Foto: Gérard Wormser
Entrevista originalmente publicada, em francês, pela revista Usbek & Rica
Em seu livro recém publicado Éloge du bug (lançado pela editora La Découverte 7 de maio deste ano), o filósofo Marcello Vitali-Rosati nos convida a mudar o olhar sobre tudo aquilo que atrapalha a bem lubrificada máquina do digital. Debatemos com ele sobre um ensaio estimulante que combina Sócrates, os GAFAMs[mfn]O acrônimo faz referência às empresas de tecnologia Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. Nota da tradução.[/mfn] e a comunidade Linux.
Não é sempre que um filósofo começa uma conversa com uma descrição detalhada sobre o protocolo IP (que permite o envio de pacotes de dados). “Os protocolos incorporam valores e já trazem em si uma visão do mundo“, garante Marcello Vitali-Rosati, há pouco instalado em um pequeno café no distrito de Halles, em Paris, onde nós o encontramos. Nossa surpresa é relativa: a leitura de seu último ensaio, Éloge du bug. Être libre à l’époque du numérique (La Découverte, 2024), havia nos preparado para essa surpreendente mistura de gêneros, na qual encontramos tanto os grandes pensadores da Antiguidade quanto comandos em Python, uma das linguagens de programação mais populares.
Sem dúvida, esse ecletismo de pensamento foi necessário para rever o estigma contra o bug, o inimigo número 1 do discurso de vendas dos GAFAMs: “soluções” simples, intuitivas e prontas para uso. É sobretudo, segundo esse filósofo e especialista em tecnologias digitais que leciona na Universidade de Montreal, uma ilusão de autonomia e liberdade que nos impõe uma visão unívoca do mundo e na qual os bugs podem abrir brechas temporárias. Na entrevista que nos concedeu, ele explica como os bugs podem nos ajudar a pensar de forma diferente sobre o futuro do digital.
Usbek & Rica
Como nos tornamos alérgicos ao bug? A culpa é da cultura digital na qual estamos imersos?
Marcello Vitali-Rosati
Não, essa intolerância tem uma origem muito mais profunda, que remonta pelo menos ao século XIX e à primeira revolução industrial. Fomos habituados desde o nascimento, por meio de nossa educação, a considerar certas coisas como inaceitáveis, aberrantes ou até mesmo completamente loucas. É o que se chama de imperativo racional: sentimos uma espécie de repulsa pelo irracional, por aquilo que não está na ordem das coisas. Essa repulsa, como mostra Freud, não é natural: é o que ele chama de retorno do recalcado, em outras palavras, nosso desejo de revelar essa irracionalidade. Não podemos dizer: “isso não funciona e eu gosto disso”. Se o fizermos, é quase um pecado.
O teórico da literatura Francesco Orlando constatou igualmente que havia um amor particularmente acentuado por coisas inúteis ou feias nos textos do século XIX. Em uma época em que a sociedade está totalmente comprometida com o imperativo funcional – é preciso que as coisas funcionem, é preciso produzir capital e riqueza, sempre mais rápido – a literatura faz exatamente o oposto, tornando-se assim um espaço para a expressão do retorno do recalcado.
Nossa aversão ao bug tem origem nesse paradigma, do qual temos dificuldade de escapar. Temos muita dificuldade em admitir para nós mesmos que estamos fazendo algo que não serve para nada. Quando vamos ao cinema, dizemos que estamos enriquecendo nosso capital cultural; até quando descansamos, dizemos que isso nos permite recarregar as baterias para recomerçamos. Esse sentimento de aversão obviamente se estende ao mundo digital. O mundo que conhecemos hoje é fortemente condicionado por um paradigma capitalista, em que o imperativo funcional é dominante. Mas a tecnologia poderia ser outra coisa.
Usbek & Rica
Onde esse retorno do recalcado se manifesta hoje?
Marcello Vitali-Rosati
Nós o encontramos em experiências de apropriação, que consistem em pegar as tecnologias no contrapé. Penso, por exemplo, no artista alemão Simon Weckert. Ao perceber que o tráfego no Google Maps era calculado com base na concentração de telefones conectados e geolocalizados, ele colocou 100 iPhones em um carrinho e o moveu pelas ruas de uma pequena cidade da Alemanha, o que criou engarrafamentos em todo o aplicativo. O interessante é que, posteriormente, ele recebeu ameaças de todos os lados. Do Google, é claro (embora eles tenham conseguido corrigir o algoritmo), assim como de pessoas nas redes sociais que o insultaram. Como usuário, existe essa ideia de que não se deve criar bugs.
Esse experimento também revelou como o Google Maps funciona. As pessoas se perguntam sobre isso? Na maioria das vezes, não. Mas daí surgem algumas questões importantes: por que o Google está coletando meus dados? Eu quero fornecer meus dados a ele?
Usbek & Rica
Em seu livro, você retoma um episódio da vida de Sócrates[mfn]Conforme narrado no início do Banquete, Aristodemo encontra Sócrates, banhado e calçado, o que não era de seu costume, a caminho de um banquete na casa de Agatão. Sócrates logo convida Aristodemo a acompanhá-lo. Assim, Aristodemo e Sócrates se dirigem à festa. Chegando na casa de Agatão, eis que o anfitrião o Aristodemo constatam que Sócrates não chegou. Sócrates travou no meio do caminho. Algum pensamento se apossou dele. Era um comportamento habitual. Os pensamentos chegam, e Sócrates trava. Nota da tradução.[/mfn] narrado na abertura do Banquete, de Platão, em que ele trava[mfn]Bugger, no original em inglês. Nota da tradução.[/mfn], o que lhe permite pensar e questionar. Como essa abordagem filosófica pode ser usada para resistir à retórica dos GAFAMs?
Marcello Vitali-Rosati
A irrupção de alteridade nos permite ver as coisas de forma diferente e questionar a singularidade do paradigma. Olhar para o bug de forma diferente é um ato bastante radical. A revolução que o bug pode provocar é fundamentalmente cognitiva. Ele nos permite perceber que aquilo que pensávamos ser a única forma possível de pensar não o é. O bug torna visível o que havia sido tornado invisível e transparente por ter sido naturalizado. Estamos tão acostumados a pensar que as coisas têm que funcionar que nem sequer nos questionamos.
O bug nos permite dizer a nós mesmos: espere um minuto, você pensou que tinha de resolver determinadas questões porque estava insrido no paradigma [do imperativo racional], mas você também pode sair desse paradigma! O que me interessa no bug é que ele sugere algo. Nesse sentido, ele permite que Sócrates pense. Mas talvez precisemos ser um pouco mais radicais do que eu fui no livro e dizer que a filosofia é essa intencionalidade que vem de fora, que produz significado, que nos agarra e nos leva a outro lugar.
Usbek & Rica
Popular no mundo da codificação, a expressão “it’s not a bug, it’s a feature” (não é um bug, é um recurso) enfatiza o fato de que um bug também pode ter uma conotação positiva.
Marcello Vitali-Rosati
Com certeza, mas é preciso ter cuidado com isso também, porque essa expressão vem do paradigma produtivista. O bug cria um comportamento que não havíamos previsto e, às vezes, esse comportamento é de fato interessante. Se adotarmos uma perspectiva produtivista, há a ideia de buscar a maximização em todos os lugares e sempre, mesmo naquilo que não funciona. O que eu acho interessante nessa frase é que há uma intencionalidade que vem do exterior e que nos permite questionar a relação homem-máquina. Muitas vezes imaginamos que há os humanos que pensam e as máquinas que fazem. Na realidade, é um pouco diferente: o pensamento emerge entre os dois e a partir dessa relação. Foi o que aconteceu com Sócrates também: ele travou, mas ao mesmo tempo esse acontecimento permitiu o surgimento da filosofia.
Usbek & Rica
Como podemos reverter o paradigma dominante ancorado no produtivismo? É possível estruturar uma contracultura digital anticapitalista?
Marcello Vitali-Rosati
Na minha opinião, é preciso separar duas coisas. Pessoalmente, eu sou anticapitalista e tenho posições anarquistas. Isso me diz respeito, mas não é o tema de que trata o livro. Seu tema é que não existe apenas um único paradigma possível e que esse paradigma único não seja naturalizado. Você pode ser anticapitalista ou não. Mas mesmo que você não seja, não acho que seja possível aceitar que o paradigma do capitalismo seja o único possível.
Então você tem que evitar que o bug seja o outro paradigma, ou que você tenha de escolher entre o capitalismo e o bug. O que me interessa, e o que o bug permite, é a explosão da singularidade em forma de multiplicidade. É essa multiplicidade que me parece ser essencial proteger. Não se trata de substituir uma web por outra, ou de substituir o mundo digital “ruim” pelo mundo digital “bom”. A ideia não é ter um único digital, mas vários; não ter um paradigma para interpretar o mundo, mas vários.
Usbek & Rica
Você escreveu que essa multiplicidade se encontra em pequenas comunidades de desenvolvedores adeptos do software livre e aberto, a exemplo do sistema operacional Linux. Essa cultura poderá se tornar mainstream no futuro?
Marcello Vitali-Rosati
Não se pode ser múltiplo e mainstream ao mesmo tempo. A primeira coisa, e a mais importante, é, na minha opinião, perceber que a solução que nos é fornecida por padrão não é neutra. A metáfora do cinema funciona bem: posso muito bem ir ver Barbie e dizer a mim mesmo que é um filme convencional, sem querer procurar Monique Wittig nele.
É a mesma coisa com o digital: primeiro é preciso entender que se eu usar o Google Maps em um iPhone, isso implica uma série de coisas: uma visão de mundo, um modelo econômico e determinados valores. Talvez, no final, eu decida usá-lo. Mas, ao mesmo tempo, sei que posso procurar outra coisa, e que assim verei o mundo de uma outra maneira. Por exemplo, eu poderei contribuir com o OpenStreetMap ou conceber um algoritmo que me sugira uma rota para ir do ponto A ao ponto B que passe pelo maior número possível de cinemas.
Da mesma forma, não estou dizendo que todos devem parar de usar o Word. Mas quando o usamos, precisamos estar cientes de que estamos aderindo a uma filosofia de texto específica e que essa filosofia de texto condicionará profundamente o que podemos escrever e pensar. Não conseguiremos pensar sobre certas coisas se escrevermos no Word. O formato estruturará nosso pensamento de uma certa maneira. Quando você se dá conta disso, já está na metade do caminho, na minha opinião.
Usbek & Rica
Que software você usa para escrever seus textos?
Marcello Vitali-Rosati
Toda vez que começo a escrever algo, configuro um ambiente que me permite fazer o que quero [Marcello pega seu computador, que exibe uma tela preta na qual ele digita comandos. É o Vim, um editor de texto altamente personalizável]. Aqui, por exemplo, o controle de versão é muito importante para mim[mfn]Versionar é o que lhe permite ver e acessar o histórico das versões do texto que salvou. Nota da tradução[/mfn]. Aqui, sou eu quem decide como fazer o controle de versões: não é uma nuvem que faz isso no meu lugar.
Minha equipe e eu também criamos um editor de texto on-line chamado Stylo, no Huma-Num, a maior infraestrutura digital francesa. Você pode usá-lo para escrever artigos para revistas de ciências humanas. Criamos um ambiente que tenta corresponder a esses usos específicos da melhor forma possível.
O objetivo não é adotar a ferramenta mais eficiente – isso não significa nada. Eficiência implica adaptar nossas práticas e, portanto, formatar nosso pensamento, ou melhor, apagar completamente nosso pensamento para encaixá-lo no dispositivo em questão, quando é exatamente o contrário que precisa ser feito. O modelo da Microsoft suavizou tudo. Meu trabalho é pensar sobre textos e sempre fico indignado com editores e autores por adotarem uma ferramenta que não foi projetada para eles. Eles têm que se adaptar aos imperativos funcionais e às visões de mundo de uma empresa que não vende produtos para editores e escritores, mas para empresas de ferramentas de escritório.
Usbek & Rica
A homogeneização do mundo digital que você aponta será acelerada com o rápido desenvolvimento da IA?
Marcello Vitali-Rosati
O risco de uniformização não é específico das tecnologias, mas do capitalismo. Na década de 1990, no início da web, o discurso dominante era o de John Perry Barlow, que estava convencido de que todos poderiam expressar seu ponto de vista, que não seríamos mais limitados. Vimos que esse sonho de multiplicidade não se tornou realidade. Pelo contrário, a concentração não parou de ser reforçada.
O mesmo pode ser dito da inteligência artificial. A concentração de hoje é principalmente econômica. A partir dos anos 2000, investimos em um método que remonta à década de 1950, aos primórdios da ciência da computação: perceptrons (ou neurônios artificiais). O problema é que investimos tudo nisso, quando há outras tecnologias que teriam sido interessantes. Além disso, essas tecnologias exigem infraestruturas cada vez mais pesadas e caras. Hoje, em termos concretos, apenas um punhado de participantes no mundo (Microsoft, Apple, Google) tem a capacidade econômica de conduzir um modelo de IA. Os pontos de vista incorporados nos algoritmos são os de uma elite específica. Esse é o grande problema, antes mesmo da questão da relação entre homem e máquina. É claro que sempre haverá modelos mainstream como o ChatGPT e eles se tornarão cada vez mais centralizados e homogêneos em um mundo globalizado e ultra-capitalista. Mas vamos pelo menos nos certificar de que outros modelos são possíveis.
Usbek & Rica
Você enfatiza a importância de criar uma verdadeira alfabetização digital. Todas as crianças na escola deveriam aprender a montar e desmontar computadores ou os conceitos básicos de codificação?
Marcello Vitali-Rosati
A maioria das decisões que foram tomadas para introduzir uma educação tecnológica nas escolas é contrária à alfabetização. Estou simplificando, mas, muitas vezes, essa educação tecnológica se resume a dar iPads às crianças. Mais do que aulas de código, o papel das escolas é desenvolver o pensamento crítico dos alunos para que eles possam se tornar mestres e mestras do ambiente tecnológico. E acho que é mais fácil conseguir isso mantendo-os longe desses dispositivos. Depois, se queremos aproximá-los, o objetivo principal deve ser a compreensão. Às vezes, consegue-se melhor isso brincando com Lego do que usando um iPad. O ponto de partida deve ser de baixa tecnologia, por exemplo, computadores muito simples com pouquíssima tecnologia em seu interior.
No livro, falo sobre a equação alta tecnologia/baixa tecnologia, baixa tecnologia/alta tecnologia: quanto mais habilidades técnicas você tiver, mais tecnologia “baixa” poderá usar; e quanto mais incompetente você for, mais tecnologia de alto nível vai utilisar para tomar decisões por você. Portanto, temos que tentar ensinar a tecnologia “mais baixa” possível para permitir que as crianças entendam o que estão fazendo.
Traduzido do francês por Luiz Capelo
Marcello Vitali-Rosati
Filósofo e especialista da edição digital, Marcello Vitali-Rosati é professor do departamento de literatura francesa da Université de Montréal. Pelo estudo e a prática do código, ele analisa como algoritmos, formatos, software e plataformas redefinem as noções de humano, identidade, conhecimento e literatura. Marcello está à frente de vários projetos em humanidades digitais, especialmente no campo da publicação acadêmica: plataformas para publicação de periódicos e monografias enriquecidas, o editor de texto Stylo e a plataforma para edição colaborativa da Antologia Grega.