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O Brasil como destino
Elizabete Sanches Rocha, Giovanna Leme de Castro e Letícia Laurenti Olivi

“Moeda sem fundo”, de Avigail Reinosa, artista plástico venezuelano radicado em Boa Vista

Introdução

Marcada pela impossibilidade de se permanecer no território de origem e podendo se situar em escala nacional, transnacional ou internacional, a migração perpassa toda a história brasileira. Sua formação remonta a movimentos migratórios de portugueses no período colonial e chega até os dias atuais com o registro de 1.781.924 migrantes internacionais no Brasil, entre os anos de 2002 a 2022, segundo dados do banco interativo Observatório das Migrações em São Paulo, UNICAMP e Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO)1OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES EM SÃO PAULO. Imigrantes Internacionais Registrados no Brasil (com Registro Nacional – RNM). Unicamp NEPO. Disponível em: <https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/sincre-sismigra/>. Acesso em: 20 set. 2023..

Em termos de marcos legais, tivemos o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815, de 1980, que se inspirou na doutrina nacional de segurança do contexto da ditadura civil-militar brasileira, privilegiando questões securitárias e interesses nacionais, assim como a proteção da ordem econômica. A lei, portanto, definiu a situação jurídica do estrangeiro no Brasil e criou o Conselho Nacional de Imigração. Posteriormente, foi instituído o Estatuto dos Refugiados, Lei 9.474, de 1997, oriundo da Convenção de Genebra, de 1951. Além de definir a condição de refugiado perante a lei, o Estatuto criou o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão multiministerial que trabalha no âmbito do Ministério da Justiça.

Atualmente, a principal norma que aborda a questão da migração no Brasil é a Lei das Migrações, Lei 13.445, de 2017. Deve-se destacar que o seu eixo central é a proteção de direitos humanos na temática das migrações, tanto para os migrantes que moram no Brasil, como para os brasileiros que vivem no exterior. Assim, se reconhecem a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos como princípios que regem a política migratória brasileira. Trata-se de um avanço importante do marco legal brasileiro acerca do tema.

Trazendo essa realidade em números, dos 1.781.924 migrantes internacionais registrados no Brasil, segundo a tabulação do Observatório das Migrações em São Paulo, só no estado de São Paulo esse número corresponde a 595.369 registros, a maioria provenientes da Venezuela (325.637), Haiti (169.489), Bolívia (140.544), Estados Unidos (86.418), Colômbia (81.036), Argentina (79.744), China (66.380), Uruguai (50.512), Peru (49.412) e Paraguai (48.501)2OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES EM SÃO PAULO. Imigrantes Internacionais Registrados no Brasil (com Registro Nacional – RNM). Unicamp NEPO. Disponível em: <https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/sincre-sismigra/>. Acesso em: 20 set. 2023.

Apesar de o Brasil ser reconhecido internacionalmente por seu suposto pacifismo, fruto, entre outros motivos, de uma diplomacia competente e qualificada, esse mito de país acolhedor não se confirma, muitas vezes, na prática, por razões que vão desde o preconceito (a ignorância mesma em relação à diferença) até casos de xenofobia. Para dirimir tais impactos tanto para a população receptora, mas principalmente para a população migrante, um dos mais importantes meios de se romper com ciclos de discriminação surge de ações interculturais. Neste artigo, abordaremos o caso mais recente da chegada de grupos de pessoas venezuelanas pela fronteira de Roraima, extremo Norte do Brasil, e o processo de interiorização promovido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

Um pouco de contexto histórico

Para compreender a chamada Crise da Venezuela e o boom de emigrações que ocorreu, principalmente a partir de 2015, deve-se conhecer o contexto anterior à crise. Inicialmente, é preciso salientar que, ao longo dos 14 anos de governo de Hugo Chávez, a economia venezuelana girava quase que totalmente em torno da exportação de petróleo, pois o país possuía/possui grandes poços cuja exploração era relativamente barata e com ganhos robustos. No entanto, isso começou a mudar a partir de 2014, quando o preço do barril de petróleo venezuelano sofreu uma queda brusca de preço, por conta da competição produtiva entre Estados Unidos e Arábia Saudita, que, insatisfeita com a situação, inicia um processo desenfreado de exploração (também barata) de petróleo em seu território3OBREGON, Marcelo F. Q.; PINTO, Lara C. A crise dos refugiados na Venezuela e a Relação com o Brasil. Derecho y Cambio Social. Lima, 20 jan. 2018, p. 1-21. ISSN 2224-4131..

Com vários fatores internos somados à desvalorização do petróleo da Venezuela, no mercado internacional, e considerando as sanções impostas principalmente pelos EUA, a Venezuela entrou em recessão em meados de 2014. Com as baixas exportações de petróleo, o país viu o seu desemprego aumentar gravemente para um quinto da população e foi obrigado a diminuir também as importações, reduzindo a quantidade de recursos do país. O Governo tentou controlar a inflação por meio de Decretos (o chamado Controle Artificial de Inflação) — o que não funcionou, pois, em 2015, o país atingiu uma taxa de 141% de inflação, segundo o Banco Central da Venezuela, e o preço aos consumidores chegou a 720% em 2016, segundo informado pelo FMI4Ibidem.. Portanto, o país entrou em um Estado de Emergência, com a desvalorização da moeda e a elevação do preço dos combustíveis, além da inflação mencionada.

Diante desse esgotamento do modelo econômico venezuelano, tem-se um fator decisivo para a deflagração da crise, que não pode ser compreendida apenas pelo aspecto econômico, senão também pelo viés político: a morte de Hugo Chávez. Após 14 anos no poder, no início de 2013, o país se vê sem seu líder, indubitavelmente, carismático. Seria a oportunidade para a oposição política ao chavismo avançar no país, de modo a tornar a situação econômico-política insustentável para muitas famílias. Assim, ao mesmo tempo em que Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, assume o poder para um mandato de seis anos, a oposição conquista a maioria no Parlamento em 2015, gerando um conflito de poderes. Nesse contexto, o Tribunal Superior de Justiça, aliado de Maduro, limitou as funções legislativas da Assembleia Nacional, o que evidenciou ainda mais o embate entre chavistas e oposição. Consequentemente, os opositores de Chávez tentam tirar Nicolás Maduro do poder por meio de um Referendo Revogatório (uma medida prevista na própria constituição venezuelana) e do apoio popular.

Entretanto, a segunda etapa do referendo foi suspensa temporariamente, devido a supostas irregularidades nas assinaturas reunidas e encontradas pelas autoridades venezuelanas. Essa intervenção favoreceu o governo de Maduro e o chavismo, já que seu sucessor permaneceria no poder até o fim da candidatura, em 2019. Como consequência, pouco tempo depois, em abril de 2016, houve diversos protestos nas ruas de Caracas em uma “rebelião popular”, exigindo a saída de Nicolás Maduro, duramente reprimida pelo governo e pelas milícias chavistas armadas e silenciada pela própria mídia, que buscou invisibilizar o caso. Quatro meses após os conflitos, registraram-se 125 mortes, marcando o início de uma crise de proporções humanitárias no país5CARNEIRO, Luíza de Macedo Soares Vieira. A Interiorização dos Refugiados Venezuelanos no Brasil. Cadernos de Relações Internacionais/PUC-Rio, Rio de Janeiro, vol. 2, dez. 2019, p. 244-266..

Portanto, uma das principais consequências do contexto brevemente descrito é o deslocamento forçado em larga escala da população para os países vizinhos, principalmente a partir de 2015, sendo o Brasil o quarto principal destino escolhido. Destarte, a fronteira norte entre Pacaraima e a cidade venezuelana Santa Elena de Uairén transformou Roraima no destino mais acessível do país. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) estima que cerca de 2,3 milhões de venezuelanas/os já deixaram seu país, muitas vezes realizando o trajeto a pé, com pelo menos 50 mil pessoas se estabelecendo no Brasil até abril de 20186Ibidem.. A maioria das/os refugiadas/os chega à cidade de Boa Vista, capital de Roraima, localizada a apenas 210 km da Venezuela, compondo, atualmente, mais de 10% da população do estado.

Todavia, a chegada em Boa Vista nem sempre ocorre de modo tranquilo, visto que muitas/os imigrantes enfrentam dificuldades no acesso aos serviços básicos de Boa Vista e sofrem com a violência da sociedade brasileira, marcada pela xenofobia e pelo preconceito.

Grupo com as famílias e a equipe do CRAS em roda de histórias. Foto: Guilherme Henrique de Andrade Leme

Das fronteiras para o interior do Brasil: um difícil percurso

Diante do cenário de crise na Venezuela e o consequente processo migratório em massa para os países vizinhos, criou-se uma nova realidade no Brasil. O Ministério da Defesa passou, então, a atuar na administração do fluxo migratório, sobretudo nos municípios de Pacaraima e Boa Vista, e no deslocamento de uma parcela da população migrante às cidades menos populosas. Nesse sentido, o Governo Federal articulou o Programa de Interiorização da Operação Acolhida do ACNUR, em março de 2018, como uma tentativa de resposta ao fluxo venezuelano no território brasileiro. Baseada em três pilares principais, a saber, ordenamento da fronteira, abrigamento e interiorização7OPERAÇÃO ACOLHIDA. Ações e Programas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à fome, [2023]. Disponível em: < https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/operacao-acolhida>. Acesso em 10 nov. 2023, a Operação Acolhida consiste em um mecanismo técnico e logístico que busca incentivar a interiorização das/os venezuelana/os em situação de migração como forma de distribuí-las/os pelo território, a fim de realocá-las/os, diminuindo a pressão sobre os serviços públicos da região de Roraima. Desde o início da Operação, cerca de 60 mil pessoas foram interiorizadas para mais de 730 municípios de todos os estados brasileiros com o apoio de entes federativos, agências da ONU – como o ACNUR e a OIM – e demais organismos internacionais, organizações da sociedade civil, assim como entidades privadas8ACNUR. Pesquisa aponta que refugiados e migrantes venezuelanos têm maior acesso a emprego após interiorização. ACNUR, Brasília, 8 dez. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/12/08/pesquisa-realizada-por-agencias-da-onu-demonstra-que-pessoas-refugiadas-e-migrantes-vindas-da-venezuela-tem-maior-acesso-a-emprego-e-renda-apos-adesao-a-estrategia-de-interiorizacao/>. Acesso em 16 nov. 2023.

A necessidade desse realocamento se deu pela limitação dos municípios do estado de Roraima de recepcionar os imigrantes, devido à precária infraestrutura dos postos de saúde e de estadia dessas pessoas e à baixa oferta de empregos. Além disso, no auge do fluxo de venezuelanas/os em território brasileiro, em 2018, os casos de xenofobia e conflitos envolvendo moradores locais e imigrantes cresceram, revelando tensões entre a população dos dois países e o despreparo do governo brasileiro para lidar com os novos fluxos de pessoas em refúgio. Desse modo, revelou-se um cenário em que os processos migratórios despertam uma sensação de maior concorrência por espaço no mercado de trabalho e por recursos básicos de políticas públicas em parte da população nativa (SILVA, 2019).

Portanto, a estratégia de interiorização implementada pela Operação Acolhida é definida como facilitadora da garantia de direitos, autonomia e integração local de pessoas refugiadas e migrantes. O ACNUR defende sua atuação em todas as fases da interiorização, ou seja, a de acompanhamento do indivíduo em situação de refúgio, desde a saída de Pacaraima – município de Roraima – até o seu destino final. Além disso, às/aos imigrantes e refugiadas/os interiorizadas/os deveria ser oferecido apoio “nas áreas de educação infantil, revalidação de diplomas, cursos de português, assistência jurídica, intermediação de vagas de trabalho, crédito para pequenos negócios” (ACNUR, 2021) por meio de outros organismos que realizam parceria com o ACNUR, como Igrejas e ONGs.

Outrossim, deve-se ressaltar que, em princípio, a Operação foi realizada levando-se em consideração os equívocos cometidos no processo de acolhimento e interiorização dos haitianos em 2014, quando a falta de comunicação entre o Acre, os demais estados e o Governo Federal, e o uso de transporte privado sem apoio da União, geraram improvisação na recepção das pessoas deslocadas. Assim, o atual processo de interiorização:

[…] busca realizar o transporte em conjunto com as Forças Armadas, sem a imediata contratação de uma empresa privada, com aviso prévio aos estados, que estabelecem sua disponibilidade de recepção e a assinatura do refugiado de um termo de voluntariedade para que não sejam deslocados sem a vontade de permanecer no local. (CARNEIRO, 2019, p. 250).

Apesar de o ACNUR defender essas frentes de atuação, na prática, a interiorização demonstra lacunas em seu funcionamento, pois não há uma articulação orquestrada entre a Casa Civil (Governo Federal), os estados e os municípios para onde são interiorizadas essas pessoas. Essa situação gera uma desconfiança adicional na população e nos próprios agentes públicos locais ao se depararem com uma demanda de busca de serviços e benefícios sociais advinda de famílias estrangeiras, cujas razões para estarem na cidade são desconhecidas pela população comum e, muitas vezes, resultam em xenofobia e rejeição. Chama atenção, nesse programa específico, o fato de terem sido interiorizadas muitas pessoas para cidades de médio e pequeno porte do Estado de São Paulo, que apresentam histórico de recepção de migrantes internacionais ao longo do século XX e final do século XIX, mas, paradoxalmente, não são, necessariamente, comunidades familiarizadas com a demanda contemporânea de acolhimento de pessoas em situação de refúgio. Em suma, com características histórico-culturais e sociais bastante arraigadas e, muitas vezes, voltadas para o agronegócio e para uma agenda de fortalecimento econômico interno, esses destinos, por um lado, se configuram como potenciais lugares para se refazer as vidas, com oportunidades de trabalho e novas redes sociais; mas, por outro lado, também apresentam desafios no difícil reconhecimento da diferença – seja ela linguística, cultural, econômica, fenotípica, entre outras.

Reconhecimento intercultural como boa prática de acolhimento

Com a percepção da situação de vulnerabilidade de imigrantes e refugiadas/os alocadas/os no interior do Estado de São Paulo e a fim de tratar as lacunas na articulação entre entes federativos, organismos internacionais de imigração e refúgio e os entes municipais no processo de interiorização, em 2021 surge a Rede de Atenção ao Migrante Internacional (RAMIN), vinculada à Pró-reitoria de Extensão Universitária e Cultura (PROEC), que integra vários projetos de unidades da Universidade Estadual Paulista (UNESP), caracterizada por estar em praticamente todas as regiões do Estado de São Paulo. Como parte desta rede, o projeto de extensão “Conhecer para Acolher”, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP de Franca-SP, se incumbiu de realizar um levantamento de dados e mapeamento dos migrantes internacionais na região e desenvolver ações de atenção e acolhimento a estas pessoas.

Entre as necessidades urgentes encontradas está a superação da barreira do idioma. Embora haja proximidade entre a língua portuguesa e a língua espanhola, ao chegarem nas cidades de destino e buscarem auxílio nas unidades de saúde e escolas para a matrícula das crianças, é comum haver entraves de comunicação linguístico-cultural entre venezuelanas/os e brasileiras/os. Portanto, uma das frentes de suma importância para lidar com o desafio da interiorização é o preparo das/os agentes públicas/os municipais, que são aquelas/es que têm o contato direto com as pessoas que chegam desde Roraima, por exemplo, pela Operação Acolhida.

Alunos e professores do curso de Língua Portuguesa para Estrangeiros na UFRR. Foto: Arquivo pessoal de Julia Faria Camargo

Diante desse cenário, a RAMIN buscou dar visibilidade à situação das/os imigrantes e refugiadas/os interiorizadas/os por meio da demanda urgente do mapeamento desses indivíduos na cidade, para, a partir disso, oferecer ações interculturais, entre outras. Durante o ano de 2022, entre abril a novembro, foram contactados instituições religiosas, órgãos públicos e do terceiro setor para a realização do mapeamento e levantamento de dados de imigração no município. As informações coletadas mostram que, em 2022, foram registrados 70 alunos imigrantes de várias nacionalidades nas escolas do município, sendo 58,57% desses estudantes migrantes venezuelanas/os. Além disso, se obteve o registro de dez famílias de venezuelanas/os residentes na cidade, com um total de mais ou menos 42 pessoas.

Levando em consideração os dados apresentados pelo Observatório das Migrações em São Paulo e comparando-os com as informações levantadas e mapeadas pela equipe do projeto “Conhecer para acolher”, percebeu-se uma falta de registros do sistema municipal. É observada a inexistência de acompanhamento das famílias e indivíduos em situação de refúgio e migração na cidade, o que gera uma série de problemas, como a maior vulnerabilidade social a que as/os imigrantes realocadas/os ficam submetidas/os.

Percebe-se que, apesar de o processo de realocação desses indivíduos ser feito através do transporte em conjunto com as Forças Armadas e apesar de o ACNUR e a OIM afirmarem que contactam os estados destinos dos imigrantes, na prática essas Organizações Internacionais não dialogam com os órgãos municipais. Como consequência dessa falta de articulação, as/os imigrantes são deixados por sua própria conta e risco em cidades despreparadas para a sua recepção. Essa realidade é evidenciada pelo fato de grande parte dos municípios não ter uma base de dados e um mapeamento de imigrantes em suas cidades, o que demonstra um problema de saída e a incapacidade de uma orquestração política entre as Organizações que propõem a Operação Acolhida e os municípios do interior.

Consequentemente, se não há dados, nenhum órgão se responsabiliza de fato pelo acolhimento dessa população, tampouco pela realização de políticas públicas que atendam essas pessoas, que, desse modo, acabam expostas a uma série de violências estruturais intrínsecas à sociedade.

Além disso, a presença das Forças Armadas na Operação Acolhida pode configurar-se como um entrave ao objetivo de acolhimento da ação, uma vez que o caráter militar cria a securitização da migração (Agier, 2006, p. 200-201). Nesse sentido, tal abordagem pautada pelo controle e pela vigilância, com aparente objetivo de segurança, se mostra conflitante com uma política migratória baseada nos Direitos Humanos e trata essas pessoas como sujeitos de risco que ficam ainda mais suscetíveis a sofrer xenofobia.

A despeito de todas as dificuldades acima elencadas, há boas práticas que minimizam o problema e abrem possibilidades de solução. Em Boa Vista-RR, por exemplo, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) oferece aulas de português e de capoeira como mecanismos eficientes de acolhimento, sendo mesmo um exemplo de sucesso reconhecido pelo próprio ACNUR9Consultar projeto realizado pela autora, junto à Fundação Memorial da América Latina/UNESCO/UNITWIN, e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2sHe_NEODLI&t=2603s.. Além do português para as/os imigrantes, o ensino de língua espanhola para as/os agentes públicas/os, a implementação de uma educação intercultural, que inclui o entendimento das razões pelas quais as pessoas são obrigadas a deixar seus países de origem, configuram iniciativas já experimentadas e cujo sucesso é visível em várias regiões do Brasil. Em Franca-SP, nosso estudo de caso referente à interiorização, a experiência com o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), da região Sul da cidade, onde se concentra a maior parte da população migrante interiorizada, é emblemática. Em parceria com o projeto “Conhecer para Acolher”, o CRAS-Sul, por meio de seu espaço físico, suas/seus profissionais da saúde e do serviço social e da estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), pudemos realizar várias práticas que resultaram em uma integração das famílias venezuelanas assistidas naquele órgão público. Aulas de português, rodas de conversa, práticas de Teatro do Oprimido10Dramaturgia criada por Augusto Boal, cuja prática reúne teatro e consciência crítico-social., relatos de histórias de refúgio11Consultar ação realizada pela autora, na cidade de Botucatu-SP, em parceria com o Projeto Reconduz e a Fundação Memorial da América Latina/UNESCO/UNITWIN, e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cxX2MREMyA8&t=6605s, feiras gastronômicas, apoio psicológico com a percepção das diferenças culturais, são alguns exemplos de ações aparentemente simples, mas cujo impacto positivo é real, porque proporcionam a aproximação e o reconhecimento necessários entre população em refúgio e comunidade receptora, bem como entre o próprio grupo em situação de refúgio, que, obviamente, não é homogêneo, ainda que compartilhe a mesma nacionalidade.

Evento cultural organizado pelo Projeto Reconduz, o projeto “Conhecer para Acolher” e demais parceiros na praça da Pinacoteca de Botucatu. Foto: Letícia Laurenti Olivi

Considerações finais

Se por um lado houve avanço no marco legal brasileiro sobre as migrações, por outro, permanece uma visão militarizada de todo o processo. Com o ACNUR não é diferente, pois as agências internacionais também herdam um legado de segurança e defesa bastante difícil de ser revisto, em termos práticos, nas relações internacionais. No entanto, quando se trata de questões humanitárias, há de se voltar para o que une todos os seres humanos: a capacidade cultural, aqui compreendida em sua ampla concepção antropológica. Portanto, não se trata de manter a lógica da divisão: ao contrário, é urgente ocupar os espaços das igualdades para a criação e/ou reconhecimento de elos já existentes, mas invisibilizados pela ótica do medo e da defesa em nome de uma suposta segurança. Por uma perspectiva securitária, a/o agente pública/o, seja em nível internacional (como o pessoal das agências da ONU, por exemplo), seja em nível municipal, é quase sempre treinado a combater a diferença como uma potencial ameaça. A partir de uma sensibilidade intercultural, por outro prisma, a chave da relação se dá não na busca de se defender diante da alteridade ou de atacá-la, sempre em nome de uma segurança idealizada em termos militares. Trata-se, sobretudo, de tecer novas possibilidades de existência com aprendizados mútuos. Quando as pessoas em situação de refúgio forem compreendidas, por todas as organizações que com elas lidam, como iguais em sua humanidade, não haverá mais xenofobia e discriminação. Nossas experiências em diversos projetos vêm demonstrando, indubitavelmente, que a mobilização intercultural é uma chave imprescindível para abrir esse portal de respeito político-social tão urgente no mundo convulsionado no qual vivemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACNUR. Pesquisa aponta que refugiados e migrantes venezuelanos têm maior acesso a emprego após interiorização. ACNUR, Brasília, 8 dez. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/12/08/pesquisa-realizada-por-agencias-da-onu-demonstra-que-pessoas-refugiadas-e-migrantes-vindas-da-venezuela-tem-maior-acesso-a-emprego-e-renda-apos-adesao-a-estrategia-de-interiorizacao/>. Acesso em 16 nov. 2023.

ACNUR. Interiorização e Integração no Destino: Rede de Serviços e Parcerias do ACNUR. [s.l.], fev. 2021. Disponível em: <https://help.unhcr.org/brazil/wp-content/uploads/sites/8/2021/03/Int_Rede_Servicos_Parcerias_fev_vf.pdf>. Acesso em 16 nov. 2023.

AGIER, Michel. Refugiados diante da nova ordem mundial. Tempo social, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 197-215, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000200010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 jun. 2023.

CARNEIRO, Luíza de Macedo Soares Vieira. A Interiorização dos Refugiados Venezuelanos no Brasil. Cadernos de Relações Internacionais/PUC-Rio, Rio de Janeiro, vol. 2, dez. 2019, p. 244-266.

CHAVES, João. A resposta ao movimento migratório venezuelano pela Operação Acolhida no Brasil: impasse entre humanitarismo e políticas de trabalho decente. In: VIRGÍNIO et al. Informalidade e proteção dos trabalhadores imigrantes: navegando pelo humanitarismo, securitização e dignidade. 1 ed. São Paulo: Outras Expressões, 2022, p. 25-35.

COSTA, Luiz Rosado; Souza, José Eduardo Melo; BARROS, Lívia Cristina dos Anjos. Um Histórico da Política Migratória Brasileira a partir de seus marcos legais (1808-2019). Revista GeoPantanal, Corumbá, n.27, jul-dez. 2019, p.167-184.

FRANÇA, Rômulo Ataides; RAMOS, Wilsa Maria; MONTAGNER, Maria Inez. Mapeamento de políticas públicas para os refugiados no Brasil. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 89-106, 2019.

JAROCHINSKI, João Carlos; JUBILUT, Liliana. Venezuelans in Brazil: challenges of protection. E-International Relations, 12 jul. 2018. Disponível em: https://www.eir.info/2018/07/12/venezuelans-in-brazil-challenges-of-protection/ Acesso em: 06 jun. 2023.

OBREGON, Marcelo F. Q.; PINTO, Lara C. A crise dos refugiados na Venezuela e a Relação com o Brasil. Derecho y Cambio Social. Lima, 20 jan. 2018, p. 1-21. ISSN 2224-4131.

OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES EM SÃO PAULO. Imigrantes Internacionais Registrados no Brasil (com Registro Nacional – RNM). Unicamp NEPO. Disponível em:<https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/sincre-sismigra/>. Acesso em: 20 set. 2023.

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SILVA, Edna Fátima Pereira da. Um Ano de Interiorização dos Venezuelanos no Brasil: Xenofobia e Fake News Como Desafios Invisíveis dos Refugiados. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belém, 2 a 7 set. 2019, 1-14

***

Profª Drª. Elizabete Sanches Rocha

Docente do curso de Relações Internacionais da FCHS-UNESP-Franca-SP e coordenadora do Projeto “Conhecer para acolher”, da Rede de Atenção ao Migrante Internacional (RAMIN), Pró-reitoria de Extensão Universitária e Cultura (PROEC).

Giovanna Leme de Castro

Discente do curso de Relações Internacionais da FCHS-UNESP-Franca-SP e bolsista do Projeto “Conhecer para acolher”, da Rede de Atenção ao Migrante Internacional (RAMIN), Pró-reitoria de Extensão Universitária e Cultura (PROEC).

Letícia Laurenti Olivi

Discente do curso de Relações Internacionais da FCHS-UNESP-Franca-SP e bolsista do Projeto “Conhecer para acolher”, da Rede de Atenção ao Migrante Internacional (RAMIN), Pró-reitoria de Extensão Universitária e Cultura (PROEC).

Notas

  • 1
    OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES EM SÃO PAULO. Imigrantes Internacionais Registrados no Brasil (com Registro Nacional – RNM). Unicamp NEPO. Disponível em: <https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/sincre-sismigra/>. Acesso em: 20 set. 2023.
  • 2
    OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES EM SÃO PAULO. Imigrantes Internacionais Registrados no Brasil (com Registro Nacional – RNM). Unicamp NEPO. Disponível em: <https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/sincre-sismigra/>. Acesso em: 20 set. 2023.
  • 3
    OBREGON, Marcelo F. Q.; PINTO, Lara C. A crise dos refugiados na Venezuela e a Relação com o Brasil. Derecho y Cambio Social. Lima, 20 jan. 2018, p. 1-21. ISSN 2224-4131.
  • 4
    Ibidem.
  • 5
    CARNEIRO, Luíza de Macedo Soares Vieira. A Interiorização dos Refugiados Venezuelanos no Brasil. Cadernos de Relações Internacionais/PUC-Rio, Rio de Janeiro, vol. 2, dez. 2019, p. 244-266.
  • 6
    Ibidem.
  • 7
    OPERAÇÃO ACOLHIDA. Ações e Programas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à fome, [2023]. Disponível em: < https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/operacao-acolhida>. Acesso em 10 nov. 2023
  • 8
    ACNUR. Pesquisa aponta que refugiados e migrantes venezuelanos têm maior acesso a emprego após interiorização. ACNUR, Brasília, 8 dez. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/12/08/pesquisa-realizada-por-agencias-da-onu-demonstra-que-pessoas-refugiadas-e-migrantes-vindas-da-venezuela-tem-maior-acesso-a-emprego-e-renda-apos-adesao-a-estrategia-de-interiorizacao/>. Acesso em 16 nov. 2023
  • 9
    Consultar projeto realizado pela autora, junto à Fundação Memorial da América Latina/UNESCO/UNITWIN, e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2sHe_NEODLI&t=2603s.
  • 10
    Dramaturgia criada por Augusto Boal, cuja prática reúne teatro e consciência crítico-social.
  • 11
    Consultar ação realizada pela autora, na cidade de Botucatu-SP, em parceria com o Projeto Reconduz e a Fundação Memorial da América Latina/UNESCO/UNITWIN, e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cxX2MREMyA8&t=6605s

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