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Sobre formas, digital, putaria e meu aluguel
Luiz Capelo

Macaco no balanço. Ilustração: GRAO, 2023.

Bem, esse texto começou em uma troca de mensagens de Zapzap. Nesse local digital, estavamos conversando eu e um amigo um pouco sobre tudo e nada. Ao final, como de costume, não chegamos a resolver questão alguma, apenas nos contentamos com a tradicional lamúria sobre como o sistema é bruto, desigual e outros adjetivos pouco elogiosos.

πόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι, πάντων δὲ βασιλεύς, καὶ τοὺς μὲν
θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους, τοῦς μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ
ἐλευθέρους. (Heráclito de Éfeso, fragmento DK 53)

« O conflito é o pai de todas as coisas e rei de todos. Alguns ele desvelou serem deuses, outros serem homens; ele fez de uns homens livres, de outros escravos[mfn]As traduções dos textos gregos são de minha autoria.[/mfn]».

Apesar dessas constatações pouco animadoras, coloquei-me a pensar. Sim, o sistema é cruel. Ele transforma uns em livres, outros em escravos  — valeu, Heráclito! Apesar da alcunha « O Obscuro », sempre muito claro — mas nada disso é novidade. Como vivo da escrita, pensei com meus botões que deveria escrever sobre o tema, porém apresentando uma abordagem correlacionada ao que venho pesquisando, a poética da putaria.

Em outros carnavais, falei que a putaria, uma tradução bem brasileira do πορνικός grego, é uma heterotopia (FOUCAULT, 2004). Ora, a heterotopia é esse lugar outro que, por sua alteridade, desvela também o nosso lugar, a realidade em que vivemos. Como instrumento de análise, a putaria me serve para pensar como propomos que as coisas deveriam ser, mas ela também me permite analisar as coisas como elas são. Vislumbrar o outro revela como somos.

Hoje, estamos imersos naquilo que Milad Doueihi coloca como sendo a era do humanismo numérique — sim, eu vou usar esse galicismo claro e evidente ; sim, eu vou puxar a sardinha pra francofonia ; é sobre isso e está tudo bem. Dentre outros elementos, o numérique — ou digital, se você meu caro leitor insiste em utilizar a vertente anglófona — é caracterizado por sua busca de totalidade e tecnicalização moduladas pelas especificidades culturais locais, o que acarreta uma constante hibridização. Em outros termos, o numérique, por intermédio de suas técnicas e ferramentas, busca padronizar o globo, porém, para continuar sendo rentável do Oiapoque ao Chuí, ele precisa levar em consideração algumas peculiaridades locais. Nesse processo, ele cria objetos híbridos. A Anthologia Graeca — olha lá ele puxando sardinha de novo — é um desses objetos. Uma plataforma que transforma em um objeto digital uma antologia inicialmente inscrita em um códice.

Golfinho diversificando trabalhos. Ilustração: GRAO, 2023.

Essa digressão sobre o numérique é importante para meu argumento porque ela aponta duas coisas interessantes: vivemos sob uma forma numérique, e essa forma se pretende total. Não é bem uma novidade isso que estou escrevendo, afinal outros já escreveram sobre o « capitalismo global », « divisão internacional do trabalho », etc. Minha modesta adição nessa corrente de pensamento é refletirmos sobre o mundo numérique e sua forma — πόλεμος, capitalismo, neoliberalismo, globalização, humanismo numérique, os formatos se sucedem — que regem as nossas vidas e interações.

A forma é todo ordenamento de elementos que traz ordem, motivos e contornos aos objetos (LEVINE, 2015). Há cinco elementos definidores das formas :

  1. As formas constrangem: a forma impõe limites, ela determina aquilo que pode e aquilo que não pode ser feito. Por exemplo, um soneto é uma forma literária que impõe um texto escrito em verso e tradicionalmente dividido em 14 versos. Não há um soneto escrito em prosa. Do mesmo modo, uma prisão restringe determinados indivíduos a ficarem em um espaço delimitado e a propriedade privada obriga que eu pague aluguel ao proprietário do apartamento ;

  2. As formas divergem umas das outras: desde Aristóteles discutimos a distinção entre o formato da tragédia e o da comédia. E um quartel e uma escola são espaço distintos — mesmo que alguns (malditos) milicos insistam em tentar equipará-los ;

  3. As formas se interpenetram: diferentes formas funcionam em um mesmo espaço de maneira concomitante e complementar. Em uma HQ, há a forma narrativa e a imagética. Do mesmo modo, em uma cidade ordenamentos jurídicos municipais, estaduais e federais coexistem ;

  4. As formas se deslocam no tempo e no espaço: a poesia épica de Homero é distinta daquela de Camões. O capitalismo imperialista no Congo Belga do século XIX não é o mesmo capitalismo digital que hoje comanda Wall Street ;

  5. As formas são construídas sociohistoricamente: as formas refletem e respondem às condições, aos eventos e às discussões políticas das sociedades que as constroem. Como coloca Lukacs (LUKACS, 2010), o auge do romance enquanto forma literária é concomitante à ascensão da burguesia como classe dominante. Um evento é uma resposta ao outro. A concentração de propriedades em poucas mãos formata um mercado imobiliário onde há mais locatários do que proprietários.

Para além disso, as formas possibilitam coisas, elas permitem utilizações e ações latentes nos objetos. Essa potencialidade dos objetos é conceitualizada como affordance. Uma cadeira possibilita que o indivíduo sente nela, fluídez e transparência são affordances da água e o capitalismo permite a exploração e o acúmulo de riquezas. Cada forma e modelo, seja literário ou social, acarreta um conjunto de características, ações e possibilidades.

O numérique não se restringe à informatica e a suas técnicas e objetos. Certamente computadores, blogues, redes sociais e celulares são elementos marcantes da « moderna vida digital ». Mas argumento aqui que o numérique na realidade é muito mais do que isso. Ele é uma forma que organiza indivíduos e interações sociais. Não devemos confundir a representação material com o sistema como um todo.

Vivemos em um sistema que se pretende global. Compartilhamos um mesmo conjunto de características, ações e possibilidades. Estando em Montreal ou em Brasília, aluguéis funcionam de modo semelhante. Quem é desprovido de propriedade precisa pagar para que quem tem posses tenha ainda mais. Se você deseja ter um teto sob a sua cabeça, mas não o possui, você é constrangido a pagar. Não há alternativa, não há escolha.

ἡ τρισὶ λειτουργοῦσα πρὸς ἓν τάχος ἀνδράσι Λύδη,
τῷ μὲν ὑπὲρ νηδύν, τῷ δ᾽ ὑπό, τῷ δ᾽ ὄπιθεν,
εἰσδέχομαι φιλόπαιδα, γυναικομανῆ, φιλυβριστήν.
εἰ σπεύδεις, ἐλθὼν σὺν δυσί, μὴ κατέχου. (Tudicius Gallus, Antologia Grega, 5.49)

Sou Lídia, a que serve a três homens em um mesmo momento – um no buraco de cima, outro no de baixo e o outro por trás – e acolho aqueles que gostam de garotos, os que gostam de mulher e os que são inclinados à violência. Se tens pressa, e veio com outros dois, não se contenha!

A exploração do trabalho ocorre em todas as partes do globo, mas a forma se desloca no tempo e no espaço. Assim, nos rincões do Brasil, a exploração do trabalho chega ao ponto de ser equiparada à escravidão, enquanto os revisores de texto, em seus bonitos escritórios aclimatados, precisam pagar uma licença anual para que possam usar sua ferramenta de trabalho — sim, é de você mesmo que estou falando, Microsoft Office, que me obriga a pagar para que eu possa trabalhar.

Esse texto, semelhante à conversa que o originou, também não responde definitivamente às grandes questões. Por vezes, acredito que escrever, além do ganha pão, consiste em uma grande válvula de escape desse numérique louco que tanto demanda de todos nós. Sim, no final, teremos de conviver com Trumps, Bolsonaros e Legaults. Como dito, é um sistema que se pretende universal, mas se adapta ao local. A polarização ocorre por todo o mundo. Ela não é uma exclusividade de EUA, Brasil ou Canadá. O que devemos fazer, no final, é arrumar um jeito de sobreviver, de constantemente nos reinventarmos para continuarmos de pé, gritando para quem quiser ouvir: « vocês me querem substituível, padronizado e igual ao próximo. Mas eu resisto. Eu estou aqui e aqui permanecerei ». Bem, resistir e pagar o aluguel. Não nos esqueçamos do aluguel.

Lei de Franciel. Fonte: Medo e delírio em Brasília

Bibliografia

Doueihi, Milad. 2011. Pour un humanisme numérique. La librairie du XXIe siècle. Paris: Éditions du Seuil

Foucault, Michel. 2004. « Des espaces autres ». Empan 54 (2):12‑19. https://doi.org/10.3917/empa.054.0012.

Levine, Caroline. 2015. Forms: whole, rhythm, hierarchy, network. Princeton: Princeton University Press. http://site.ebrary.com/id/10968872.

Lukács, Gyorgy. 2010. Marxismo e teoria da Literatura. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. 2ᵉ éd. São Paulo: Editora Expressão Popular.

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