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O corpo, nenhuma identidade. Entrevista com Marina AbramovicMarina Abramovic

Marina Abramovic é uma guerreira. Nascida em Belgrado, em 1946, ela viveu bastante tempo na Holanda e na Alemanha e hoje vive em Nova Iorque. Visita com frequência a Itália e vai sempre quando pode ao Oriente ou a lugares onde se coloca em contato com a natureza selvagem dos vulcões, das cascatas e das florestas.
Ela conhece bem o mundo e o revela através de seu próprio corpo, além de explorar os limites da resistência física e as diferentes faces do medo. Para ela, a performance é a arte do inefável. Não há distanciamento do público e nenhuma possibilidade de inverdade ou de repetição: ela acontece no presente, opera em um momento preciso e nunca se repete. Com o tempo, ela extrapolou os limites do corpo e passou a desafiar os limites do espírito, explorando o silêncio, a imobilidade e a escuta.

Gioia Costa – O que os Balcãs representam para você?

Marina Abramovic – Uma ponte: o Leste representa o tempo da lentidão enquanto o Oeste representa a velocidade. A região dos Balcãs é a ponte que os une. Um lugar onde o vento é abundante. O vento é tão forte que é difícil ficar imóvel e é por essa razão que estamos constantemente à mercê das mais diversas emoções.

Um homem, que foi caçador de ratos por 35 anos, contou-me a história do “rato-lobo”[mfn]Wolf rat – personagem parte da trilha sonora da instalação Balkan Baroque.[/mfn]: era a história de como o extermínio dos ratos nos Balcãs deu origem a um monstro. Os ratos são animais altamente inteligentes com um forte senso de solidariedade. Se isolarmos um grupo de 30 a 40 ratos da mesma família e não lhes dermos nada além de água, seus dentes incisivos crescem excessivamente até sufocá-los. Famintos e em perigo, eles matam os mais fracos para comer, algo que nunca fariam na natureza. Eles continuarão a matar uns aos outros, até que reste apenas um. Esse último rato precisará, por sua vez, se alimentar rapidamente ou também será sufocado por seus próprios incisivos. Só então, quando ele está assustado e faminto, o caçador o cega e liberta. Em pânico, o sobrevivente sente que a morte está próxima e corre para sua toca, matando todos os outros ratos, até que um rato mais forte o mate. Assim foi criado o rato-lobo dos Balcãs. Para mim, essa é uma alegoria perfeita da guerra dos Balcãs e de toda aquela tragédia. Eu nunca entendi realmente como foi possível que matassem uns aos outros depois de viverem juntos por quarenta anos. A não ser pelo fato de estarem submetidos a uma pressão externa, assim como os ratos. O povo dos Balcãs é um povo apaixonado, com amor e ódio em igual medida. Eles vivem desse vento e, nesse sentido, é quase ilógico tentar explicar sua história.

Quando criei Balkan Baroque[mfn]Todos os títulos permanecerão na língua original.[/mfn], em 1997, estava pensando no que havia de barroco no espírito do povo dos Balcãs, na maneira como os extremos que o habitam exercem influências ilógicas sob o amor e o ódio sempre fusionais. Ganhei um Leão de Ouro e perdi minhas ilusões. Desde então, eu desacelerei um pouco e peço àqueles próximos a mim que desacelerem também… Nossa atenção dura em média doze segundos. Nós corremos, inconscientes. A arte deve então desacelerar, nos desacelerar. Eu entendo hoje como o tempo é essencial, quando falamos de performance. Quanto mais tempo ela durar melhor, pois é preciso tempo para produzir a energia de que tanto o artista quanto o público precisam para de fato criar uma transformação. Seis horas é uma boa duração.

G.C. – Qual é a relação entre memória e identidade?

M.A. – A memória é um assunto complicado: podemos nos lembrar de coisas de muito tempo atrás e esquecer coisas que não queremos levar conosco. A memória pode ser apagada, corrigida e redesenhada. É o que faço com a minha: misturo a infância e o mundo em que nasci em meu trabalho. Portanto, não tenho lembrança do que era, da chamada verdade, mas do que eu quero que seja. No espetáculo com Bob Wilson, Death and life of Marina Abramovic, toda a minha vida de sessenta e dois anos é resumida em uma frase por ano. Por exemplo, 1946: nascimento, mãe e pai partisans[mfn]Iugoslavos de diversas nacionalidades e de orientação comunista que lutavam contra o nazismo e contra o fascismo Ustaše. Os partisans eram liderados por Josip Broz Tito.[/mfn]. 1948: Eu me recuso a andar. 1951: vejo meu pai dormir com uma pistola. 1952: mãe compra máquina de lavar. 1959: pais se divorciam. 1961: primeira menstruação. Começo a pintar meus sonhos. \[…] 1995: Cleaning the Mirror. 1996: Cleaning the House. Isso é redesenhar a memória.

Eu não tenho identidade: não me sinto iugoslava. Meus pais são de Montenegro, comunistas e partisans. Eles me criaram como um soldado: sem carinho e com disciplina rígida. Adoro as paisagens de Montenegro e essa mistura inseparável de vitalidade e heroísmo que as pessoas têm lá. Mas isso é tudo. Tenho passaporte alemão, morei por mais de quarenta anos nos Estados Unidos e por dezesseis anos na Alemanha, venho à Itália desde o início dos anos setenta, mas não sinto que pertenço a lugar algum. Ou melhor: não acredito na identidade, porque para mim nossa nação é o planeta, esse é o lugar em que realmente vivemos e estou interessada em ver tudo através de uma perspectiva global. Adoro viajar, conhecer culturas diferentes e aprendo muito, porque adoro estar atenta. Cada nova descoberta integra e alimenta meu trabalho.

Nessa perspectiva, a identidade é um empecilho, uma barreira que nos impede de ver a vasta paisagem. Eu me interesso pelo sol, pela lua, pelos outros planetas, pela Via Láctea. Logo, eu diria que odeio a própria ideia de identidade, porque toda categoria é um limite. Falar sobre um artista chinês ou italiano significa não falar sobre sua arte, isso é falatório, é outra coisa. Espero ter perdido minha identidade há muito tempo.

G.C. – Você conhece o exílio?

M.A. – O artista é o ser humano mais livre que existe, pois pode realizar um milagre, pode criar a mais bela obra a partir do nada, apenas a ideia realmente importa. Eu acredito na liberdade, portanto, não posso viver de forma mental ou sentimental como uma exilada, nenhum artista pode. Por outro lado, um refugiado político, que tem um relacionamento com seu país, mas não pode viver nele, sofre um desenraizamento, ele abandona seus entes queridos, sua vida e seu trabalho, ele perde tudo e sente uma tristeza profunda. Mas esse é um caso específico. Quando decidimos ir embora, é diferente: não perdi minha terra, mas parti em direção a lugares diferentes. Será que estou em constante conflito, mesmo dentro das paredes de meu estúdio/escritório? Eu nem gosto de casas, prefiro quartos de hotel, porque lá temos a liberdade de trabalhar e pensar para além das coisas. O mundo todo é minha referência e não posso fechar as portas. O exílio é uma categoria que nos exclui do resto do mundo. Eu, pelo contrário, quero ser incluída. Saí de meu país de origem para conhecer o mundo e nunca mais parei. Fui a lugares onde as pessoas não compreendiam meu trabalho, em Papua Nova Guiné, por exemplo, entre os canibais, ou em certas regiões do Tibete ou da Índia. Mas será que é realmente importante entendermos uns aos outros? É importante termos uma ideia real e ela basta.

G.C. – O que você pensa sobre as mulheres hoje?

M.A. – Elas são tão fortes, tão mais fortes! Não sou feminista porque, mais uma vez, é uma categoria que isola, exclui e cria um gueto. Mas as mulheres… o simples fato de poderem dar à luz é um milagre e elas são muito mais fortes do que qualquer homem. Em Montenegro, conta-se a história de um homem que vai para a guerra, deixando para trás sua esposa e muitos filhos. Ele acaba morrendo e ela passa a usar as roupas e as armas do marido para defender a família. Seu corpo muda, ela deixa de menstruar e passa a ter bigodes. Ela se torna um homem. Ela muda biologicamente para defender seus filhos. É uma história impressionante: ela nos diz que as mulheres não têm limites, que são as criaturas mais poderosas que existem. Mas as mulheres sempre brincaram com a noção de fragilidade, caso contrário, os homens não ficariam conosco; nós criamos a ilusão de que precisamos deles.

A Itália é única nesse aspecto: todas as mulheres parecem abandonadas, infelizes e frágeis. Mas a Itália é um país muito particular: identidade, identidade, identidade! Em todos os lugares, parece ser diferente, mas em seu país, as mulheres ocupam uma posição ínfima. Quando vim pela primeira vez, em 1992, fiquei muito surpresa: não havia mulheres artistas, apenas homens. Em todo caso, as poucas que conheci eram pouco reconhecidas. Lembro-me de pessoas falando de Mario Merz, mas Marisa Merz também é uma grande artista. No entanto, ela está sempre em segundo plano em relação a ele – é um escândalo. Isso também acontecia entre escritores, pintores e poetas. Além do que, ligar a televisão na Itália hoje é sempre um choque: todas as mulheres na tela parecem, como posso dizer? Atrizes pornôs. Mas por que vocês aceitam isso, ou melhor, por que vocês permitem isso? Fazendo isso, vocês são cúmplices.

G.C. – Você assumiu riscos em suas ações. O que o vazio e a morte significam para você?

M.A. – A morte está presente desde o nosso primeiro grito: se você nascer, você vai morrer. É um limite, um limite extremo. Os sufis dizem que “a vida é um sonho e a morte é o despertar”. De fato, quando temos menos medo, descobrimos que os limites podem ser desafiados e que podemos ir um pouco mais longe a cada dia. Acabei de passar dois meses no Brasil[mfn]Marina Abramovic esteve no Brasil entre 2012 e 2015, período em que filmou o documentário intitulado “Espaço Além”.[/mfn] e conheci alguns xamãs que incorporam espíritos ou “entidades”, como eles os chamam, que nos guiam e curam. A morte física existe, mas a energia não morre, essa é minha última descoberta.

O medo da dor pode ser superado, pois a mente é capaz de controlar tudo. E foi isso que fiz desde o início, mesmo sem me dar conta. Anos atrás, eu não teria sido capaz de fazer The Artist is Present: quando somos jovens, não temos muita confiança em nós mesmos. Achamos que precisamos de muitas coisas, mas elas nunca são suficientes. Agora sei que quanto mais me concentro na energia pura, que é invisível mas pode ser sentida, mais posso prescindir de tudo. Menos é mais. É por isso que meu palco se compõe sempre de menos e é sempre mais simples, isso tem mais efeito, mais potência, mais impacto. Pode parecer contraditório, mas é um fato. O silêncio em si é uma das faces do vazio: as palavras não têm utilidade alguma. Explicar é um desperdício de energia.

Na Idade Média, dizia-se que um mestre zen tinha três maneiras de ensinar seus discípulos. A primeira e mais comum consistia em explicar seu conhecimento através das palavras; a segunda, em demonstrá-lo por meio de sinais e gestos; a terceira, em sentar-se diante deles em silêncio. Nenhuma palavra, nenhum gesto. A pura presença. Nem passado, nem futuro, apenas o aqui e agora, é isso que estou tentando comunicar ao meu público hoje.

Atualmente, estou trabalhando em um grande projeto: o Marina Abramovic Institute of Performing Arts, em Hudson Upstate, que será inaugurado em 2014. Para torná-lo realidade, precisamos de quinze milhões de dólares, que eu mesma estou levantando. Ele será dedicado não apenas à performance, mas a todas as artes – música, teatro e dança. Acima de tudo, será gratuito: ao entrar, os visitantes assinarão um contrato comigo, com base em sua palavra de honra: eles me darão seu tempo e eu lhes darei minha experiência. Eles terão que entregar iPods, relógios, telefones celulares e câmeras, vestirão jalecos de laboratório e farão parte da apresentação. Haverá comida disponível e a experiência terá duração de seis horas. Descobri que quanto maior a duração de uma apresentação, maior sua capacidade de transformação, mas também descobri outra coisa: no momento presente, o tempo não existe e, como a arte performática se baseia no tempo, ele é essencial. Então, se transformarmos tudo o que fazemos em uma questão de vida ou morte e estivermos cem por cento envolvidos em nosso trabalho, as coisas realmente acontecem. Qualquer coisa abaixo de cem por cento não resulta em boa arte. É muito difícil, mas é a única maneira. Isso também significa que não é possível haver concessões.

G.C. – O artista tem um dever?

M.A. – Como eu estava dizendo, o artista é o ser mais livre que existe, portanto, ele tem uma grande responsabilidade. Nunca antes o artista desempenhou um papel tão importante. A lenda acabou, os templos se tornaram museus e o artista tem o dever fundamental de se comunicar com sua intuição e guiar o espírito humano no caminho para o despertar da consciência. Hoje, o verdadeiro desafio é conseguir mudar a consciência das pessoas.

O Abramovic Institute of Performing Arts é um ato de responsabilidade pessoal: estou tentando mudar algo no pensamento das pessoas, se eu conseguir isso com uma, duas ou três, já é muito. Toda grande caminhada começa com um pequeno passo.

De qualquer forma, há uma mágica nas artes e, em determinado sentido, todas elas são iguais: quando tomamos consciência, começamos a nos retirar, a simplificar, a nos calar. Na escrita, no palco, na performance. Esse é um segredo essencial que é sempre válido. Com a verdadeira clareza, surgem o silêncio, a quietude e o vazio. Todas as artes se encontram em seu próprio vazio. Há uma força invisível que se mostra de forma clara quando há energia. E então acontece o milagre da arte – o milagre que muda o mundo.

Traduzido do francês por Clara Cerqueira

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