O Sport Club Internacional coloca as cores do arco-íris na bandeira de escanteio do estádio Beira-Rio no dia do orgulho LGBTQI+ em 2021.
A expressão “Somos o País do Futebol” é frequentemente indicada como um privilégio nacional. Hipoteticamente, se isso é verdade, é incontestável que Somos o País do futebol masculino (Goellner, 2014; Moraes, 2018). É fundamental reconhecer o futebol como um aspecto importante da nossa identidade nacional (Ortiz, 2006). Além disso, a pesquisadora Simoni Guedes (2014) salienta que “o futebol tem se mostrado como um veículo quase insuperável para a produção e reprodução de discursos sobre a nação e o ‘povo brasileiro'”.
Este texto visa explorar três temas principais: i. o futebol como reduto da masculinidade; ii. o ato de torcer como um direito: torcidas e coletivos LGBTQIA+; iii. o futebol como uma forma de resistência. A partir do convite para contribuir com este texto durante o mês da visibilidade LGBTQIA+1Junho é reconhecido internacionalmente como o mês do Orgulho LGBTQIA+. Este período é dedicado a intensificar o diálogo sobre questões de gênero e sexualidade e a promover maior equidade social. Além disso, busca-se reduzir os preconceitos enfrentados por indivíduos LGBTQIA+, enfatizando a importância da aceitação e da inclusão em todos os aspectos da sociedade., buscaremos entender: se o futebol é para todos, qual é o nosso espaço?
Permitam-me apresentar-me: meu nome é Carolina Moraes. Em 2014, tive a chance de realizar um desejo antigo: trabalhar com futebol2Contratada pela ONG Ação Educativa, tive uma das experiências mais significativas de minha carreira profissional atuando na secretaria executiva do Mundial de Futebol de Rua. Evento de grande repercussão que possibilitou permanecer avançar no tema e no trabalho com as Redes: Brasileira de Futebol e Cultura e Paulista de Futebol de Rua.. Essa experiência me motivou a realizar uma pesquisa de mestrado3Para acessar: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/30758. e aprofundar-me no tema que tanto aprecio. Atualmente, dedico-me ao estudo de futebol, gênero e cultura. Este enfoque é particularmente relevante, pois, como mulher lésbica, participo ativamente de vários estádios de futebol através do projeto “Elas na Torcida”4Para acessar: https://elasnatorcida.com/..
Futebol : Um Reduto de Masculinidade e Virilidade
O futebol está intrinsecamente associado à masculinidade e virilidade, uma conexão que não ocorre por acaso (Bandeira, 2010). Desde cedo, os homens são introduzidos ao futebol como um ritual de sociabilidade, apoiado por família, amigos, escola e outros núcleos sociais. Este vínculo com o futebol amplifica uma representação de masculinidade e virilidade (Noronha, 2016; Guedes, 1982). Importante salientar que a proximidade ou o interesse por algo em nossas vidas frequentemente vem da possibilidade de experimentá-lo. Aqui, destaco que não me refiro apenas a jogar futebol, na prática, mas a todo o contexto social que envolve o esporte, especialmente o ato de torcer.
Franzini (2005) nos desafia com a pergunta: “Qual o lugar da mulher no país do futebol?” Ele argumenta que a inclusão das mulheres implica uma subversão da ordem vigente, desafiando a manutenção de uma “ordem” e “lógica” que as marginaliza. Tradicionalmente, o futebol é um espaço onde a força, garra e robustez são valorizadas, sendo esses campos e arquibancadas dominados por valores patriarcais, onde a masculinidade é exaltada quase como um ritual.
A manifestação da masculinidade no futebol ocorre em várias formas, desde a exaltação da força física até a repressão de comportamentos considerados femininos. Neste contexto, o futebol se torna um espaço seguro para os homens expressarem suas emoções — como choro, abraços e comemorações efusivas — que seriam percebidas como vulnerabilidades em outros ambientes. Esse cenário cria um ambiente onde qualquer desvio do comportamento esperado é ridicularizado e excluído, perpetuando os padrões de masculinidade.
A reflexão se estende ao papel das mulheres nos estádios, muitas das quais enfrentam preconceitos simplesmente por quererem participar. Essa resistência pode ser entendida como uma defesa de um espaço considerado exclusivamente masculino (Dunning; Maguirre, 1997). Assim, comportamentos geralmente reprimidos em outros contextos sociais, como palavrões e xingamentos, são tolerados no estádio, visto como um local de escape e relaxamento (Daólio, 1997). Porém, quando as mulheres tentam compartilhar esses espaços, surgem tensões e negociações. A participação feminina no futebol é frequentemente minimizada sob o preconceito de que elas não compreendem o jogo (Souza, 1996). Isso nos leva a refletir sobre a necessidade de desconstruir essas barreiras e criar práticas inclusivas que permitam a todas as pessoas, independentemente de gênero, experimentar e desfrutar do futebol.
Existir para Resistir: Torcidas e Coletivos LGBTQIAP+
Para a comunidade LGBTQIA+, o futebol representa um desafio. A cultura machista e homofóbica dos estádios faz com que muitos torcedores LGBTQIA+ se sintam excluídos e inseguros. Diversos coletivos enfrentam preconceitos e violência, mas continuam a lutar por um ambiente mais acolhedor e democrático nos estádios.
A luta desses grupos é fundamental para desconstruir os preconceitos e abrir espaço para uma maior diversidade. A resistência e a luta dos coletivos LGBTQIA+ não são apenas sobre aceitação, mas sobre redefinir o que significa “torcer” e quem pode ocupar esses espaços. A imagem a seguir mostra um crescimento significativo de torcidas:
Para a comunidade LGBTQIA+, o futebol é mais do que um desafio; é uma arena de luta significativa contra a cultura machista e homofóbica prevalente nos estádios. Tais coletivos enfrentam uma batalha constante contra preconceitos e violência, persistindo em seus esforços para criar um ambiente mais acolhedor e democrático nos estádios.
A resistência desses grupos é crucial não apenas para a aceitação, mas para redefinir os próprios conceitos “do que é torcer” e de pertencimento aos espaços tradicionalmente masculinos do futebol. Apesar do esporte ser dominado por uma cultura que celebra a virilidade, ele também apresenta contradições evidentes, como a permissão para expressões de vulnerabilidade emocional — abraços e comemorações intensas são comuns, por exemplo. No entanto, a inclusão plena de torcedores LGBTQIA+ e mulheres ainda enfrenta barreiras significativas.
O futebol não apenas reflete, mas também influencia a sociedade brasileira, repleta de desafios sociais como racismo, homofobia e misoginia. As mudanças nas práticas de torcer, impulsionadas pelos movimentos identitários que ganharam força nos últimos anos, mostram progressos notáveis. Estas transformações não são imposições de cima para baixo de organizações como clubes ou federações, mas iniciativas nascidas nas próprias arquibancadas, refletindo um compromisso crescente com a igualdade e a justiça social.
Esses avanços são um testemunho da capacidade do futebol de se reinventar como um espaço de inclusão e respeito mútuo. Embora haja resistência, as ações dos torcedores mostram que é possível caminhar em direção a um futebol livre de opressões, tornando-o verdadeiramente um esporte para todos.
Por fim, é essencial que a comunidade do futebol realmente se engaje nesta causa. É importante que clubes, dirigentes, confederações e jogadores atuem como suportes e exemplos nesta luta. A nossa sociedade se reflete no campo, e o campo, por sua vez, se reflete nas arquibancadas e vice-versa. Portanto, a transformação do futebol em um espaço acolhedor, democrático e diverso passa também pela compreensão de seu aspecto político.
Referências
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Carolina Farias Moraes
É mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia – UFBA, é especialista em sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e licenciada em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André. Desde 2014 trabalha com futebol, quando atuou no secretaria executiva do Mundial de Futebol de Rua. Atualmente, desenvolve trabalho voluntário com a Rede Paulista de Futebol de Rua.