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Dendê, matéria prima para um futuro sustentável
Edson Barcelos da Silva
Márcio Turra de Ávila

O dendê. Fonte: Domínio público

Em 2015, a aviação civil consumiu por volta de 177 bilhões de litros de querosene derivado de petróleo (QAv), movimentando mais de 25000 aeronaves e 6 bilhões de passageiros, o que gerou cerca de 781 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), correspondendo a 2% de toda a emissão antrópica desse gás de efeito estufa (GEE). Segundo estudo de 2022 realizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o volume de QAv demandado atualmente é estimado num patamar acima de 400 bilhões de litros anuais, tornando ainda mais preocupante a produção de CO2, que deve ser reduzida sob pena da temperatura média global atingir níveis que causem danos irreversíveis ao planeta. Para que esse propósito seja atingido, a utilização de fontes renováveis para produção de combustíveis aeronáuticos configura-se como uma alternativa absolutamente promissora, o que confere à palma de óleo um papel de destaque, haja vista ser a cultura oleaginosa que mais produz óleo no mundo.

A palma de óleo ou dendê, vegetal de origem africana que chegou ao Brasil no período colonial, possibilita vasto fornecimento de óleo (5 toneladas por hectare ou mais), considerado o maior entre as culturas oleaginosas agronomicamente dominadas, sendo que sua relevante produção de resíduos (coprodutos) apresenta forte indicativo para diversos usos alternativos. O dendezeiro destaca-se por sua acentuada capacidade de imobilizar o carbono atmosférico, permitir reflorestar áreas degradadas, ser cultivado em solos ácidos e pobres, restaurar o balanço hídrico e liberar oxigênio. Pelo processamento de cada tonelada de seus frutos frescos é obtido largo espectro de produtos (a soma percentual total expressa número maior que 100%, pois há inserção de água no processo de extração de óleo):

  • Óleo de palma ou de dendê (20%), destinado a inúmeros usos nos campos alimentício e bioenergético;
  • Óleo de palmiste (1,5%), insumo particularmente interessante à indústria oleoquímica e às empresas fabricantes de cosméticos e de sabões especiais de elevada qualidade;
  • Torta de palmiste (3,5%), normalmente utilizada na cadeia alimentar de espécies animais destinadas à produção de carne (proteína animal);
  • Material lignocelulósico como cascas (12%), fibras (5%) e cachos vazios ou engaços (22%) direcionados às caldeiras para geração de vapor e eletricidade ou, em último caso, retornados ao campo como fertilizantes orgânicos;
  • Efluente líquido (POME, Palm Oil Mill Efluent, 50%), com considerável potencial para produção de biogás e biofertilizante, embora seja, em muitas usinas, tratado em lagoas abertas sem a captura de gases de efeito estufa.

Óleo de palma extraído no sul de Roraima. Foto: Caíque Rodrigues

Contendo poder calorífico médio de 15000 kJ/kg, os resíduos lignocelulósicos (engaços, fibras e cascas) são considerados como importante combustível de alimentação de caldeiras para geração de vapor necessário ao processamento industrial. Se queimados em caldeiras de alta eficiência energética, permitem o fornecimento de vapor e eletricidade no conhecido e já difundido processo de cogeração, o que torna possível se pensar na utilização de parte desses resíduos para obtenção de vapor e energia demandados pelo processamento de milho na fabricação de etanol que, comumente, emprega biomassa de eucalipto no Brasil. Esse aspecto em particular abre um fantástico precedente quanto à inerente integração agroindustrial entre as culturas do milho e do dendê.

No que tange ao efluente líquido resultante da produção de óleo de palma, sua destinação correta é imperiosa, pois seu elevado teor de matéria orgânica torna-o um problema ambiental, se descartado inadequadamente. Dado seu grande potencial metanogênico, aplicações como a verificada na Usina de Puerto Salgar (Colômbia) reportam que a biodigestão anaeróbica do POME permite alcançar produção média de 25 litros de biogás por litro de efluente, conferindo redução de 93% em sua carga orgânica e alta disponibilidade de combustível para geração de energia a partir de fontes não convencionais.

No Brasil, a produção de palma se dá praticamente na região Norte. Embora o zoneamento agroecológico publicado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, em 2010, tenha ressaltado o potencial estratégico de expansão da cultura em áreas degradadas da floresta amazônica (de 7,3 a 22,3 milhões de hectares), as tentativas de expansão, visando inclusive a produção de biodiesel, enfrentaram vários obstáculos técnicos e econômicos. Atualmente, a área destinada ao cultivo de dendê no Brasil não ultrapassa 300 mil hectares.

Segundo esse zoneamento, os estados do Acre, Mato Grosso, Rondônia e Roraima somam mais de 14 milhões de hectares aptos para o cultivo de dendê (entre as áreas preferenciais – sem necessidade de irrigação – e regulares – com irrigação obrigatória), significando cerca de 70% a mais que toda a área plantada com cana-de-açúcar no Brasil. No estado de Mato Grosso, a franca expansão da produção de etanol de milho – dependente de eucalipto para suprir a demanda energética do processo – poderia, eventualmente, ser abastecida pela biomassa residual da agroindústria de óleo de palma a ser obtida dos 200 mil hectares de área degradada com aptidão preferencial ou dos 6,8 milhões de hectares com aptidão regular; isto é, exigindo técnicas de irrigação para seu pleno desenvolvimento. Nessa condição, cada planta impõe um volume diário de água de 166 litros, em média, durante todo o período de estiagem, já que no período chuvoso da região as precipitações suprem as necessidades hídricas da cultura agrícola. Esse aspecto em particular é extremamente importante no que se refere ao estabelecimento de políticas públicas para o setor, pois demanda investimentos que devem ser analisados, uma vez que há exigência de recursos financeiros consideráveis e amplos volumes de água em tempos em que o país enfrenta crises hídricas.

Plantação de dendê no sul de Roraima. Foto: Oseias Martins/Rede Amazônica

Tendo como referência o contexto representado pelo setor dendeicultor, é perfeitamente possível o estabelecimento de comparações com a agroindústria da cana-de-açúcar.

Assim sendo, depreende-se que a cana-de-açúcar e a palma de óleo são culturas que expressam profunda similaridade no que se refere ao fornecimento de seus principais produtos (caldo de sacarose e óleo vegetal, respectivamente) e de resíduos, significando os dois sistemas agrícolas, em escala comercial, com os maiores valores de produção bioenergética de que se tem notícia (de um hectare de cana ou de dendê se extraem valores equivalentes de energia, algo em torno de 400000 MJ). O aspecto mais relevante relacionado a essa questão é que essas mesmas culturas se desenvolvem bastante bem em solo brasileiro, sendo que toda a experiência angariada ao longo de mais de cinco séculos produzindo cana-de-açúcar pode e deve ser empregada para a expansão da área cultivada com palma de óleo no Brasil. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que o dendê está para a Região Norte assim como a cana-de-açúcar está para o Centro-Sul do país, permitindo a projeção de inquestionável desenvolvimento para a porção setentrional brasileira.

Resta esclarecer que, de um modo geral, a agricultura familiar e a população rural sofrem impacto positivo no entorno dos empreendimentos agroindustriais com a palma de óleo, em decorrência da oferta de trabalho de qualidade e com salários superiores aos vigentes na região, da melhoria da segurança alimentar e do bem estar das famílias pelo aumento da renda domiciliar, e da consequente redução da pressão sobre os recursos naturais, notadamente na caça, pesca, extração ilegal de madeira, carvão, etc., pelo atendimento das necessidades mínimas da comunidade em função da massa salarial que passa a circular locorregionalmente, gerando diversas oportunidades sociais e econômicas.

Ainda é importante salientar que a comparação da ocupação das áreas degradadas atuais com práticas de décadas ou séculos atrás não apresenta base minimamente racional. As críticas que se fazem à cultura do dendê equivalem à implantação da cana-de-açúcar na Zona da Mata, no século XVI, ou do café na Mata Atlântica, no século XIX, o que é inconcebível atualmente. No entanto, é absolutamente necessário entender que o aproveitamento econômico sustentável de áreas degradadas pode ser ferramenta de proteção ambiental ao gerar oportunidades à comunidade local, que não sairá de lá e precisa de alternativas sustentáveis de renda. A simples proibição imponderada de qualquer atividade na Amazônia Legal, ignorando as necessidades econômicas da sua população, não apresenta fundamento contributivo.

Com base em tudo o que foi exposto, é plenamente dedutível que o Brasil se coloca com grande aptidão para o cultivo do dendê e para o fomento à sua correspondente agroindústria, com reais condições de vir a contribuir com uma aviação mais sustentável a partir da modificação da matriz energética das operações de voo brasileiras.


Edson Barcelos da Silva
Possui graduação em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Viçosa (1977), mestrado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (1984) e doutorado em Sciences Agronomiques (Amélioration des Plantes) – Université Montpellier 2 – Sciences et Techniques (1998). Atualmente é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Dendeicultura, atuando principalmente nos seguintes temas: dendê, Elaeis guineensis, Elaeis oleifera, melhoramento genético, diversidade genética, germoplasma e sistema de produção. Açaí: germoplasma e melhoramento genético.


Márcio Turra de Ávila
Possui graduação em Engenharia Mecânica Plena pela Universidade de São Paulo – Escola de Engenharia de São Carlos (1990), mestrado em Engenharia Térmica (Motores de Combustão Interna) pela Universidade de São Paulo – Escola de Engenharia de São Carlos (1994) e doutorado em Engenharia Térmica (Motores de Combustão Interna) pela Universidade de São Paulo – Escola de Engenharia de São Carlos (2003). É professor do Departamento de Engenharia Mecânica (DEMec) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Tem experiência na área de Engenharia Mecânica, com ênfase em Engenharia Térmica, atuando principalmente nos seguintes temas: bioenergia, biomassa, combustíveis renováveis (etanol, biodiesel, óleos vegetais) e motores de combustão interna.

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