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Por que devemos combater a censura a livros
Henrique Rodrigues

Fahrenheit 451, Editora 11×17

Há pouco tempo, a simples ideia de proibir livros era tomada como algo absurdo, criminoso, associado à Inquisição ou ao nazismo. Quando muito, na nossa memória recente associava-se ao período da ditadura, prática morta e enterrada nos porões da história. Dificilmente, pelo que me lembro, o senso comum aceitava que uma obra de poesia ou ficção pudesse fazer mal a qualquer indivíduo. Imediatamente evocávamos o alerta da própria literatura pelo Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, porque proibir livro, ora bolas, só podia ser coisa de distopia.

Circulou nas redes um vídeo em que Janaina Venzon, diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, de Santa Cruz do Sul, desqualifica o livro O avesso da pele, argumentando que a obra enviada pelo PNLD tem vocabulário de “baixo nível” e que seria um absurdo o MEC adquiri-la para a sua unidade de ensino. A diretora parece desconhecer que os livros do PNLD são selecionados pelas próprias escolas, a fim de se adequarem aos seus projetos pedagógicos. Em outro, uma prefeita de Canoinhas/SC aparecia jogando exemplares numa lixeira, associando-os, falsamente, a políticas do governo federal. Descobriu-se que se tratava de um projeto privado de doação de livros.

Para qualquer pessoa alfabetizada em literatura, destacar um trecho de uma obra, retirando-o do contexto, é mais que preguiça, é cegueira e má fé. Trata-se de uma prática de imensa ignorância. No caso de uma educadora, ainda mais a que chefia uma escola e que conta com a hierarquia a seu favor, é algo de profunda irresponsabilidade com a sua função.

O avesso da pele, Editora Companhia das Letras

A diretora Janaina e a prefeita, com tais atitudes reacionária e pseudomoralista, não sofrerão qualquer punição ao tentar privar o acesso a um bem cultural de qualidade. Qual o preço da não-leitura na trajetória de centenas de jovens, cujas existências deixarão de ser contempladas pelas questões levantadas no romance O avesso da pele? O livro, belamente narrado em segunda pessoa, faz com que as reflexões sobre racismo estrutural, educação, relações familiares e afetos sejam ditas diretamente aos leitores. Como mensurar esse silêncio ?

Seria a solução um projeto para tipificar como crime a censura à literatura e às artes em geral? Pode parecer um exagero, e talvez seja, mas me parece que essa não será a última vez em que vamos ver esse tipo de arbitrariedade na nossa produção literária. Enquanto não houver alguma punição, pessoas como a diretora Janaina, do alto do seu micropoder, se sentirão sempre à vontade para impor sua visão mesquinha de mundo. Com nossos índices de leitura tão ruins, especialmente para a nossa literatura brasileira contemporânea, dificultar o acesso a livros, para mim, é um delito inafiançável.

Assim como os bombeiros de Fahrenheit 451 incendeiam livros para manter a suposta ordem da sociedade, quando uma escola promove a censura de uma obra literária está nos inserindo cada vez mais numa realidade de trevas que, conforme a história nos ensinou, deveria ser evitado a todo custo.

Há uns bons anos, quando estudei Letras, havia uma nova disciplina chamada Leitor em Formação. O conteúdo era, basicamente, entender não só a função do texto, mas a dos leitores, de modo a se abrirem possibilidades de entendimento básico sobre poemas, contos, crônicas e outras categorias. Foi a primeira vez que entendi o conceito de mediação de leitura, que hoje se faz cada vez mais necessária diante dos sérios problemas que vimos enfrentando na área.

Feliz ano novo, Editora Saraiva

Em 1975, quando nasci, foi lançado o livro de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. O livro foi censurado em 1976. Segundo o ministro da Justiça, Armando Falcão, a obra atentava contra “a moral e os bons costumes”. Terminado o regime militar, o termo passou a ser usado de forma irônica, atrelado a algo antigo e ultrapassado. Mal sabíamos que, em plena democracia, a proibição de diferentes literaturas iria voltar, com força e de todos os lados.

Há umas semanas, me reuni com os escritores Airton Souza e Jeferson Tenório na Ria Livraria, em São Paulo, onde debatemos o assunto. Como tem sido bastante divulgado, ambos tiveram obras atacadas recentemente pelo seu conteúdo, com argumentações de que a obra é inadequada para jovens. No caso do romance O avesso da pele, que a meu ver deveria ser leitura básica no Ensino Médio junto com Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, trechos foram retirados do seu contexto, como falas de personagens. Sobre o ótimo Outono de carne estranha, de Airton Souza, que venceu outros 750 romances inscritos no Prêmio Sesc de Literatura, a leitura de um trecho incomodou as altas chefias da instituição na Flip de 2023. Uma vez que estive envolvido nesse caso, sendo demitido porque me recusei a ter censurado o escritor, não vou entrar em detalhes, alguns dos quais também foram bem cobertos pela mídia. Resumo da ópera: tentaram boicotar o autor podando o seu circuito, a Record desistiu da parceria e, na “nova” versão, os livros vencedores sairão por uma editora que nem literatura publica, acabando com o conceito do projeto e a credibilidade conquistada em duas décadas.

Quarto de despejo, Editora Ática

Mas o interessante é que, em ambos os casos, tem-se a mesma desculpa da proteção das criancinhas, assim como o prefeito Marcelo Crivella tentou censurar uma história em quadrinhos na Bienal do Livro do Rio de 2019. Nenhum censor quer parecer censor, e sim um protetor da família.

A censura a livros é, hoje, um dos grandes problemas culturais no Brasil e no mundo. Não estamos tratando de casos isolados, apenas os que acabam saindo na imprensa, que já são frequentes. Dada a natureza da fruição da leitura, que é diferente de um espetáculo de música ou de teatro, a proibição a livros vem ocorrendo de forma silenciosa em escolas, instituições culturais e até dentro das casas, sem que tenhamos uma dimensão real do seu volume. Por exemplo, a distribuição de O avesso da pele pelo PNLD, não garante que, de fato, a obra será lida com a devida mediação nas centenas de escolas que receberam o livro. O que mais tenho visto nos últimos anos são pilhas de livros “encostadas” porque alguém não gostou da obra. Uma vez que a compra foi feita e paga, parece não haver problema algum.

Precisamos entender esse movimento na sua complexidade, a fim de estabelecermos estratégias de combate efetivo. A censura é a filha da ignorância com a hierarquia, de maneira que, se não pudemos resolver o segundo item, vamos ao primeiro.

Outono de carne estranha, Editora Record

É certo que faltou, tanto à diretora da escola e aos políticos que proibiram o livro de Tenório, quanto aos dirigentes do Sesc que tentaram boicotar o de Airton, um entendimento sobre o que seja literatura contemporânea e como ela se manifesta hoje. Precisamos aceitar que uma literatura densa e mais questionadora já não faz parte do cotidiano de pessoas de fora da bolha, e que, por isso, podem encarar com todo tipo de preconceito essa manifestação artística. Bons livros são escritos com pesquisa, técnica, intuição e, sobretudo, a necessidade de comunicar algo sobre o nosso mundo por meio de manifestações simbólicas da palavra. Isso parece óbvio para nós, mas me parece que circulam muitas ideias distorcidas sobre o que é literatura.

Para essa compreensão, e pensando em termos de escala, uma saída seria a criação de um amplo programa de mediação literária atrelado às compras de livros para as redes escolares. Ainda que a escolha das obras seja feita pelas unidades de ensino, os materiais enviados (vídeos, resumos etc.) não parecem ser suficientes para uma boa preparação da leitura. Os professores, que são os grandes mediadores no processo, precisam passar, eles mesmos, por atividades de mediação, realizadas por círculos ou oficinas de leitura das obras que serão trabalhadas.

O investimento em mediadores culturais, já comprovados como elementos-chave na ampliação do processo de leitura, é a etapa que falta no bem-sucedido modelo de distribuição de livros no Brasil.

Sobrevivendo no inferno, Gravadora Cosa Nostra

Além dessa metodologia de base que, se feita em escala, pode melhorar muito os nossos parcos níveis de leitura, funcionando como um feijão com arroz formativo, outra ponta a ser pensada são os grandes eventos literários que contam com verba pública, especialmente via leis de renúncia fiscal. Tenho participado como autor (e ajudado na elaboração) de diversos festivais nos últimos anos. Uma das grandes frustrações dos escritores participantes das programações é ver centenas de crianças com vale-livros trocando-os por best-sellers internacionais ou livrinhos chineses mixurucas. Não raro, seus livros sequer estão em algum estande. E parece estar tudo bem.

Os melhores eventos literários que tenho visto são aqueles em que as obras dos autores participantes são lidas previamente, seja na comunidade escolar ou em clubes de leitura locais. Com organização e curadoria competentes, é possível fazer a aquisição de livros, sua distribuição e as respectivas atividades de mediação cultural, de modo que a festa literária funcione como culminância – e, realmente, uma celebração da leitura.

Há uma série de metodologias que funcionam e podem ser implementadas em cada comunidade leitora. Talvez precisemos escapar das armadilhas fáceis e transformar a indignação em ações práticas. Não basta sermos contra a censura nas redes sociais se, no mundo real, apenas nos contentamos. Há pouco nos lembramos dos 60 anos do Golpe Militar no Brasil, que instituiu o cerceamento de livros, e só por meio da educação para a leitura vamos devolver essa prática aos porões da história, onde deve permanecer.

Henrique Rodrigues
Nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro/RJ, em 1975. É doutor em Letras pela Puc-Rio e curador de programações literárias. Foi um dos idealizadores do Prêmio Sesc de Literatura, do circuito nacional Arte da Palavra e outros projetos. Publicou 24 livros, entre poesia, crônica, romance, literatura infantil e juvenil, tendo sido finalista do Prêmio Jabuti duas vezes. Seu romance “O próximo da fila” (Record) foi adotado em escolas de todo o país e publicado na França. É colunista do portal PublishNews, em que escreve sobre a atividade literária. www.henriquerodrigues.net