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Encantado, o Brasil em desencanto
Camille Malderez

Créditos: Filipe Galvon

Neste artigo, originalmente publicado na Sens public em 2020, Camille Malderez fala do primeiro longa metragem de Filipe Galvon, Encantado, o Brasil em desencanto, ganhador do Festival Internacional de Brasília, no ano de 2020, na categoria Juri Popular. O filme, que tem como ponto de partida a experiência do autor no bairro do Rio de Janeiro onde nasceu, traz um panorama das grandes mudanças políticas do país a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Nesse período carnavalesco de liberação das pulsões, o Coletivo Brasil acredita ser importante uma reflexão sobre o quanto ficamos encantados com promessas e como lidamos com o consequente desencanto. O canto da sereia bolsonarista de 2018 encantou miríades, mas agora é diferente a TOCata que TOCa em certas TOCas. Passado o êxtase do fim do atraso e do retorno da civilização, como reagiremos? Compreenderemos que o príncipe é também o sapo?

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Filipe Galvon, brasileiro que chegou a Paris em 2013, compartilha conosco, em seu documentário Encantado, o Brasil em desencanto, a história de seu bairro, que ele vê nostalgicamente depois que se mudou para a França. É uma história que ele coloca em paralelo com o destino político incerto de sua nação.

Vencedor do Prêmio do Júri Popular no BIFF — Brasília International Film Festival de 2020, o longa-metragem Encantado, o Brasil em desencanto faz uma retrospectiva da década que virou o Brasil de cabeça para baixo.

Cartaz do filme Encantado, o Brasil em desencanto

Para entender como o filme surgiu, precisamos voltar no tempo até o ano de 2012. Filipe Galvon, que faz sua estreia em um longa-metragem, cresceu no bairro do Encantado, na zona norte do Rio de Janeiro. Na época, ele estava se preparando para ir à França para fazer um mestrado em cinema e estudos audiovisuais, mas já queria registrar as mudanças nas ruas onde havia crescido.

Na véspera de sua partida para Paris, filmou as primeiras manifestações contra o aumento das tarifas de metrô que abalaram o país em 2013. Do outro lado do Atlântico, ele permaneceu de olho na política brasileira, que está saiu do controle e mergulhou em um longo ciclo de crises sem fim à vista. A extrema direita e as classes ricas saíram às ruas e fizeram exigências em nome de “Deus, pátria e família”, fomentando uma revolta popular contra o governo de esquerda do PT – Partido dos Trabalhadores.

O impeachment de Dilma Rousseff em 2016 mobilizou brasileiros em Paris a se unirem, levando à criação do MD 18 – o Movimento Democrático 18 de Março, cujas iniciativas Filipe filma. A geração que viu nascer a democracia no Brasil também foi a primeira a se beneficiar de bolsas para estudar no exterior e, de Paris, está lutando para garantir que a democracia não morra.

Essa é a geração Lula-Dilma: “Você vê um cara que é como seu pai se tornar presidente”, explica Warley Alves, filho de um metalúrgico. Revivemos com emoção a eleição de Lula em 2002, que tirou o Brasil do mapa da fome mundial. Uma maré vermelha de esperança que agora se choca com os amarelos e verdes, e cujo líder, Jair Bolsonaro, insinua de forma indecente e provocativa um retorno à ditadura e uma nostalgia por ela.

Créditos: Filipe Galvon

Impeachment ou golpe? Em 15 de abril de 2016, o MD 18 denunciou um procedimento injusto e agendas ocultas em artigos e discursos na mídia francesa.

Para aqueles que tentam acompanhar da França a crise política que vem abalando o Brasil há semanas, pode parecer uma telenovela. Todos os ingredientes para esse tipo de programa de TV estão presentes. Paixão, ódio, mocinhos e bandidos. (MD 18, no Le Monde, 2016)

A história acompanha a prisão de Lula, o assassinato de Marielle Franco e a eleição do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro em 2018.

Créditos: Filipe Galvon

Com a câmera na mão, o diretor, que volta ao Brasil todos os anos, vê seu bairro afundando com o passar do tempo e sofrendo o impacto direto das emulações políticas: aumento da insegurança, fechamento do centro educacional, casas abandonadas e proliferação de igrejas pentecostais. Encantado, tão desencantado. Poesia ou ironia? Um desencanto observado na intimidade do lugar em que ele cresceu, ecoando o que percorre o gigante da América Latina e ilustrando o forte impacto na vida cotidiana de seus habitantes.

Essa é a força e a singularidade do filme, que alterna pontos de vista, do coletivo ao individual, da França ou do coração desse bairro do Rio de Janeiro. De Alain Badiou a Dilma Rousseff, de vizinhos a ex-colegas de classe, todos compartilham suas análises com base na mesma pergunta: o que será deste país que costumávamos chamar de “o país do futuro”? O filme se encerra com mulheres unidas, de mãos dadas, manifestando-se e cantando com todo o coração na rua, seguidas por esta citação de João Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. “Nada é certo, a não ser que nada é certo”, podemos acrescentar. O restante ainda está por ser escrito. Um novo projeto já está em andamento, dando continuidade ao diálogo por meio de um cruzamento entre a França e o Brasil. Enquanto isso, o filme estará disponível em VOD em breve.

Traduzido do francês por Clara Cerqueira

Referência

MD18, Tribune Collective. 2016. “As marchas contra Dilma Rousseff são também a reação de uma classe abastada que se opõe à sua política de redistribuição”. Le Monde, abril. https://www.lemonde.fr/idees/article/2016/04/16/bresil-la-destitution-une-revanche-des-classes-aisees_4903340_3232.html .

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