigos e livros em francês e português.