Goiabeira. Fonte: Adobe Stock.
(…) Porque é que ela termina sozinha no castelo de areia? de gelo? Porque ela é lésbica. Nada é por um acaso, acredite, gente, eles estão armados, articulados. O cão é muito bem articulado, e nós estamos alienados, aí agora a princesa do Frozen vai voltar para acordar bela adormecida com um beijo gay” (Alves, 2018)
Em um momento de intensificação de ofensivas antidemocráticas, a partir de práticas e narrativas fundamentadas por um viés religioso fundamentalista, é vital analisar e compreender as implicações das políticas que ganharam espaço na conjuntura brasileira. A chamada “onda conservadora” tem testemunhado um avanço dos movimentos de extrema direita que, a partir de um projeto orquestrado, vem tomando as massas delirantes que apoiam, cada vez mais, políticos “terrivelmente cristãos”.
Nesse contexto, a análise dos discursos proferidos pela ex-ministra Damares Alves do antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos refletem um discurso fascista que objetiva minar os avanços e as políticas destinadas às mulheres e a outras minorias. A partir de uma defesa dos valores tradicionais e morais da família tradicional cristã, Damares utiliza de táticas performáticas e perversas que ameaçam e violentam esses grupos minoritários.
Desde a década de 1980 que se observa uma crescente politização dos segmentos pentecostal e neopentecostal, que se envolvem cada vez mais com partidos políticos (MACHADO; BURITY, 2014). Se em 1986 havia doze neopentecostais eleitos para o Congresso Federal, em 2014-2018 haviam 69, em setembro de 2016 havia 90 e logo após as eleições de 2018 já haviam 120 deputados e senadores (PLEYERS, 2020). Esse avanço das Igrejas Neopentecostais fundamentou grande parte da ideologia do movimento reacionário, de forma que, nos últimos anos, houve um avanço no que se refere às vitórias legislativas da “bancada evangélica”.
Assim, este ensaio visa analisar o discurso de Damares Alves enquanto um discurso fascista, criando o neofascismo brasileiro como uma forma de poder e linguagem particular (PIOVEZANI E GENTILE, 2020). Estando a serviço de uma política conservadora de caráter protofascista e aliada a outras lideranças religiosas influentes nas bases bolsonaristas, Damares utilizou de uma retórica populista a favor da família conservadora cristã, com um debate antifeminista, familista e retrógrado. Ela constrói uma imagem de figura materna, ao modo que, quase sempre vestida de rosa e de figuras religiosas, construindo uma identidade de mulher conservadora, representa um ideal patriarcal de feminilidade (FERREIRA; NASCIMENTO, 2020, p. 488).
Seu antigo ministério (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos1O governo de Jair Bolsonaro transformou o Ministério dos Direitos Humanos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No dia 1º de janeiro de 2023, o governo Lula recria o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. (Nota da Redação)) foi o principal lócus de difusão de uma prática fascistizada, ao modo que, utilizando da característica do Terceiro Reich, a eleição de um inimigo comum, ela elege: a esquerda, as feministas, a população LGBTQIAPN+ como vozes da “Ideologia de Gênero” e todos os que vão contra aos ideais da “família tradicional conservadora”.
O discurso familista de Damares
Os discursos de Damares Alves são atravessados por ideais neoconservadores e neoliberais que, amparados pela mesma lógica familista, vem justificar as medidas implementadas por um viés moral, conservador e econômico. Assim, observa-se que, em todos os pronunciamentos e decisões da ministra, há um retorno aos valores conservadores que, alinhados aos ideais fascistas, colocam o homem e a mulher com lugares sociais dicotômicos, valorizando o conceito de família tradicional e autoritária, valor que segundo ela estava sendo perdido. Isso pode ser observado em uma de suas declarações no discurso de posse do ministério, no qual diz: “todas as políticas públicas neste país terão que ser construídas com base na família” (ALVES, 2019), deixando claro que suas medidas serão tomadas com base na família, e por família entende-se a família autoritária do Terceiro Reich, conhecida hoje como a “família tradicional brasileira”.
Conforme Flávia Biroli (2020) “a apologia à família tradicional também está relacionada à maneira como é percebida a divisão do trabalho e das responsabilidades — em outras palavras, à reprodução social” (BRIROLI, 2020, p. 149). Nesse contexto, a mulher é responsável pelo trabalho reprodutivo e maternal, e é dentro dessa lógica que os movimentos antiaborto ressurgem no cenário político, como mostrado nos trechos do discurso.
Quando Damares diz: “e por falar em vida, eu falo em vida desde a concepção. \[…] No que depender deste governo e desta equipe, sangue inocente não será mais derramado em nosso país. Esse é o mistério da vida”, ela está deixando claro ser contra o aborto. A partir de um discurso pró-vida, ela atuou nos bastidores para impedir discursos e práticas a favor da descriminalização do aborto, ou seja, contra uma das principais pautas feministas, deixando explícito com quem seu ministério iria dialogar e com quem não iria.
O que se observa no discurso de Damares é a criação de uma narrativa religiosa, e por muitas vezes fantasiosa, que, a partir da criação e da articulação de um delírio, dissemina um discurso perverso (TIBURI, 2020). Toda sua narrativa visa fomentar o discurso a favor da proteção da família, da criança e do adolescente, porém promove desestabilização e medo. No culto realizado em um templo evangélico, a Assembleia de Deus, em Goiânia, a ministra relata casos de abuso infantil no Pará, afirmando que essas crianças eram traficadas na Ilha Marajó, no entanto, sem apresentar provas, não diz sobre quais medidas haviam sido tomadas diante do fato.
É possível analisar que, a partir de uma retórica sexual, seu discurso tem função de produzir uma satisfação frente ao horror no olhar do outro, de forma que busca criar pânico e medo nas famílias e crianças presentes no culto evangélico. Na perversidade racionalizada de Damares “há evidentemente gozo com o terror instaurado” (TIBURI, 2020 p. 46). Através de cenas e falas grotescas e em tom alucinatório, ela prende a atenção das massas, criando uma catástrofe orquestrada e projetando ódio ao inimigo criado (TIBURI, 2020).
A política fascista vem substituir o debate fundamentado por medo e raiva, assim as massas ficam com uma “sensação de perda e desestabilização, um poço de desconfiança e raiva contra aqueles que, segundo foi dito, são responsáveis por essa perda” (STANLEY, 2018, p. 57). Esse contexto destrói o espaço da informação.
A fim de ressaltar a proteção à família e o fortalecimento de vínculos familiares, Damares alega em seu discurso que: “todas configurações familiares serão respeitadas” (ALVES, 2019) utilizando da comoção do povo com sua própria história enquanto mãe solo de uma criança indígena. Mas, logo após, diz: “Neste governo, menina será princesa e menino será príncipe” (ALVES, 2019), ou seja, seu ideal familista vem reafirmar os papéis sociais dicotômicos de gênero.
Assim, a ideologia familista vem acionar os estereótipos dos papéis de gênero e a divisão sexual do trabalho, reafirmando a dicotomia da masculinidade enquanto identificada com o lado da cultura e a feminilidade com o da natureza (HARDING, 1996). Esse retorno ao ideal da divisão de papéis de gênero está relacionado com a invocação de um passado mítico, onde “uma versão extrema da família patriarcal reina soberana” (STANLEY, 2020, p. 13).
O discurso que aniquila os direitos sexuais
A base da política fascista é a tradicional família patriarcal, assim qualquer desvio desse modelo hegemônico é colocado em pânico amedrontando as massas. Para Stanley (2018), “uma presença marcante de uma política de ansiedade sexual talvez seja o sinal mais evidente da erosão da democracia liberal” (p. 137). Assim, todas as características da política fascista pretendem aniquilar e exterminar o outro, ao modo que apresentam a liberdade e a igualdade como ameaças (STANLEY, 2018). Dessa forma, a orientação sexual, o direito de uma mulher sobre o próprio corpo, a intelectualidade e as discussões sobre gênero e sexualidade são representadas para o governo como ameaças comunistas.
Quando Damares diz: “neste governo menina será princesa e menino será príncipe. […] No Brasil tem(sic) meninos e meninas”, ela está negando o direito à identidade e à diversidade de gênero: as pessoas lésbicas, gays, bi, trans e entre outras. Essa característica fascista é nomeada de negação da diferença e da diversidade (ECO, 2020) ou a ansiedade sexual (Stanley, 2018), sendo notória nos discursos do governo em análise. Esses discursos repudiam todas as questões de gênero e orientação sexual, aderem a uma moral sexual machista e homofóbica, divulgam fake News e mitos e criam instrumentos ideológicos que se classificariam como “ideologia de gênero”.
Na justificativa de um “projeto moral” a fim de proteger os valores da família conservadora, a ministra alega que “um dos desafios desse atual governo é acabar com o abuso da doutrinação ideológica \[…] um Brasil em que nossas crianças tenham acesso à verdade e sejam livres para pensar”. Assim, reagindo violentamente ao gênero, ela cria inverdades sobre as pautas feministas e de gênero.
Logo após assumir a posse do ministério, ela diz: “atenção, atenção, é uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa” (ALVES, 2019), deixando claro o caráter normativo de gênero do ministério, pois, calcados em uma lógica binária de sexo e gênero, a partir de uma matriz heterossexual, reduz o sujeito a um comportamento social e sexual específico (CAMPOS; BERNARDES, 2019). Ou seja, ao afirmar que meninas vestem rosa e são princesas, está associando que o lugar reservado às mulheres é o da família, da reprodução e do cuidado, enquanto o lugar dos homens, que vestem azul e são príncipes, é o da cultura, da virilidade, sendo ele o provedor da família (ENGELS, 1884). Esse ideal classicista da ministra, onde, meninas devem ser princesas, desmascara seu projeto familista, revelando o desejo de que as mulheres retornem ao lugar de subordinação frente ao homem, além de determinar um comportamento de gênero e sexualidade heteronormativo.
Outra declaração de Damares quanto às questões de gênero e sexualidade foi o discurso realizado em uma palestra promovida pelo Centro de Formação Missão Maria de Nazaré, no ano de 2019, cujo título era “Palestra em Defesa da Família”, frase da epígrafe do artigo. A ministra alega que a princesa Elsa, personagem do filme infantil Frozen, era lésbica. A principal declaração que acabou repercutindo nas redes sociais foi a que abre este trabalho, onde ela diz que o “cão é muito bem articulado” (ALVES, 2018). Ao manifestar um discurso antiético, cínico e falso, atrelado a um discurso conservador sustentado na ideologia hegemônica heterossexual, Damares provoca efeitos violentos às pessoas LGBTQIAPN+.
Damares vem mostrar “os perigos sociais” que representam essa “ideologia” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017), usando como “perigo” as pautas feministas como a descriminalização do aborto, o reconhecimento dos casais homoafetivos e a inserção da educação sexual nas escolas. Ela utiliza dos templos religiosos e dos meios de comunicação para disseminar desinformação a fim de criar um pânico em um perigo imaginário na sociedade.
As principais táticas utilizadas nos discursos e na performance de Damares podem ser associadas às estratégias utilizadas como propaganda fascista, que, em nome da família, do combate à corrupção e da suposta liberdade individual, vem minando, oprimindo e violentando os direitos das minorias. O principal mecanismo é o uso de práticas e discursos que utilizam da emoção do povo sem o uso do raciocínio lógico a fim de minar as instituições democráticas. Outro recurso utilizado é o discurso anticorrupção, divulgando falsas notícias, mesmo se envolvendo em práticas corruptas. Além do discurso da defesa da liberdade e das liberdades individuais, embora seja a partir da opressão de alguns grupos (STANLEY, 2018).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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