Demarcação da Terra Indígena Araweté. Fonte: Leonardo Carneiro da Cunha
Este texto intensifica o Abril Indígena ao qual se dedica o Coletivo Brasil. Após falarmos sobre a histórica reparação coletiva concedida aos Guarani-Kaiowá e Krenak, eis que publicamos um texto de Márcio Santilli, político, ativista dos direitos dos povos indígenas e um dos fundadores do Instituto Socioambiental, ISA. É um momento significativo. Se, em nossas pesquisas, inúmeras vezes consultamos o site “Povos Indígenas no Brasil” e se publicamos um texto sobre o Redário de Sementes, precisamos também agradecer ao ISA. A Produção e difusão de conhecimento, a defesa de direitos, a comunicação e o apoio a parceiros locais são as linhas que guiam a instituição. Há 30 anos o ISA vem ensinando que “socioambiental se escreve junto”. Tal qual relação de “raiz-antena”, unem-se comunidades locais e decisões políticas. Em uma “Aliança dos Povos da Floresta”, juntam-se Ailton Krenak e Chico Mendes. Hoje, quando muito se discute a desinformação, é gigante a importância desse grande banco de informações qualificadas sobre o Brasil socioambiental. Na comemoração de sua terceira década, o ISA lança filme e livro sobre a trajetória do antropólogo Beto Ricardo, também fundador da instituição. E, claro, este texto de Márcio Santilli para o Coletivo Brasil.
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O ISA, Instituto Socioambiental, completará 30 anos em abril. Foi fundado por pessoas atuantes na defesa dos direitos indígenas e do meio ambiente, colaboradoras do CEDI, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação, e do NDI, o Núcleo de Direitos Indígenas, organizações que deixaram de existir com a criação do ISA, além da SOS Mata Atlântica, que continuou existindo como instituição autônoma. Alguns anos depois, outras duas entidades, a FMV, Fundação Mata Virgem, e a CCPY, Comissão Pró-Yanomami, também foram incorporadas ao ISA.
Em 1994, o Brasil vivia, então, um momento de consolidação democrática, após o impeachment de Fernando Collor, a posse de Itamar Franco e a implantação do Plano Real, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso. O país também digeria o impacto da Rio-92, conferência da ONU realizada no Rio de Janeiro, em 1992, que reuniu chefes de Estado do mundo todo para assinarem as convenções sobre a biodiversidade e as mudanças climáticas globais.
A preparação e a realização dessa reunião ensejou a mobilização concomitante de ambientalistas, indigenistas, artistas, cientistas e movimentos sociais, cruzando agendas que, até então, raramente se encontravam, e compartilhando experiências e expectativas sobre o país e o mundo. As convenções resultantes desse evento são as principais referências internacionais para o desenvolvimento sustentável e instauraram um novo olhar para a diversidade socioambiental do Brasil, seus ativos e passivos.
Povos da Floresta
A convergência entre agendas sociais e ambientais não é óbvia e resulta de uma construção histórica. Quando os migrantes nordestinos avançaram pela Amazônia Ocidental para trabalhar nos seringais, houve muitos conflitos entre seringueiros e indígenas. Mas o avanço da fronteira agrícola e das frentes de desmatamento colocou-os diante de uma ameaça comum. Os seringueiros promoviam “empates”, liderados por Chico Mendes, para barrar a devastação que avançava sobre os seringais. Os povos originários lutavam para proteger seus territórios de madeireiros, garimpeiros, grileiros, entre outros. Nesse contexto, surgiu a Aliança dos Povos da Floresta, aproximando as duas populações.
Chico Mendes não veio do movimento ambientalista. Ele era um dirigente sindical. A luta dos seringueiros pela reforma agrária forjou as reservas extrativistas (Resex), associadas à conservação florestal e à subsistência de comunidades que dependem da floresta de pé. As Resex passaram a integrar o SNUC, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A definição constitucional de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas também incorporou a proteção ambiental e o seu uso futuro.
Historicamente, os dirigentes políticos valeram-se, para o bem e para o mal, da criação de unidades de conservação (UCs) sobre terras ocupadas por povos indígenas e outras populações tradicionais. Por exemplo, em 1961, quando ainda não se dispunha de bases jurídicas sólidas para se demarcar territórios indígenas tradicionais, o então presidente Jânio Quadros criou, por decreto, o Parque Nacional do Xingu (MT), fundamental para a sobrevivência de vários povos indígenas. Por outro lado, em 1987, o presidente José Sarney editou decretos criando as Florestas Nacionais do Amazonas e de Roraima, incidentes sobre o território indígena Yanomami. O objetivo era não demarcar a área em sua extensão contínua e reduzi-la a 21 “ilhas” descontínuas, garantindo trechos de floresta para exploração dos não indígenas.
São frequentes os casos em que comunidades indígenas, quilombolas ou extrativistas, cujos territórios foram sobrepostos aos de UCs de uso restrito, são constrangidas por plantarem suas roças e fazerem outros usos tradicionais da terra.
Conceito
Em 1994, já estava evidente que, no contexto de um país emergente e amazônico, a proteção e o manejo das florestas são intrínsecos às formas de vida das populações tradicionais. Com o avanço das demarcações de terras indígenas, a partir de 1992, também ficou evidente que o grau de conservação nelas equivale ao das unidades de conservação de uso restrito.
Ao longo desse tempo, ambientalistas, dirigentes de movimentos sociais e organizações apoiadoras compreenderam que a sustentabilidade política futura dos territórios e das demais áreas legalmente protegidas estará, cada vez mais, associada aos serviços que prestam para o conjunto da sociedade. A defesa do meio ambiente e dos direitos sociais devem andar juntos.
Hoje, o uso da expressão “socioambiental” generalizou-se. Ela pode estar numa peça publicitária, num sermão religioso, num documento militar ou numa tese de doutorado. Em 1994, não era uma palavra usual, mas trazia a síntese dos processos em curso. Ao assumi-la como nome, os fundadores do ISA instituíram como epígrafe “socioambiental se escreve junto”.
Raízes e antenas
O ISA herdou culturas institucionais, financiadores, acervos, projetos, colaboradores e parceiros de diversas organizações. Com bases nessas heranças, mantém quatro linhas de atuação: (1) produção e difusão de conhecimento, com mais de 660 publicações produzidas, entre livros, pesquisas, diagnósticos, notas técnicas, pareceres e cartilhas, entre outros, em quase 30 anos; (2) defesa de direitos, que busca influenciar as políticas públicas quanto à agenda socioambiental; (3) comunicação, que produz e divulga notícias e informações especializadas, através de canais próprios e de assessoria de imprensa; e (4) apoio a parceiros locais, com ações de fortalecimento institucional, desenvolvimento de cadeias produtivas da floresta, monitoramento territorial, formação de redes de comunicadores, identificação de parcerias e processos formativos.
Para tanto, o ISA dispõe de uma estrutura verticalizada, com três programas regionais, ancorados em parcerias de longo prazo com organizações quilombolas, extrativistas e indígenas, nas bacias dos rios Negro (AM-RR), Xingu (MT-PA) e Ribeira de Iguape (SP-PR). A atuação dos programas regionais é definida e planejada com os parceiros locais.
O ISA também dispõe de um programa temático sobre Povos Indígenas no Brasil, que mantém bancos de dados e publicações especializadas, de referência, com equipe baseada em São Paulo. E, ainda, do Programa de Política e de Direito Socioambiental, baseado em Brasília, que acompanha o tratamento da agenda socioambiental pelos poderes da República.
Além desses programas, o ISA desenvolve serviços permanentes de secretaria executiva, administração, tecnologia da informação, documentação e comunicação, coordenados a partir de São Paulo.
As equipes do ISA operam a partir de oito escritórios: São Paulo (sede), Brasília (DF), Eldorado (SP), Canarana (MT), Altamira (PA), Manaus (AM), São Gabriel da Cachoeira (AM) e Boa Vista (RR). O ISA integra várias redes de articulação interinstitucional, de âmbito regional, como a Rede Xingu +, nacional, como o Observatório do Clima, e internacional, como a RAISG, Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada.
Além da síntese conceitual socioambiental, a relação “raiz-antena”, que pretende conectar, numa via de mão dupla, comunidades locais e territórios e as decisões políticas, principalmente na esfera nacional, orienta a atuação do ISA. Longe de ser linear, a fricção cotidiana entre normas e políticas gerais, e expectativas e demandas locais, revela contradições, que requerem ajustes e correções. A relação “raiz-antena” também deriva da natureza diversa dos parceiros, das suas inserções regionais e das conjunturas políticas nacionais.
Acúmulos
Com todos esses anos e tantas inserções, não é fácil listar os fracassos e sucessos da atuação do ISA. Decupar centenas de relatórios de atividades seria inglório e a lista escaparia do formato desta publicação. Além disso, ela se confundiria, numa ponta, com o crescimento e as conquistas dos parceiros locais e, na outra ponta, com os méritos dos nossos aliados, sejam organizações parceiras, cientistas, autoridades públicas, empresários ou comunicadores, na construção de leis, de políticas e de acordos internacionais.
A presença institucional contínua do ISA tem sido fundamental para a construção de uma perspectiva socioambiental para o Brasil. Partindo da premissa de que, no campo plural e horizontal do terceiro setor, “nenhuma andorinha sozinha faz verão”, o ISA ajuda a vertebrar esse campo e não faria sentido sem os seus aliados e sem os seus parceiros locais. O ISA é uma mola, mas só os movimentos sociais desse campo em conjunto nos levarão ao Brasil Socioambiental.
O ISA tem hoje cerca de duzentos colaboradores, mas já foi e ainda será o espaço de trabalho de centenas de pessoas, que levam um pouco dele para outras instituições e para outras frentes de atuação. A organização é uma escola de um tipo de ativismo que não se aprende na escola. Convidou toda uma geração a olhar o Brasil na perspectiva socioambiental e, assim, consolidar o conceito.
O ISA é um banco de informações e de experiências sobre esse Brasil Socioambiental. Os seus acervos são objeto de milhões de consultas e fonte de informação para professores, pesquisadores e comunicadores. Só entre 2020 e 2023, o conjunto de sites da instituição teve mais de 18 milhões de visitantes únicos. No mesmo período, a organização foi citada mais de 3,7 mil vezes pelos maiores jornais e outros órgãos de imprensa do país.
As informações qualificadas disponibilizadas pelo ISA ajudam órgãos públicos a buscar respostas para as demandas de comunidades indígenas e tradicionais. Ministérios, órgãos executivos federais, frentes parlamentares, Justiça Federal, Ministério Público e governos estaduais demandam as informações e opiniões da organização. O ISA integra, por exemplo, a Conaveg, Comissão-Executiva para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa, entre outras instâncias de representação da sociedade civil. A organização acompanha os processos legislativos relacionados à agenda socioambiental, promove e participa de processos judiciais relevantes para a defesa de direitos coletivos e difusos.
Transição institucional
O ISA chega aos 30 anos com uma extensa agenda de celebrações, em São Paulo, e de mobilização dos colaboradores e parceiros. Será feito o resgate da memória desses anos, das suas principais ações e dos resultados dos seus projetos. Serão lançados um filme e um livro sobre a trajetória e o legado do antropólogo Beto Ricardo, protagonista da sua construção.
Nos últimos anos, foram criadas instâncias para o acolhimento e escuta dos colaboradores, relações com parceiros, filiados e apoiadores, políticas contra discriminações de gênero e de raça. O ISA está mudando de cara, incorporando a diversidade brasileira.
O ISA finalizou o planejamento estratégico das suas atividades para os próximos cinco anos, cujas expectativas serão compartilhadas na celebração dos seus 30 anos. Os avanços dos movimentos indígena, quilombola e extrativista nos últimos anos, demonstrando capacidade de resistência e de mobilização, e ocupando espaços próprios nos governos, convidam o ISA e outras organizações a recomporem, em novas bases, as suas relações.
Serão anos de intolerância e de polarização política. O país estará sujeito ao agravamento dos impactos das mudanças climáticas e terá de enfrentar as suas diferenças sociais e econômicas. O planejamento estratégico deve preparar o ISA para tempos difíceis, que exigem mudanças institucionais e caminhos criativos, capazes de convencer e de mobilizar novas gerações.
Márcio Santilli
Sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), deputado federal (PMDB, 1983-1986), presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai, 1995-1996), autor de inúmeros artigos, capítulos de publicações e dos livros “Os brasileiros e os índios” (2000) e “Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais” (2020)