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Marcha das Margaridas 2023, florescendo luta
Luiz Capelo

marcha das margaridas 2023

Foto: BordaLuta

Nesse tempo em que há quem semeie a secessão no Brasil, é importante rememorar um elemento determinante na formação de nosso país: o Nordeste é uma terra de lutas. Por exemplo, no século XVII,Ganga Zumba estabeleceu na Serra da Barriga um Quilombo que se tornou território de luta e liberdade para os africanos sujeitos à escravidão. Ali, no Quilombo dos Palmares, resistindo a sucessivos ataques da Coroa Portuguesa, Zumbi dos Palmares se impõe como um líder. Assim, mesmo fisicamente destruído o Quilombo e mortos os quilombolas, Zumbi consagra-se como grande héroi da luta antirracista e fundiária. Em um Brasil já republicano, no interior do Bahia, o cearense Antonônio Conselheiro erige sua fervorosa comunidade que oferecia uma alternativa místico-religiosa para sobreviver à seca vida do Sertão. A reação do Estado não tarda, e foram necessárias quatro expedições do Exército Brasileiro para que Canudos fosse colocada a baixo. Mas “o sertanejo é antes de tudo um forte”, e o Conselheiro continua presente na cultura popular. Também no fim século XIX, o município de Quebrangulo, em Alagoas, vê nascer Graciliano Ramos, grande nome da literatura brasileira e grande comunista. Acusado de ter participado da Intentona Comunista de 1935, Graciliano foi preso em Maceió, transferido para o Recife e então enviado, junto com outros presos políticos, para o Rio de Janeiro, onde passou dez meses preso em Ilha Grande. Memórias do Cárcere, livro de memórias publicado postumamente, relata esse período da vida de Ramos. Uma vez livre, Graciliano, a convite de Luís Carlos Prestes, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em seu romance Vidas Secas Graciliano descreve as agruras e as dificuldades da vida no sertão. Ora, o Nordeste também gerou outra filha que muito lutou para que a vida sertaneja fosse um pouco menos sofrida e desigual: Margarida Alves.


Margarida Alves, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande – PB, discursa em meados dos anos 1980. Ao seu lado está Lula. Foto: Acervo de Severino Antonio

Margarida Maria Alves, filha mais nova de uma família de nove irmãos, nasceu em 1933 na zona rural de Alagoa Grande – PB, onde morou até o início de sua vida adulta. Contudo, expulsos da terra por latifundiários, Margarida e sua família foram morar na periferia urbana do município. Os conflitos fundiários tão recorrentes no desigual Brasil marcaram a vida de Margarida. Apesar das dificuldades, ela não aceita passivamente a sina que querem lhe impor. Em 1973, aos 40 anos, Margarida torna-se presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande. Ela foi uma das primeiras mulheres a se tornarem liderança sindical no Brasil. Grande ativista pelos direitos dos trabalhadores, Margarida lutou para que camponeses tivessem sua carteira de trabalho assinada, 13o salário, uma jornada de trabalho de 8 horas, férias remuneradas e licença maternidade. Ela também fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural, onde criou um programa de alfabetização de adultos e lutou pelo fim do trabalho infantil. Na seara judicial, Margarida moveu diversas ações na Justiça do Trabalho para defender trabalhadores. Obviamente, toda essa luta por direitos não passou desapercebida dos latifundiários locais, e, em 1983, Margarida foi assassinada na porta de sua casa por um assassino de aluguel com um tiro de espingarda em seu rosto. O que os algozes não esperavam era que, mesmo cruelmente assassinada, Margarida se multiplicasse e continuasse lutando.


Marcha das Margaridas 2023. Foto: BordaLuta

Inspirada e nomeada em homenagem à Margarida Alvez, a Marcha das Margaridas é um movimento popular que propõe a construção de um projeto de sociedade democrática, justa, igualitária e baseada na soberania popular. Para tanto, a Marcha elenca alguns de seus objetivos políticos:

  • Fortalecimento e ampliação da mobilização popular, sindical e feminista das trabalhadoras rurais;
  • Apresentação de crítica ao modelo econômico hegemônico;
  • A denúncia e o protesto contra toda forma de violência e exploração das mulheres;
  • Reafirmação do protagonismo político e econômico das mulheres do campo, da floresta e das águas
  • Protesto contra as causas estruturantes da insegurança alimentar e nutricional;
  • Atualização e qualificação da pauta de uma negociação que leve em consideração a maior inserção das mulheres do campo, da floresta e das águas;
  • Luta pela consolidação e aperfeiçoamento das políticas públicas que concernem as mulheres do campo, da floresta e das águas.


Marcha das Margaridas 2023. Foto: BordaLuta

A primeira Marcha das Margaridas desceu a Esplanada dos Ministérios no ano 2000, e desde então ocorreram edições nos anos de 2003, 2007, 2011, 2015 e 2019. Em 2023, a Marcha comemorou seus 20 anos e, mais uma vez, no dia 12 de agosta, data em que Margarida Alvez foi assassinada, percorreu o centro físico do poder federal defendendo seu projeto político e clamando por seus direitos.





Margaridas de diversas partes do país se encontram em Brasília na Marcha das Margaridas 2023. Fotos: BordaLuta

Barbara Cassin1Cassin, Barbara. Quand dire, c’est vraiment faire: Homère, Gorgias et le peuple arc-en-ciel. Ouvertures. Paris: Fayard, 2018, em seu estudo sobre o lado performativo da linguagem, discorre sobre a terceira dimensão da linguagem. A primeira dimensão é o “falar de” constatativo. É o regime do verdadeiro e do falso particular à filosofia. Por exemplo, ao falar do caso Margarida, é afirmar que é verdadeira a afirmação de que ela foi assassinada. A segunda dimensão é o “falar a” persuasivo, cujo objetivo é convencer alguém de algo e que pertence ao campo da retórica. Por exemplo, é o texto defendendo que Margarida foi assassinada devido à sua atuação política. A terceira dimensão da linguagem, é a palavra que nem descreve ou persuade, mas faz acontecer. É o discurso sofístico em que a palavra cria e transforma o mundo, uma palavra que tem um “efeito mundo”. Ora, quando Margarida afirma, em seu discurso no 1o de Maio de 1983 que “da luta eu não fujo porque eu entendo que é melhor morrer na luta do que morrer de fome, sua palavra é performativa. É essa a palavra que periodicamente enche a Esplanada dos Ministérios de mulheres em luta.


Marcha das Margaridas 2023. Foto: BordaLuta


Notas

  • 1
    Cassin, Barbara. Quand dire, c’est vraiment faire: Homère, Gorgias et le peuple arc-en-ciel. Ouvertures. Paris: Fayard, 2018

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  1. Maravilhosa a organização, os propósitos, a arte, sempre lutando!

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