Para ornintólogos, a Columbina talpacoti, também conhecida por seu nome popular rolinha-roxa
A Antiguidade clássica é um campo de estudos muito amplo e que pode ser abordado por diversas frentes. Pode-se pensar a história das guerras, dos impérios e das ideias ; a teologia desvela os múltiplos e variados panteões do período ; a antropologia se encarrega de gregos, troianos, romanos, persas, celtas, hititas, micênicos e minoícos ; as artes cênicas florescem ; as esculturas ainda hoje ornam nossas cidades, museus e palácios ; a oratória discorre suas metáforas, metonímias, paradoxos e antíteses ; na filosofia se analisou de rios que correm e já não são os mesmos a imagens refletidas na parede da caverna ; a literatura declamou odisseias das mais diversas. Plural como a vida e as experiências humanas, e às vezes motivada por razões completamente aleatórias, a Antiguidade pode nos levar a lugares insólitos. Assim, chega-se ao senador Marcos do Val, do partido PODEMOS, que recentemente publicou em sua conta no Twitter uma foto que gerou comoção, ironias e piadas. Eis a postagem do senador:
Tweet manjador de Marcos do Val
Ora, nessa postagem, descobre-se que o senador é, usando um termo popular, um manja-rola. Do Val dá uma patolada em Flávio Dino — que também é senador da República, mas pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) — e sugere que seu pênis seria maior. Bem, a manjada do senador capixaba não é um ato anódino. Muito pelo contrário, ela desvela a percepção — talvez fixação — falocêntrica do senador. Apesar disso, ela pode também nos levar a caminhos outros, tais como o epigrama 12.242, de Estratão de Sardes:
Πρῴην τὴν σαύραν ῥοδοδάκτυλον, Ἄλκιμ᾽, ἔδειξας:
νῦν αὐτὴν ἤδη καὶ ῥοδόπηχυν ἔχεις[mfn]As traduções do grego foram feitas a partir do texto estabelecido por Waltz.[/mfn].
Alcino, você mostrava um lagarto matinal pequeno e rosado como um dedo ; mas, agora, você já tem o largarto grande e rosa como um braço[mfn]Todas as traduções são de minha autoria[/mfn].
O poeta de Sardes está analisando o tamanho do pênis de Alcino. Quando criança, Alcino tinha um pequeno e rosado lagarto do tamanho de um dedo. Já adulto, o lagarto agora tem o tamanho de um braço. Aqui, ao contrário do senador, o que nos interessa particularmente no texto de Estratão não é se Alcino tem uma lagartixa ou um tiranossauro, mas sim os adjetivos ῥοδοδάκτυλον e ῥοδόπηχυν.
A acepção primária do substantivo ῥόδον,ου (τό) é a flor rosa. Em um processo de ressignificação lexical, o substantivo passa a funcionar como um adjetivo. Assim, ῥοδοδάκτυλον é um dedo — δάκτυλος, ου (ὁ) significa dedo — da cor rosa e ῥοδόπηχυν — πῆχυς,εως (ὁ) é o cotovelo e, por extensão, braço — é um braço rosado. Grande ou pequeno, o pênis de Alcino é associado à rosa.
Usando o mecanismo de busca morfológica presente na plataforma Perseus, vê-se que esses dois adjetivos aparecem, em textos eróticos, apenas nesse epigrama de Estratão, que é repetido na Antologia Grega e está presente no livro 11[mfn]O texto do epigrama no livro 11 difere do texto do livro 12 apenas pela substituição do verbo ἔδειξας pelo verbo εἶχεν no final do primeiro verso.[/mfn] — o epigrama 11.21 — e no livro 12 — o epigrama 12.24. Ora, é interessante notar o jogo semântico utilizado por Estratão. Ἠώς ῥοδοδάκτυλοs é o epíteto homérico costumeiro da deusa Éos, a aurora de dedos rosados. De descrição divina, Estratão emprega o adjetivo para descrever o membro de Alcino. Contudo, ele não é o único a fazer arranjos lexicais envolvendo a rosa. Vejamos o epigrama 5.55, de Dioscoride:
Δωρίδα τὴν ῥοδόπυγον ὑπὲρ λεχέων διατείνας
ἄνθεσιν ἐν χλοερoῖς ἀθάνατος γέγονα.
ἡ γὰρ ὑπερφυέεσσι μέσον διαβᾶσά με ποσσίν,
ἤνυεν ἀκλινέως τὸν Κύπριδος δόλιχον;
ὄμμασι νωθρὰ βλέπουσα: τὰ δ᾽ ἠύτε πνεύματι φύλλα,
ἀμφισαλευομένης, ἔτρεμε πορφύρεα,
μέχρις ἀπεσπείσθη λευκὸν μένος ἀμφοτέροισιν,
καὶ Δωρὶς παρέτοις ἐξεχύθη μέλεσι.
Quando em minha cama eu estirei Doris do bumbum rosa em suas jovens flores, eu me tornei imortal.
Ela, enquanto me segura no meio de suas magníficas pernas, percorre sem oscilação o longo caminho de Afrodite.
Olhava-me com olhos preguiçosos, que, enquanto ela se balançava ao meu redor, moviam-se brilhantes como uma folha ao vento, até que o branco vigor de ambos foi derramado e Doris regojizou de prazer com seu corpo relaxado.
É nas jovens flores de Doris do bumbum rosado que o poeta se torna imortal. Assim como no texto de Estratão, Dioscoride cria um neologismo utilizando a rosa: ῥοδόπυγος, o bumbum rosado. Segundo Chantraine, πυγή,ῆς (ἡ) é um termo de baixo calão, é vulgar. Talvez por isso — junto com a imagem de Doris transando e, mais importante, gozando — L, um dos escoliastas que trabalhou no Codex Palatinus 23[mfn]O Codex Palatinus 23 é a principal fonte material da Antologia Grega. Há outros códices, como por exemplo o texto de Planudes, que servem como fonte da AG, porém o CP23 é o mais completo deles.[/mfn], julgue que esse epigrama de Dioscoride seja “a maior putaria”[mfn]Em grego, πορνικώτατον.[/mfn]. Ora, mas por que tamanho bafafá envolvendo esses epigramas?
Uma antologia é uma obra formada a partir de outras obras. Ela é um conjunto de textos selecionados por alguém e reunidos em uma só obra. Uma antologia é escritura e concomitantemente leitura. Escritura no sentido de que ela é composição de uma nova obra ; mas é leitura porque ela é o registro dos textos que seu autor leu e achou mais adequados para estarem presentes na antologia. No contexto da Antologia Grega, seu primeiro antologista — e foram vários — é Meleagro de Gádara. Poeta e “editor” — uso o termo ciente do anacronismo –, Meleagro é o primeiro a tecer uma Coroa de poetas — ὑμνοθετᾶν στέφανον. É ele também o responsável pela metáfora das flores. Ora, no prefácio de sua Coroa, ele compara cada poeta ali presente a uma flor. Dioscoride, por exemplo, é a flor da canela. Assim, um poema é bonito como um lírio e charmoso como uma bromélia. Isso até Estratão e Dioscoride subverterem a metáfora. E a rosa vira um pipi ou uma pepeca.
Os epigramas de Dioscoride e de Estratão certamente são obscenos. Eles são também eróticos e mesmo pornográficos. A corporalidade presente nesses textos justifica a aplicação de todos esses adjetivos. Mas não é a lagartixa rosa de Alcino ou a vulva rosada de Doris que os tornam putaria. Esses epigramas atingem o grau de “maior putaria” porque eles pegam a metáfora fundadora da antologia — etimologicamente um conjunto de flores — e a subvertem. Os epigramas desvelam corpos nus e sexualmente ativos, mas eles também atuam na área da linguagem e criam uma nova seção na floricultura. A putaria não está em mostrar pirus, mas sim na subversão da linguagem. Pornikos é a palavra que elogia o lagarto do ser amado e o compara com a rosa. O que nos remete ao epigrama 12.7, também de Estratão.
Σφιγκτὴρ οὐκ ἔστιν παρὰ παρθένῳ, οὐδὲ φίλημα
ἁπλοῦν, οὐ φυσικὴ χρωτὸς ἐυπνοΐη,
οὐ λόγος ἡδὺς ἐκεῖνος ὁ πορνικός, οὐδ᾽ ἀκέραιον
βλέμμα, διδασκομένη δ᾽ ἐστὶ κακιοτέρα.
ψυχροῦνται δ᾽ ὄπιθεν πᾶσαι: τὸ δὲ μεῖζον ἐκεῖνο,
οὐκ ἔστιν ποῦ θῇς τὴν χέρα πλαζομένην.
Com as garotas, não há cu, nem beijo sincero, tampouco o agradável cheiro natural da pele;
não há aquelas doces palavras de putaria, nem o olhar puro. E as garotas que foram instruídas são as piores.
Todas elas são frias por trás. E o mais grave nisso: não há onde você possa colocar a mão errante.
O texto do epigrama é corporalmente explícito. O primeiro dístico já traz um ânus, um beijo e uma pele cheirosa. O último verso discorre sobre a masturbação concomitante à penetração anal. Mas não é aí em que está a putaria. Ela aparece no segundo dístico, quando o poeta começa a discorrer sobre outros elementos da prática sexual. A associação entre a putaria, πορνικός, e o discurso, λόγος, é explícita. Para o poeta, a putaria são as doces palavras sussuradas no ouvido do amante. A putaria é o discurso porque ele que é capaz de performar ressignificações e construir ligações outras entre os elementos. Nesse sentido, a putaria é uma heterotopia.
Heterotopia é um conceito elaborado por Michel Foucault (FOUCALT, 2004). A heterotopia é um lugar outro — ἕτερος,α,ον significa outro, e τόπος,ου (ὁ), lugar — diferente da realidade objetiva, mas que engloba e abriga atividades reais e imaginárias. Além disso, nesse outro lugar é permitida a subversão das regras morais, políticas e sociais. Em uma heterotopia, as relações entre os elementos são reestruturadas. Ela é uma espécie de utopia efetivamente realizada em que lugares são reinterpretados, contestados e invertidos. Nesse contexto, usar a mesma metáfora para descrever a poesia e orgãos genitais e o sussuro no ouvido do eromenos[mfn]O relacionamento homossexual masculino entre um adulto e um garoto/adolescente faz parte da paradigma sexual da Antiguidade Clássica. O adulto é o erastēs, o amante, o garoto é o eromenos, o que é amado.[/mfn] são quebras de expectativas.
Zeus e Ganimedes. O deus, entre outros atributos, é patrono dos pederastas. Foto: Museu Arqueológico de Ferrara
A pederastia era uma prática sexual característica da Antiguidade. Considerando a extensão temporal do período, não é de se estranhar que a pederastia se altere no decorrer do tempo. Apesar disso, pode-se afirmar que o tema não era tabu na época em que foram compostas a Coroa de Meleagro e, muito menos, a Musa dos meninos, de Estratão. Ora, Meleagro escreve alguns epigramas para o jovem Myiscos e a antologia de Estratão é fundamentalmente dedicada ao amor pederasta. Seguindo a argumentação de Richlin (2014), elenca-se alguns elementos básicos da prática. Inicialmente, dentre outras hipóteses para sua origem, a pederastia era um ritual de iniciação sexual. Mas Estratão, no epigrama 12.34, ultrapassa fronteiras semânticas e aproxima consideravelmente a pederastia da pedagogia:
πρὸς τὸν παιδοτρίβην Δημήτριον ἐχθὲς ἐδείπνουν,
πάντων ἀνθρώπων τὸν μακαριστότατον.
εἷς αὐτοῦ κατέκειθ᾽ ὑποκόλπιος, εἷς ὑπὲρ ὦμον,
εἷς ἔφερεν τὸ φαγεῖν, εἷς δὲ πιεῖν ἐδίδου:
ἡ τετρὰς ἡ περίβλεπτος. ἐγὼ παίζων δὲ πρὸς αὐτὸν
φημί σὺ καὶ νύκτωρ, φίλτατε, παιδοτριβεῖς
Jantava ontem com o treinador de meninos Demétrio, o mais feliz de todos os homens.
Um menino deitava em seu colo, outro estava sob seus braços, um trazia o jantar e outro servia o que beber.
Um quarteto admirável.Então, brincando com ele, eu perguntei: “queridíssimo, você também treina esses garotos durante a noite?”
Na iconografia presente nos vasos pintados, a pederastia é constantemente associada a atividades físicas e atléticas (Richlin, 2014). O preceptor ensina ao eromenos a caçar, a correr, a lutar e a transar. Ora, o sexo é apenas uma das atividades ensinadas. Ele não é central, e a temática da moderação nos desejos é uma constante. A relação entre erastēs e eromenos é de troca em que o garoto dá acesso aos seus genitais e coxas em troca de um presente, de uma formação. Assim, se a pederastia faz parte da pedagogia, o paidotribēs/erastēs deveria estar mais interessado na educação do que no corpo do garoto. Ora, esse claramente não é o caso do poeta, que gostaria de também educar os meninos à noite. Além disso, o sexo oral e o anal são temas delicados no contexo dos eromenoi. Nos vasos, não há imagens de eromenoi sendo enrabados ou praticando sexo oral (Richlin, 2014). Ora, basta retornar ao epigrama 12.7 que se constata que esse limite não se aplica a Estratão.
Os epigramas de Estratão e Dioscoride fazem parte daquilo que aqui podemos chamar de “poética da putaria”. Os textos são sexualmente explícitos. A imagem de Doris correndo o longo caminho de Afrodite e gozando ao final não deixa de ser pornográfica. Mas o epigrama se torna putaria ao relacionar a rosa ao bumbum de Doris, ao afirmar que o poeta torna-se imortal ao estirar as — ênfase no plural — jovens flores de Doris. A putaria está na afirmação de que tanto o ânus quanto a vagina de Doris são flores e o exilir da vida eterna. Estratão é ainda mais direto em sua subversão poética. Para ele, a flor é o pênis de Alcino, que cresce sob o olhar atento do poeta. De um dedo, o lagarto passa a ter o tamanho de um braço. De uma semente, a rosa vira uma bela e vistosa flor. Além disso, Estratão também questiona os limites próprios à pederastia. Se o preceptor deveria estar interessado na formação moral e cívica dos meninos, isso não parece importar ao poeta. Para ele, o treinador de meninos é o mais feliz dos homens porque convive diariamente — e também à noite, para a volúpia de Estratão — com garotos. Se há limites e práticas sexuais não aconselhadas ao pederasta, Estratão ignora os conselhos. E felação, sexo anal, masturbação e sussuros aos ouvidos levam o poeta ao delírio. Ora, isso aponta que há diferentes manjações. É possível dar uma patolada e, com esse ato, questionar limites e relações entre os elementos. É a manjada heterotópica que Estratão pratica. Já o senador capixaba, esse pratica uma manjada simplória, daquelas que no máximo desvelam desejos reprimidos. Afinal, não é por ter um dedinho rosa ou um braço rosado que o indivíduo é melhor ou pior parlamentar.
Estratão conferindo o lagarto de Alcino. Gravura de Gaston Goor para a edição de Roger Peyrefitte (Flammarion, Paris, 1973) da Musa dos Garotos
Bibliografia
Chantraine, Pierre. s. d. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Consulté le 10 février 2022. http://archive.org/details/Dictionnaire-Etymologique-Grec.
Foucault, Michel. 2004. « Des espaces autres ». Empan 54 (2):12‑19. https://doi.org/10.3917/empa.054.0012.
Richlin, Amy. 2014. « Reading boy-love and child-love in the Greco-Roman world ». In Sex in Antiquity. Routledge.
Waltz, Pierre, Robert Aubreton, Jean Irigoin, Francesca Maltomini, et Pierre Laurens. 1928. Anthologie grecque. Collection des universités de France. Série grecque 481; Paris: Société d’édition Les Belles Lettres.