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Somos todos deejays de ideias
Ana Dumas

Carrinho Brau, Cortejo Literário 2019. Foto: Nara Gentil

Carrinhos de café

Foi no século 20, início dos anos 80, que me deparei pela primeira vez com os carrinhos de café nas ruas de Salvador, Bahia. Foi impacto estético à primeira vista. Os carrinhos de café são uma invenção tipicamente soteropolitana: caminhõezinhos de madeira que parecem pequenos trios elétricos, lúdicos, coloridos, repletos de garrafas de café. É como se fossem tabuleiros de baianas de acarajé, mas ao invés do típico quitute, vendem cafezinho; e substituíram a fixidez dos tabuleiros por rodinhas que lhe garantiam uma maior mobilidade e a possibilidade de venderem mais cafezinho.

Carrinho de café, ponto de ônibus da Reitoria da UFBA, Salvador, 2007. Foto: Ana Dumas

No começo não eram carrinhos, mas pequenos caixotes de madeira, que eram chamados de guia. Não tinham rodas, mas alças. Com o tempo ganharam, além das rodas, pinturas artísticas, antenas, bugigangas eletrônicas, afora as balas e os cigarros a retalho que se juntaram aos cafezinhos. Alguns carrinhos de café tinham luzes pisca-pisca e caixas de som que reproduziam músicas no formato mp3. Outros possuíam dvd-player e reproduziam conteúdos audiovisuais ou canais da TV aberta. Mas fosse uma guia ou um carrinho super tecnológico, eles tinham em comum, além das garrafas de cafés, o fato de serem conduzidos por vendedores que, em sua maioria, revelavam-se verdadeiros performers populares. Mas para boa parte da cidade, os carrinhos de café não eram arte nem cultura: além de meramente comercial, eram uma coisa de pobre e para pobre. Foi nesse contexto que criei a frase que viria a se tornar um dos imãs mais populares do Carrinho multimídia: “Porque POP é o máximo que a classe média tolera do POPular?”.



Carrinho de café, Praça da Piedade, Salvador, 2012. Foto: Ana Dumas

Essa percepção elitista começou a mudar nos anos 80, quando o olhar estrangeiro do francês Dimitri Ganzelevich, impactado por esse movimento cultural popular, criou o “Concurso dos Carrinhos de Café”, que transformou e ajudou a propagar novos olhares sobre os carrinhos. Apesar do impacto estético que os carrinhos de café me provocaram desde que os conheci, durante anos esse amor foi cultuado à distância, como um amor platônico. Para mim, mais do que um comércio, os carrinhos de café sempre foram um verdadeiro show de performance popular urbana.

Carrinho de café, Pelourinho, Salvador, 2010. Foto: Ana Dumas

Ideas Jockey [IJ]

Foi na virada do ano 2000, quando ainda estudava filosofia na Universidade Federal da Bahia, que me deparei pela primeira vez com o conceito de IJ ou Ideas Jockey, criado por Ronaldo Bispo (aka1Aka, abreviação, em inglês, de also known as, “também conhecido como” em língua portuguesa. Nota da redação IJ Abutre), professor alagoano de filosofia. Num site em que se despedia do velho século2http://www.adeusseculoxx.blogspot.com/, hoje fora do ar, o IJ Abutre dava a ideia:

Assim como existem DJs (Disc Jockeys) e VJs (Vídeo Jockeys), sugiro que se considere a profissão do IJ ou Ideas Jockey. O DJ seleciona e mixa músicas, o VJ seleciona e edita imagens e o IJ seleciona, interfere e dissemina ideias: pop filosofia.

Carrinho multimidia 01. Manifesto Curto Circuito – Farol da Barra, Salvador, Bahia, Janeiro de 2010 (manifestação por um carnaval sem cordas em Salvador). Foto: André Lima

Foi impacto filosófico à primeira leitura, ainda mais para uma estudante que questionava o porquê de o ensino acadêmico de filosofia priorizar a história da filosofia ocidental e não o filosofar.

Ser deejay de ideias me parecia uma forma de tornar a filosofia mais livre, interativa, feita nas ruas e que se propunha a pensar, em tempo real, sobre as questões do presente e não só do passado, como propunha a academia. Mas a questão era: como ser uma IJ? Que equipamentos eu precisaria para ser uma deejay de ideias? Com um computador eu poderia “selecionar, interferir e disseminar ideias” nas ruas virtuais, mas e nas ruas analógicas? Qual tecnologia usar? Foi quando o velho amor pelos carrinhos de café emergiu dos labirintos da memória e pensei: por que não os transformar em um mixer para disseminar ideias? Foi assim que, em 2009, idealizei e coloquei o Carrinho multimídia nas ruas de Salvador e saí, pela primeira vez, (re)mixando ideias e conceitos por seus becos e esquinas.

Carrinho multimidia 01, Gente Diferenciada, São Paulo, 2011. Foto: Luis Eduardo Catenacci

Carrinho multimídia

O Carrinho multimídia é uma estação de arte e comunicação ambulante, inspirado nos carrinhos de café baianos, mas com pitadas dos sound system jamaicanos, hip-hop, filosofia socrática, tropicalismo… Equipado com microfone sem fio, mixer, amplificador, mp3, caixas de som, tablet, projetor portátil, painel led de mensagens, imãs personalizados, o Carrinho multimídia foi idealizado para compartilhar, de forma livre e colaborativa, fragmentos de ideias e experiências do século 21. Em tempo real, nas mais diversas linguagens (visuais, escritas, orais, sensoriais) e nos mais diversos formatos (performances, vídeos, gifs, imãs, stencils, discursos…).

Carrinho multimidia 09, Bienal de Cerveira, Portugal, 2011. Foto: Patrick Esteves

O Carrinho multimídia é minha lousa ambulante, minha rede social analógica, e com ele realizei performances, aulas livres, instalações ambulantes e ações educativas pelas ruas de Salvador e de outras cidades também – São Paulo (SP), Aracaju (SE), Prado (BA), Roma (Itália), Luanda (Angola), Cerveira (Portugal), dentre outras. Quando idealizei o Carrinho, o objetivo era (e ainda é) amplificar as diversas vozes silenciadas que configuram minha identidade: mulher, negra, indígena, mestiça, nordestina, LGBTQIAPN+3LGBTQIAPN+ é uma sigla que abrange pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo, Assexuais, Poliamor, Não-binárias e mais. Nota da redação. A amplificação dessa diversidade de vozes silenciadas, aliada ao forte apelo estético e ao espírito plural do novo século, fez com que a recepção do público fosse imediata e calorosa. A recepção e a interação do público transformou o Carrinho em um instrumento coletivo de combate ao racismo, ao machismo, ao feminicídio, à homofobia, à aporofobia e a tantos outros ismos e fobias.

Carrinho multimidia 08, Bienal de Cerveira, Portugal, 2011. Foto: Patrick Esteves

Deejays de ideias

Em 2024, o conceito de Ideas Jockey completa 21 anos. Quando ele surgiu, em janeiro de 2004, IJ Abutre, seu criador, encontrou nas recém-criadas redes sociais da época (fotolog, blogs, Orkut…) um solo fértil para disseminar seu conceito – talvez por se tratar de espaços que abrigavam, ao mesmo tempo, diversas linguagens (escrita, imagens, sons). Mas muita coisa mudou desde 2004.

Carrinho Brau, Festival Caymmi de Música, Salvador, 2017. Foto: Ulisses Dumas, Argo Imagem

Imãs. Foto: Ana Dumas

As redes sociais atuais, além de marcarem forte presença na vida contemporânea, possibilitam que seus usuários interajam, remixem e reeditem os conteúdos disponibilizados. Muitas redes sociais permitem que os conteúdos compartilhados sejam remixados, transformando seus usuários em deejays de ideias, mesmo os que não sabem o que isso significa. IJ Abutre, o criador do conceito, nos lembra que:

“É necessário que se perceba que muitas pessoas são IJ atualmente, mesmo sem se autodenominarem. Qualquer pessoa que una música, imagens e ideias, fazendo a seleção e avaliação daquilo que realmente vale a pena, desempenha esse papel”.

Natal remix, Pelourinho, Salvador, 2010. Foto: Lane Mota

Voltando aos carrinhos de café e ao Carrinho multimídia, sempre me perguntam se é necessário ter um carrinho de som para ser um deejay de ideias. Eu sempre respondo que não é necessário, mas ajuda e muito, principalmente pelo apelo estético e lúdico que ele desperta nas pessoas. Ainda que não seja necessário ter um mixer inspirado nos carrinhos de café para ser um Ideias Jockey, o Carrinho multimídia inspirou muitos artistas, performers e ativistas a criarem seus próprios carrinhos multimídias e disseminarem suas ideias.


Carrinho multimidia, Feira dos Livros TCA, Salvador, junho 2010. Foto: Maira Cristina

E os carrinhos de café, que eram vistos como “coisa de pobre”, hoje são aceitos e incorporados pela classe média, que os contrata para performarem em seus eventos públicos e/ou privados. De alguma forma, o Carrinho multimídia (re)inspira os novos carrinhos de café, que estão mais ousados estética e tecnologicamente, assim como também estimula seus pilotos-vendedores a se reconhecerem como performers. Que venham os novos carrinhos de café e que eles espalhem o espírito plural do século 21 pelo mundo afora!!!

IJ Blecape, Salvador, 2024. Foto: Helton Reis

Ana Dumas
É artista multimídia, bacharel em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (2006) e uma Ideas Jockey (IJ), uma deejay de ideias, conceitos, narrativas. Em 2009, idealizou o Carrinho multimídia – uma estação de arte e comunicação ambulante – com a intenção de compartilhar, de forma livre e colaborativa, reflexões e registros acerca do século XXI. Com o Carrinho multimídia, participou da II Trienal de Luanda (Angola, 2010); 16ª Bienal de Cerveira (Portugal, 2011); exposição Esto no es un museo (Espanha, México, EUA, Slovenia, Chile, Brasil, 2011-2015), além de apresentações no Brasil e outros países.

Notas

  • 1
    Aka, abreviação, em inglês, de also known as, “também conhecido como” em língua portuguesa. Nota da redação
  • 2
    http://www.adeusseculoxx.blogspot.com/, hoje fora do ar
  • 3
    LGBTQIAPN+ é uma sigla que abrange pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo, Assexuais, Poliamor, Não-binárias e mais. Nota da redação

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