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Ressentimento em meio à riqueza
Elementos para uma geografia brasileira do descontentamento e da polarização política
Aristides Monteiro Neto

O porto de Paranaguá esta juntando a produção do interior do Brasil com a globalisação. Tal processo questiona as identidades e gera ansiedades entre os atores. Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo

Reino Unido, EUA, Áustria, Holanda, Alemanha, França, Espanha, Portugal, Grécia, Itália, Argentina e Brasil são alguns dos países democráticos onde movimentos políticos de direita e ultradireita tiveram ascensão nesta última década. As motivações para tal não são exatamente as mesmas, mas parecem se perfilar ao lado do sentimento de desilusão com as promessas da democracia. Sem dúvida, a crise financeira global de 2008/2009 pode ser considerada um gatilho para esse processo de desencanto. Esta crise gerou impactos negativos duradouros sobre desemprego nos mercados de trabalho, ampliação do nível de ociosidade no mercado de bens e serviços e queda do produto interno bruto em vários países, sendo os grupos etários mais jovens os mais afetados. Uma década depois, quando se imaginava que a recessão poderia ficar para trás, veio a pandemia da Covid-19 com efeitos perturbadores sobre o quadro pretérito.

Nesses países as comunidades políticas têm estado mais divididas e mais antagonizadas quanto a suas aspirações e perspectivas. As posições antissistema foram se tornando mais presentes, o grau de descontentamento com o status quo do capitalismo democrático muito mais elevado que em qualquer época desde a segunda guerra mundial. Algumas explicações para as controvérsias atuais estão sendo buscadas na geografia: regiões que sofrem de prolongado declínio econômico ou ainda regiões que se sentem deixadas para trás por parte das políticas governamentais têm se mostrado mais descontentes e suas respostas a esta situação têm se inclinado para radicalizações à direita do espectro político.

No Brasil, a radicalização política chegou a níveis muito elevados desde a experiência do impeachment da presidenta Dilma Rousseff atingindo nível de fervura no governo Bolsonaro (2019-2022). Embora se deva considerar que não existe total homogeneidade geográfica ou regional no ressentimento e radicalidade política, pode-se argumentar que se percebe um forte componente geográfico ou espacial no comportamento do eleitor quanto a sua expressão sobre os acontecimentos políticos nacionais. Sem dúvida, estão nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país, de maneira mais visível, as expressões de adesão a políticos e políticas de direita e extrema-direita. Quais as razões para que isto viesse a ocorrer de maneira tão magnificada?

Autores europeus, como Andrés Rodriguez-Pose da London School of Economics e Philipp McCann da Universidade de Sheffield, ambos na Inglaterra, têm investigado a associação entre o mapa do descontentamento político (geography of discontent) e os lugares (ou regiões) que ficam para trás (left behind places). O argumento que une este campo de estudos é que regiões (dentro de países europeus) têm ficado permanentemente para trás na corrida do crescimento e seus cidadãos vêm enfrentando longa escassez de oportunidades de emprego, baixos salários e baixa mobilidade social. Em geral, estas regiões estão passando por processos de desindustrialização ou suas estruturas produtivas estão baseadas em produtos agrícolas e pesca com baixa conexão a mercados internacionais. Para os cidadãos descontentes, os problemas se devem, geralmente, a insensibilidade das elites das metrópoles nacionais globalizadas e prósperas (Londres no Reino Unido, Paris na França, Madri na Espanha, etc.) que capitalizam para si os fluxos globais de investimento que chegam a estes países; ou ainda aos imigrantes, que estão tomando os empregos dos cidadãos nacionais; ou aos aposentados e pensionistas, que geram custos para o sistema previdenciário nacional; enfim, a culpa é sempre do ‘outro’. Daí a resposta na forma de separatismos, como foram o Brexit (Reino Unido) e tentativa de secessão da Catalunha (Espanha), ou mesmo ascensão de partidos políticos que demonizam migrantes (Chega! em Portugal, Vox na Espanha e outros).

No Brasil, a ideia de uma geografia do descontentamento ou, como sugerem alguns, do ressentimento parece ser útil para o debate político atual. O cenário político brasileiro um ano depois da posse do novo governo continua polarizado e dividido. O governo do presidente Lula, e ele próprio, tem feito viagens aos estados do Nordeste e do Norte do país, mas encontra resistência e faltam convites dos governadores dos demais estados. Lembremos alguns números da votação presidencial em 2022. O presidente Lula ganhou a eleição com 60,3 milhões de votos e apenas 2,2 milhões de votos a mais que Bolsonaro. Nas grandes regiões brasileiras a geografia do voto já mostra a dimensão das dificuldades que o governo vem enfrentando: Lula teve 69,3% dos votos dos estados do Nordeste com um diferencial de 12,5 milhões de votos à frente de Bolsonaro. Na região Norte, Lula perdeu por pequena margem de 192,2 mil votos (4,59 milhões contra 4,78 milhões de Bolsonaro), mas foi vitorioso nos estados mais ricos e populosos, Amazonas e Pará.

Geografia dos votos a presidente na eleição de 2022 (Lula vs Bolsonaro), por município. Fonte: TSE. Elaboração do autor

Lula perdeu, entretanto, nas demais regiões do país onde as populações são mais ricas, mais escolarizadas, mais urbanizadas e apresentam maiores índices de desenvolvimento. Na região Sudeste, a mais rica do país, ele perdeu pela diferença de 4,25 milhões de votos: teve 22,79 milhões e Bolsonaro 27,04 milhões. Na região Sul, outra perda de 4,18 milhões, com o total de 6,75 milhões de eleitores apostando nele e 10,94 milhões ficaram com Bolsonaro. Na região Centro-Oeste, dos 8,85 milhões de eleitores, 3,52 milhões votaram a favor de Lula e 5,33 milhões votaram no candidato da direita. Oito anos antes, em 2014, a presidenta Dilma Rousseff teve 54,5 milhões de votos com esta mesma geografia: ganhou nas regiões Norte e Nordeste por margem suficiente (13,17 milhões a mais que o candidato Aécio Neves) para superar as perdas obtidas (9,68 milhões a menos que Aécio Neves) nas regiões mais ricas do país (Sul, Sudeste e Centro-Oeste).

Num passado não muito distante, nas décadas de 1980 e 1990, os eleitores das regiões Norte e Nordeste, mais atrasadas do país, apoiavam os grupos políticos de direita – apoiadores do regime militar de 1964, coronéis nordestinos, etc. Os eleitores nestas regiões eram vistos como conservadores e pró-populistas. Por outro lado, as regiões mais industrializadas e urbanizadas do Sudeste e Sul votavam em políticos de esquerda ou progressistas. A partir da década de 2000, com a eleição do presidente Lula em 2002, a situação se inverteu com as regiões atrasadas passando a votar com a esquerda (PT) e sua coalizão e as regiões mais desenvolvidas ficaram mais ao centro do espectro político escolhendo candidatos do PSDB vistos como mais (neo)liberais em termos econômicos.

As eleições de 2018 reconfiguraram definitivamente o cenário político nacional por seu grau de radicalidade política. O candidato eleito à presidência da república, Jair Bolsonaro, já não pode ser visto como de centro, ou de centro-esquerda, nem de centro-direita. Na verdade, ele é de ultradireita de matiz conservadora nos costumes, militar e autoritário na política e nacionalista na economia. Com estas qualidades (negativas) em alta potência, fica a pergunta sobre as razões pelas quais ampla maioria de eleitores residentes nas regiões conhecidas como mais desenvolvidas (Sul, Sudeste e agora o Centro-Oeste) deu folgado apoio a este personagem.

O que justificaria o descontentamento das regiões mais ricas do país com relação às regras da democracia? Por que os grupos mais aquinhoados da sociedade brasileira, residentes nas regiões mais prósperas, passaram abraçar a ideia de ruptura democrática e do conservadorismo político? Diferentemente do que ocorre em países da União Europeia e também no Reino Unido em que as regiões descontentes são regiões empobrecidas ou que estão ficando para trás, no Brasil as regiões ricas estariam descontentes ou ressentidas. Mas descontentes com o quê?

Nossa hipótese é que dois vetores produtivos regressivos e fundamentais estão em ação na economia brasileira atuando para alimentar, cada qual condicionado pelos humores do mercado mundial e por expectativas de medo e desilusão de ficar para trás na corrida pelo crescimento. O primeiro vetor é o relacionado com o processo de desindustrialização que vem ocorrendo desde a década de 1990 e tem como epicentro as principais metrópoles e polos industriais das regiões Sudeste e Sul. Um doloroso e prolongado processo de transição produtiva em direção a serviços modernos e outras atividades baseadas em conhecimento está em curso sem que ainda tenha apresentado dinamismo suficiente para recompor as perdas econômicas e de empregos resultantes do desaparecimento da indústria.

O segundo vetor alimentador do descontentamento é o da expansão das atividades do próspero agronegócio exportador, com epicentro na região Centro-Oeste, e partes das regiões Sul e Sudeste. Neste caso, as razões mais prováveis estão nas expectativas geradas entre os produtores de não serem capazes de capturar todos os ganhos imaginados pelo boom de commodities devido a mudanças bruscas e frequentes nos preços de seus produtos de exportações de grãos e carnes. Para este tipo de atividade produtiva – insumos agrícolas, grãos e carnes – que atua em mercados globais muito competitivos com escassa capacidade de atuar sobre os preços, quando estes estão em alta os produtores ficam bem, mas qualquer queda nas cotações afeta demasiado seu faturamento final, frequentemente levando os produtores a prejuízos. Devemos lembrar que às vésperas do impeachment presidencial, entre 2012 e 2014, houve uma queda expressiva nos preços internacionais das commodities brasileiras com efeitos negativos sobre os negócios do setor.

Uma situação explosiva de instabilidade e decadência em áreas geograficamente delimitadas parece ser, no Brasil, o gatilho para o ressentimento das regiões mais ricas. De um lado, a desindustrialização e desarticulação de cadeias industriais tem afetado as grandes metrópoles nacionais e centros industriais, principalmente do Sudeste. A transição destes lugares em direção a economia de serviços tem sido longa e dolorosa, acompanhada de desemprego estrutural e limitação do horizonte de melhoria intergeracional da renda familiar. De outro lado, nas subáreas produtoras de bens agrícolas e carnes para exportação existe a percepção de volatilidade dos preços internacionais (custos dos insumos, câmbio e preços finais pagos pelas commodities) e, portanto, também do faturamento dos produtores. Para os que se encontram nas duas posições, o apoio a governos que realizam reformas trabalhistas e previdenciárias (redutoras de custo unitário do trabalho) e que retiram legislações ambientais e facilitam a ocupação de terras virgens em áreas de florestas e cerrados garantindo a expansão do agronegócio pela exploração desimpedida de recursos naturais, é determinante para sua existência econômica.

Contrariamente ao que ocorre em países da União Europeia, no Reino Unido e mesmo nos EUA, no Brasil os descontentes e ressentidos que se expressam politicamente pela radicalidade da direita e ultradireita não estão nas regiões mais pobres do país, estão justamente nas mais ricas e que por razões múltiplas estão se sentido ameaçadas de ficarem para trás na corrida do crescimento econômico. Seus algozes e inimigos, sem que percebam ou queiram admitir, estão justamente fora do país e não dentro.

*Aristides Monteiro Neto é Doutor em Economia Aplicada e Pesquisador do IPEA.

Colhetadeiras indicam a mecanização da agricultura nacional. Foto: Paulo Fridman/Corbis via Getty Images / DINO

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