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Povos indígenas, saúde e doença
Ariel Pheula do Couto e Silva

Cachimbos dos Avá-Canoeiro do Tocantins. Foto: Lorranne Gomes da Silva

Apresento, nesta intervenção, alguns aspectos da minha atuação como linguista tradutor-intérprete em contextos de saúde junto a povos indígenas, sobretudo aos Avá-Canoeiro e a povos indígenas da Amazônia Brasileira. Atuei de 2014 a 2017, a pedido da FUNAI e da SESAI, como acompanhante de indígenas Avá-Canoeiro em hospitais. Trata-se de um povo de recente contato com alto grau de vulnerabilidade. Busquei oferecer um acompanhamento sensível às diferenças culturais na concepção de saúde e doença, fazendo com que a minha função de tradutor-intérprete também desse conta dessas diferenças. No âmbito da pandemia de Covid-19, tive a oportunidade de prestar consultoria à COIAB, na supervisão da tradução de materiais sobre a doença, sobre violência contra crianças, adolescentes e mulheres, e sobre saúde mental indígena para aproximadamente vinte línguas indígenas da Amazônia Brasileira.

Transcrição do vídeo

Bom, primeiramente olá a todos que estão aí do outro lado e que estão me ouvindo. Aqui é boa noite, aí provavelmente bom dia, boa tarde ou boa noite também. Eu trago para vocês algumas considerações sobre a linguística da saúde e da doença, pensando aqui alguns apontamentos somente. Eu penso em trazer algumas informações sobre a linguística da saúde e da doença para os Avá-Canoeiro antes do contexto da pandemia. E, sobre esse tema, para outros povos indígenas, para o contexto da pandemia.

Vamos começar então com os Avá-Canoeiro. Eles são 2 grupos indígenas com poucas pessoas. Ambos são sobreviventes de massacres. São 2 grupos. Um grupo que hoje está na ilha do Bananal é sobrevivente de um massacre acontecido na década de 50 mais ou menos. Eles foram contatados à força na década de 70 pela FUNAI e hoje vivem em uma Terra Indígena que não é a deles em uma situação não muito interessante, que é uma situação de presente de guerra, mas não eu não vou adentrar nos detalhes aqui.

O outro grupo são os Avá-Canoeiro do Tocantins. Atualmente eles moram na Terra Indígena Avá-Canoeiro localizada no norte do estado do Goiás. A gente tem a referência dos nomes de povos indígenas pelos rios. Então Avá-Canoeiro do Tocantins porque eles se localizam na bacia do rio Tocantins, e Avá-Canoeiro do Araguaia, que é o outro grupo, o da Ilha do Bananal, que se localizam no rio Araguaia, na região da bacia do rio Araguaia.

Bom, e como que eu chego a pensar essas questões linguísticas da saúde e da doença para os Avá-Canoeiro? Eu tive e tenho um contato muito forte principalmente com os Avá-Canoeiro do norte do Goiás. Eu tive a oportunidade de trabalhar com eles desde 2012 a convite da FUNAI. No início era um projeto de assessoria linguística que buscava compreender um pouco mais da língua Avá-Canoeiro para facilitar de certa forma o trabalho da FUNAI junto a esse povo.

É importante notar que os Avá-Canoeiro são povos de recente contato. Dada a vulnerabilidade desse grupo e o contato recente e além disso ambos são também sobreviventes de massacres e passaram por redução populacional drástica — uma aldeia que tem em média entre 80 a 150 pessoas foi reduzida a 4 para os Avá-Canoeiro do Tocantins e 11 para os Avá-Canoeiro do Araguaia –, então esse trabalho buscava inicialmente ajudar a FUNAI a ter uma interlocução melhor com os Avá-Canoeiro na medida deles conseguirem expressar os desejos, os anseios e as suas necessidades. Então eu fui um pouco nesse sentido.

Ao longo do tempo dos primeiros anos, eu percebi que a linguística não dava conta dos aspectos interacionais que eu precisava ter com os Avá-Canoeiro. Eu precisei entender um pouco mais da cultura deles, entender um pouco mais a profundidade dos traumas que eles tinham e têm do massacre, do período de fuga — que para os Avá do Tocantins durou aí pelo menos 20 anos –, do momento do contato e do momento do pós-contato, que também não foram momentos muito interessantes para eles.

Algo que sempre me chamou a atenção nesse nessa minha história com eles, principalmente nos primeiros 4 ou 5 anos ali, era a minha identidade. Quem eu era para os Avá-Canoeiro e como que eles se relacionavam comigo a partir da interpretação cultural deles de quem é o outro e das categorias de outro que eles têm.

Algo muito importante que derivou dessa minha observação foi observar por exemplo como que a minha identidade mudava e como isso poderia representar uma forma deles de ver as outras pessoas e o mundo. Fui ler também trabalhos da antropologia e de outras áreas que contribuíram para eu pensar um pouco mais sobre essas questões. Daqui a pouco eu vou comentar como isso se relaciona com saúde e doença.


Iawi Avá-Canoeiro e Ariel Pheula. Foto: Egipson Correia

Então, num primeiro momento eu era considerado como motivo de piadas, nós vamos dizer assim, uma jocosidade. Eu recebi um apelido que era o mesmo apelido que os regionais davam para os Avá-Canoeiro em referência a serem moles, serem preguiçosos — o que é um preconceito arraigado na nossa cultura em relação a povos indígenas –, que é o termo “mandioca”.

Num segundo momento, eles passaram a me chamar pelo nome. Foi quando eles conseguiam prever o que eu ia fazer. No início eu escorregava, eu falava coisas que eles não previam. Então era chamado de “mandioca” por ter um pouco de uma certa, talvez, insegurança que se expressa em uma risada. Com o tempo, depois de 1 ano mais ou menos de contato com eles, eles passaram a me chamar pelo nome, o que já diz a minha identidade. Eu passo a ter uma identidade na inter-relação com eles. Eu sou o “Adriel”, o “Ariel”, que é o meu nome.

Então, é muito interessante porque é nesse momento que eles tentam identificar coisas para saber quem eu sou. “Bom, você está aqui, mas você não é relacionado à FUNAI, que trabalha com a gente, nem com a SESAI”. Eles passam então a vir para Brasília, conhecem a Universidade de Brasília, conhecem o Minhocão, que é o ICC, o Instituto Central de Ciências, que é o prédio onde se localiza o laboratório onde eu faço pesquisa e sou vinculado, que é o Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas da Universidade de Brasília. Eles passam então a chamar o prédio de Minhocão e a me relacionar a Minhocão, a Universidade.

Algo muito interessante acontece quando eu passo a acompanhar os Avá-Canoeiro em internações hospitalares que foi uma cena de uma técnica de enfermagem que, brincando, perguntou para o único homem remanescente do contato com os Avá-Canoeiro do Tocantins se eu era filho dele, né. Fisionomicamente a gente não tem muita semelhança. Aí ele riu, porque ele viu que era um motivo de piada, e falou: “não, não, esso aqui é o meu amigo”. Ele falou em português. Ele falava um pouco em português algumas coisas. E aí eu fiquei com a pulga atrás da orelha para tentar entender qual é o significado de amigo na língua Avá-Canoeiro e como que eu poderia entender isso melhor.


Conversa com Iawi Avá-Canoeiro. Foto: Egipson Correia

Ai eu encontrei um artigo[mfn]Trata-se do texto Sobre o poder da criação: parentesco e outras relações Awá-Guajá, de Uirá Garcia.[/mfn] muito interessante do Uirá Garcia, que é um antropólogo. Esse artigo é de 2015. Ele vai trabalhar também nesse tema, sobre como os Awá-Guajá, localizados lá no norte do Maranhão, interagem entre si. Um aspecto interessante é que a língua deles também é da família Tupi-Guarani. Então eles têm alguma similaridade de certa forma com a língua Avá-Canoeiro.

Aí eu fui tentar interpretar e entender essas questões que eu passei com os Avá-Canoeiro a partir da língua Avá-Canoeiro. Eu achei questões muito interessantes. Por um lado a gente tem as relações de parentesco. Os Avá entre si, eles se relacionam por meio dos termos de parentesco: minha mãe, minha tia, meu filho, meu irmão mais novo, meu mais velho e por aí vai. Quando eles não são parentes, vamos dizer assim, dessa família estendida, a gente vai ter uma relação com o outro, que tanto pode ser, por exemplo, a relação do marido com a esposa, quanto pode ser a relação de um dono com um animal de criação ou daquele que tem pajé com um dos familiares desse pajé.

A gente sabe que essa essa tradução de mundos, que é a função do pajé, é fundamental para os indígenas da América do Sul. Ela tem certas semelhanças com o xamanismo da América do Norte por exemplo, mas tem as suas diferenças também. Ai eu me vi nessa relação dos Avá-Canoeiro mais pajés comigo. Por que? Eu fui tentar entender as categorias de pessoas. Os Avá-Canoeiro são Ãwa, gente de verdade, e eu sou um Maila, um pele branca, do grupo daqueles que mataram e massacraram eles no passado. Então para eles terem uma relação comigo, eles não estão tendo uma relação com pessoas como eles, gente da mesma natureza que eles. Eles estão tendo uma relação com outro, e é neste outro em que eu me incluo. Essa é uma relação potencialmente tensa, potencialmente hierárquica, onde tem muita raiva presente, que é a raiva que está presente na memória deles, nas memórias traumáticas sobre os Maila que mataram eles todos. O que é uma fala muito presente por exemplo da Matcha, que é uma Avá-Canoeiro mais velha. Ela fala que o branco matou tudo, que não sobrou nada, nada né. Até porque 7 sobreviveram ao massacre e 4 sobreviveram para fazer o contato depois.

Então eu fui tentar entender o que significaria amigo nessa relação entre o pajé e eu e um familiar desse pajé. Dentro disso eu fui entender o que é o amigo, que é o estar e viver em movimento em relação a alguém. Isso eu achei muito, muito, muito interessante. E como que isso se relaciona com saúde e doença? Foi porque exatamente quando eu entrei nessa categoria de amigo para os Avá-Canoeiro e por meio da língua Avá-Canoeiro que eu passei a poder acompanhar eles em ambiente hospitalar com mais qualidade. Eu passei a entender como que eles se relacionam com essas outras pessoas; como que eles vão se relacionar com os médicos, com os técnicos de enfermagem e com os enfermeiros; como que essa tradução de um sistema de saúde-doença deles para o sistema biomédico, vamos pensar assim, se daria; e como que eu poderia contribuir uma vez que eu estaria nesse lugar da tradução de mundos de saúde-doença extremamente diferentes.

Então foi por meio dessa relação que eu passei a ter com eles, dessa relação entre eles mais pajé e eu mais familiar, e indiretamente eu mais pajé também, para conseguir interagir com eles e ter uma relação saudável, uma relação boa, que foi o que se estabeleceu.

Eu então acompanhei eles em tratamentos de pneumonia, de tuberculose pleural, de câncer em vários estágios, principalmente um que é o Tutawa, que é como a gente chama ele depois do falecimento — ele faleceu em 2017. Eu conheci ele lá atrás em 2012. A gente trocava ideias, conversava junto, saía para as caminhadas. Ele era uma presença constante quando eu estava na aldeia e quando ele estava em outros lugares como Goiânia, como Brasília. Era uma relação muito, muito interessante.

E ai, nesse contexto médico hospitalar, eu pude perceber várias outras coisas que na Terra Indígena eu não conseguia perceber, que era como que se expressavam então essas questões de saúde doença: o que é estar saudável, o que é estar doente e quais são as causas possíveis. E o que eu vou trazer para vocês é um pouquinho, é aquilo que eu consegui perceber na interação com eles. Eu não almejo aqui representar um sistema inteiro de saúde doença, ainda mais porque a gente sabe que culturalmente, a cultura, ela é atualizada a cada geração e coisas mudam ao longo de gerações, e dentro de uma mesma geração pode mudar também dependendo das experiências.

Então bom, uma coisa que me chamou muita atenção foi a importância dada ao frio e ao calor. A gente sabe que isso é presente em várias culturas humanas, a importância do frio e do calor. A gente tem, por exemplo, a Ayurvédica na Índia. A gente tem várias outras culturas na Europa em que são necessárias a relação do frio do calor. Mas com os Avá-Canoeiro eu achei uma coisa muito muito interessante. Para eles o calor é inerente ao corpo humano, e o frio não. Isso linguisticamente é marcado, essa diferença na língua Avá-Canoeiro. E aí se a gente faz um tipo de atividade que aumenta muito o calor do teu corpo é equivalente a tu estar doente por excesso de calor. Então por exemplo, se eu vou trabalhar na roça a manhã inteira, eu vou precisar esfriar o meu corpo como medida terapêutica para equilibrar a quantidade de calor no meu corpo. Então eu vou por exemplo tomar um banho de rio. É interessante notar que esse banho de rio não é para tirar mau cheiro, traçando aqui um paralelo com o nosso banho, na nossa cultura ocidental no Brasil. Lá é mais para regular a temperatura corporal.

Por outro lado, o frio, ele é perigoso. O causador de frio para os Avá-Canoeiro é o Tigamana, que é o espírito avô, o Jacaré. Esse Jacaré é uma entidade que entra no teu corpo como frio. A sensação, o sintoma dessa entidade é o frio. E é um frio que se instala, é um frio que não sai. Ele causa, além do frio, perda de movimento e paralisia. É diferente por exemplo de uma dor muscular, que tem um sintoma de calor. E aí a gente trata com o frio. É diferente de uma luxação, né, que quando a gente bate fica inchado. Isso também é, também tem sintoma de calor, e a gente trata com frio.

Agora, o frio que pode vir do Tigamana, ele depende de uma terapia de calor com defumação, com brasa, com cachimbação e, no caso do tratamento de câncer, com formas alternativas de expulsar o Tigamana, que era a grande expectativa dos Avá-Canoeiro em relação ao tratamento dos Maila. “Bom os Maila tem um hospital grande, um hospital forte. Eles vão conseguir expulsar o Tigamana do Tutawa.” Não foi o que aconteceu, mas várias foram as coisas que foram possíveis. Por exemplo, uma das terapias que ele fez era uma terapia de calor, que é uma radioterapia. A radioterapia nada mais é do que uma exposição localizada a um tipo de feixe de raios que vai esquentar de certa forma internamente essa região, propiciando então que células de câncer não cresçam e diminuam de tamanho. O que ele ia sentir como sintoma é queimação, por exemplo. Esse feixe, esse rádio da radioterapia precisou passar na região da garganta. Então, ele conseguia sentir a garganta arranhada como se tivesse queimado. Para ele então, ele confiava que essa era uma terapia coesa com o sistema dele, uma vez que para ele é o Tigamana que está causando tudo aquilo que ele está sentindo. Câncer não faz sentido, e não teria como fazer sentido porque vem de um outro sistema de concepção de saúde e doença.

Quando a gente fala de câncer, a própria nossa ciência não sabe muito bem o que é câncer. A gente diz que seriam mais de 100 tipos de coisas diferentes, derivadas muito provavelmente da reprodução das células que, ao longo de um tempo, elas vão se reproduzir com algum tipo de defeito no DNA e células que conseguem de certa forma ter um autonomia dentro do nosso organismo e crescem e se desenvolvem e se espalham para os outros órgãos, tendo então o que a gente chama, desse câncer que se espalhou, um câncer maligno.

Tutawa, ele chegou a ter um câncer em estágio mais elevado. Não resistiu, mas a minha função lá o tempo todo era tentar fazer essa tradução do sistema de saúde e doença dele para o sistema de saúde e doença biomédico do hospital. Isso foi necessário porque o aprendizado da diferença de concepção não teria como ser feito em tempo hábil. Ele já estava extremamente debilitado por conta da doença que ele teve e o que ele precisava naquele momento era exatamente conforto, ter um pouco da cultura e da língua dele naquele ambiente extremamente estranho e estrangeiro, cheio de Mailas, que já causam todo esse desconforto porque lembram do massacre que aconteceu.

Junto com isso e essa concepção de saúde doença relacionada ao frio e ao calor nesses pontos que eu trouxe, eu queria pontuar alguns outros elementos que são muito interessantes e se relacionam a isso para os Avá-Canoeiro. Se o frio, esse sintoma, vem da sintomatologia do Tigamana dentro do corpo, quando Tutawa estava por exemplo em uma enfermaria à espera de vaga para ir para um quarto, ele estava ali à espera, essa enfermaria com mais de 10 pessoas é um lugar com ar-condicionado muito forte. Então qual era a consequência disso para ele? Fazer com que ele sentisse que ele ia morrer a qualquer momento. Aquele frio forte do ar-condicionado para ele não vinha de ar-condicionado, vinha do Tigamana. Era o Tigamana que estava ficando mais forte dentro dele e consequentemente ele iria morrer.

Esse foi um argumento cultural que eu precisei trazer para o pessoal da secretaria do hospital e fazer com que a gente conseguisse, em menos de um período, transferir imediatamente para o quarto na frente de todas as pessoas que estavam ali à espera. Um dado importante em relação a isso é que o SUS, ele atende os indígenas com o princípio da equidade, de levar em consideração que eles são povos minorizados e com grau de vulnerabilidade diferente importante em relação à população regular do Brasil, vamos dizer assim.

Outro detalhe extremamente importante, o conceito de quente e frio também se aplica ao que a gente consome. Tem coisas que a gente vai esquentar para consumir, e isso é um princípio de cura; e outras que a gente vai consumir fria, e isso é um princípio de cura. Por exemplo, a água, eles têm contato com água de rio durante a vida inteira. Ela é uma água corrente e é uma água mais fresca.

Tutawa, quando eu estava no hospital, por vários momentos, quando eu não estava lá, eu, quando eu voltava, recebia relatos de que ele não estaria bebendo água. Eu ficava super preocupado. Ele toma vários medicamentos. Se ele não conseguir se hidratar, isso vai afetar rim, vai afetar fígado, vai afetar intestino, vai afetar estômago… São coisas extremamente complexas que a gente não pode deixar escalar. E eu percebia que eram águas que ficavam, águas que ficavam à temperatura ambiente, que, pensando em um hospital, nos quartos não é a temperatura mais fresca. É uma temperatura meio morna. Então é uma água que ele não consumia porque é uma água que não é boa. É uma água que tá ruim, que não vai causar coisas boas para ele. Então o que eu fazia era procurar uma água gelada, que fosse uma água de bebedouro que eu conseguia encontrar ali perto, ou então junto com as refeições, ao conversar com a nutricionista, eu pedia para que entregassem uma água para ele gelada, com gelo, e que isso tivesse uma longa duração no período que ele estivesse lá.

Esse tipo de atenção ao conceito de saúde doença, no contexto hospitalar, foi extremamente importante exatamente para que ele consiga ter um mínimo de conforto para tratar a doença que ele está tendo ali, seja a doença que os médicos dizem que ele tem, seja a doença que ele considera que ele tem. Então esses pontos são muito muito importantes.

Eu pulo agora então para a gente pensar um contexto de povos amazônicos no contexto da Covid. A gente sabe que a Covid-19 é uma doença que causa sintomas como febre, como perda de paladar, pode causar diarreia. Isso pensando aqui o quadro clássico inicial lá dos inícios do ano de 2020. E um dos sintomas a febre é o frio. Tanto que a palavra para “frio”, em Avá-Canoeiro, é a mesma palavra para “tenho febre”. O sintoma ai é reconhecido.


Ariel, Niwatima, Marɨ̃no, Pãtxio, Sebastião, Trumak e Iawi. Foto: Egipson Correia

Eu tive a oportunidade de trabalhar para a Coordenação dos Povos Indígenas na Amazônia Brasileira, a COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), no início de 2021. E foi uma experiência muito interessante porque foi exatamente no apoio e no suporte à tradução de materiais sobre Covid-19, medidas de prevenção e medidas de remediação da Covid-19, sobre saúde mental no contexto do isolamento propiciado pela pandemia e também sobre violência doméstica na pandemia. Foi uma experiência muito importante para conseguir direcionar, de certa forma, a tradução desses materiais de uma forma sensível tanto às questões linguísticas e diferenças linguísticas que cada língua indígena vai ter em relação ao português quando a gente pensa na expressão desses conceitos relacionados a saúde e doença, mas também na parte cultural dos próprios conceitos de saúde e doença.

A minha função ali não era fazer a tradução, mas era supervisionar a tradução que indígenas iam fazer para as suas próprias línguas, pensando ali a veiculação em suas próprias comunidades. Foi um trabalho muito bacana e com vários desafios. Os principais desafios foram tentar traduzir e pensar a versão desses materiais que consiga de certa forma transmitir informações do que é, do que são os produtos que a gente usa em limpeza. O próprio conceito de higiene, higienização, é um conceito que ele não é universal. O conceito de sujo e sujeira também não é universal. A importância de se lavar a mão. Porque é que se lava a mão? O próprio conceito de micróbio é algo que só vai se tornar possível e empírico na nossa ciência com o advento do microscópio. É algo que tem pelo menos 250 anos, não muito mais do que isso. Então a gente conseguir identificar essas doenças e as suas causas para a gente também é algo muito recente.

Então para eles foi de tentar trazer a forma que eles já trabalham no tratamento da Covid-19 — todos eles trabalham com algum tipo, por exemplo, de banhos, de chás, de processos que os pajés fazem nas casas ou com as pessoas — e ao mesmo tempo, em paralelo, de comentar a importância do isolamento, do uso de máscaras, de não ir para as cidades — de preferência não ir para a cidade, se for uma pessoa vai, não muitas mais –, de observar todos os sintomas possíveis de Covid — se uma pessoa tiver, propiciar um isolamento dela que seja importante e necessário para que isso não se espalhe.

Uma medida extremamente importante para os povos indígenas foi a difusão da informação. A gente sabe que esses cantos mais distantes do Brasil, pensando principalmente aldeias indígenas na Amazônia Brasileira, são ambientes com muita distância de chegada dessas informações. Então os indígenas veiculando informações para as suas próprias comunidades foi algo inédito, algo fundamental. Os indígenas sendo comunicadores dessas informações para suas comunidades.

Foi um trabalho muito bacana. Demorou ali mais ou menos 2 meses e meio. E eu pude ajudar a pensar junto com eles como que a gente conceitualizaria esses instrumentos, essas ferramentas, esses materiais que estão distantes. Como que a gente explica o que é uma máscara, como que a gente explica o que é o, o que são, por exemplo, um álcool, um álcool em gel. Tem comunidades que já usam o termo álcool para se referir à bebida alcoólica. Então, se a gente usa por exemplo o mesmo termo, eles podem querer beber o álcool 70, que não pode. Vai causar mal pra pessoa. Então todas essas nuances são extremamente importantes e foram levadas em consideração.

Eu queria então finalizar essa fala reiterando a importância do atendimento diferenciado e específico às comunidades indígenas. Diferenciado no que se refere ao atendimento padronizado irregular que a gente observa para as pessoas brasileiras em geral, diferenciado então para indígenas, e específico para cada etnia. No Brasil a gente tem mais de 300 etnias, e é fundamental que a gente consiga compreender e conceber essas diferenças como válidas em paralelo a como que o nosso sistema de saúde funciona e que isso seja levado em consideração para os tratamentos que eles vão ter. Isso está previsto na Constituição, mas a carta da lei não é garantia que isso vai ser executado. É importante que a gente tenha pessoas, indígenas e não-indígenas, que conheçam essas diferenças culturais relacionadas a saúde e doença, essas questões linguísticas na expressão da saúde e doença, para que a gente tenha uma interlocução mínima fundamental na garantia dos direitos deles à vida. A gente está falando aqui do direito à vida, principalmente pensando em uma pandemia em que a maioria dos mais velhos não resistiram à primeira onda da Covid . Porque a gente teve 3 meses no Brasil para repensar um planejamento, pensar um planejamento estratégico no tratamento à Covid, o que foi negligenciado. O preço disso para os povos indígenas foi extremamente alto porque o receptáculo da cultura e da língua nas versões mais conservadoras são os mais velhos, são as lideranças. E essas são as pessoas que partiram quando a gente teve a pandemia chegando aqui no Brasil.

Então eu queria trazer esses pontos, queria agradecer a oportunidade e me disponho a esclarecer ou comentar em quaisquer níveis os aspectos que eu trouxe. O meu muito obrigado, e até a próxima.

Ariel Pheula
Doutor em linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília (PPGL/LIP/IL/UnB), tendo participado do Programa de Doutorado Sanduíche (PDSE/CAPES), em 2017, na University of Michigan, sob a supervisão da professora Sarah G. Thomason. Realizou pesquisa sobre a língua Avá-Canoeiro, da família Tupi-Guarani praticada em regiões de Goiás e do Tocantins, por meio do projeto de doutorado intitulado: “Contribuições para o Conhecimento da História da Língua e da Cultura Avá-Canoeiro”.

Bibliografia

Garcia, Uirá. 2015. «SOBRE O PODER DA CRIAÇÃO: PARENTESCO E OUTRAS RELAÇÕES AWÁ-GUAJÁ». Mana 21 (Abril):91–122. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p091.


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