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Periferia Brasileira de Letras
Fabrício Brito




O que é a Periferia Brasileira de Letras?

Em 2022, a Cooperação Social do Instituto Fiocruz fez uma chamada para o Brasil inteiro com o intuito de selecionar iniciativas culturais desenvolvidas por coletivos de periferia ligados à literatura. Essa seleção visou apoiar e fomentar esses coletivos, para que eles impulsionem projetos em suas respectivas comunidades. Assim surge a Periferia Brasileira de Letras – PBL. Felipe Eugênio e Mariane Martins, funcionários da Cooperação Social, foram os responsáveis por criar, desenvolver e elaborar o projeto. Eles pensaram na proposta, conseguiram aprová-la no conselho da Cooperação Social e, a partir daí, conquistaram o recurso. Esse recurso foi destinado à realização de um curso de formação política e à concessão de uma bolsa. Foram selecionados coletivos de vários estados do Brasil, como a Bahia, o Rio de Janeiro, São Paulo, o Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Brasília. Na Bahia, por exemplo, foram dois coletivos selecionados: um coletivo representando Salvador, o Grupo de Arte Popular A Pombagem e um coletivo que representa a cidade de Camaçari, o coletivo Slam das Mulé.

Foto: Vanessa Aragão

A Periferia Brasileira de Letras busca fornecer ferramentas para que os coletivos se agigantem e possam ampliar seus horizontes e ocupar cada vez mais lugares que, durante todo esse tempo, foram excludentes e não acolheram iniciativas culturais periféricas. É necessário ocupar cada vez mais lugares, tocar nossas ideias e fazer com que elas sejam traduzidas em proposições de políticas públicas para melhorar a sociedade como um todo e construir um Brasil que reflita os nossos anseios. Por um lado, a PBL é um projeto vinculado à Fiocruz, o que se traduz em uma base de apoio institucional muito importante porque abre portas para a conquista de horizontes inauditos. Por outro lado, a PBL é também uma rede e, nesse sentido, é um movimento popular com certa autonomia, que dialoga internamente e que busca soluções para além dessa institucionalidade da Fiocruz. Ou seja, a PBL é uma rede que não produz apenas o que está dentro do script institucional da Fiocruz, ela pensa por si mesma, mesmo que tenha esse vínculo com a Fiocruz.

Foto: Vanessa Aragão

A Fiocruz forneceu aos coletivos selecionados um curso de formação política voltado para instrumentalizar uma série de questões, como o apoio, o patrocínio e o fomento. O objetivo era refletir sobre financiamento, para além dos editais das fundações de cultura e do apoio dessas linhas de fomento mais tradicionais, e pensar em como conseguir de fato incidir em políticas públicas, elaborando proposições e emplacando essas propostas no âmbito institucional. O curso foi feito de forma virtual, pois são pessoas de várias regiões. A proposta da PBL é interligar as produções de territórios periféricos em diferentes regiões do Brasil. A troca entre coletivos de diferentes regiões foi muito boa para o aprendizado de todos.

Foram doze coletivos selecionados. O projeto objetivou contemplar os representantes com a bolsa para que eles repassassem tudo que estava acontecendo no curso para os demais integrantes de seus respectivos coletivos. Então, é uma proposta de multiplicação do conhecimento, de passar adiante as conversas e as experiências envolvidas em todo esse processo promovido pela PBL. Com o passar do tempo e através das trocas e interações, a PBL começou a ganhar uma dimensão de um movimento. Eis os coletivos que fazem parte da PBL:

O Baixada Literária é um coletivo formado por 20 bibliotecas comunitárias. É um Coletivo conduzido exclusivamente por mulheres e atua para contribuir com a democratização do acesso ao livro, à leitura e à literatura como Direito Humano em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro.

A Biblioteca Comunitária Caranguejo Tabaiares está localizada em Tabaiares, uma comunidade periférica do Recife, Pernambudo. A Biblioteca é uma instituição que promove o incentivo e a democratização do acesso à leitura.

A Biblioteca Comunitária Girassol está localizada no Sarandi, zona norte de Porto Alegre. O Girassol é um espaço cultural que atende as Vilas Elizabeth, Respeito, União e Nova Brasília. A Biblioteca tem um acervo de 1350 livros e realiza a formação de leitores por intermédio do empréstimo de livros.

A Rede de Bibliotecas Comunitárias do Rio Grande do Sul atua aproximando causas e projetos em prol da democratização do acesso ao livro e à cultura. A Rede acredita que a leitura é um direito humano e o acesso aos livros garante a busca por outros direitos fundamentais.

O Coletivoz Sarau da Periferia é um movimento cultural que promove encontros artísticos e poéticos no contexto da literatura marginal e periférica de Minas Gerais e brasileira. Seu grito de guerra é “À luta, à voz”. O Coletivoz incentiva a leitura literária como forma de ocupar espaos e questionar as elites hegemônicas das produções culturais e educacionais em Belo Horizonte, Minas Gerais.

O Ecomuseu de Manguinhos, localizado na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, é, junto com a Fiocruz, um dos idealizadores da Periferia Brasileira de Letras. O Ecomuseu é um museu sem paredes e produz debates, documentários, exposições fotográficas, festivais, rádio livre e mesas de debate.

A Kitembo é uma editora fundada em 2018 e cuja proposta é publicar obras com conceitos positivo das culturas negras e afrobrasileiras. Ela publica ficção científica, fantasia e afrofuturismo. Atualmente, a Kitembo já tem 11 obras publicadas.

O Coletivo Papo Reto está localizado em Planaltina, Distrito Federal. Seu objetivo é constituir um corpo de pessoas comprometidas com a promoção de valores e do protagonismo no ambiente escolar. O Coletivo é formado majoritariamente por professores da rede pública do Distrito Federal e ele visa amplificar os processos criativos por meio da literatura e da escrita.

O Periferia que Lê é um projeto social baseado em ações voluntários e cujo objetivo é incentivar a leitura e as práticas literárias. O Periferia atua no Grande Bom Jardim, uma das maiores periferias de Fortaleza. Ele conecta a comunidade aos artistas locais. Suas principais atividades são as geladeiras literárias nas ruas, ações de leitura, contação de histórias e ajuntamentos com escritores locais.

O Sarau Poesia da Esquina é um movimento cultural localizado na Cidade de Deus, favela na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O Sarau realiza eventos públicos e oficinas literárias voltados sobretudo para o público infanto-juvenil e feminino. Além disso, o Sarau se articula para a publicação de livros de autores afro-indígenas e provenientes das favelas.

A Iniciativa Cultural Poetas Vivos é uma iniciativa afrocentrada localizada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Seu objetivo é fomentar a arte e a educação negra e periférica. Ele atua diretamente nas escolas e universidades do Rio Grande do Sul e desenvolve oficinas, palestras, shows musicais e Slams.

O grupo de Arte Popular A Pombagem atua na cidade de Salvador, Bahia. A Pombagem atua com apresentação de teatro de rua em praças e monumentos da cidade. Com sua dramaturgia construída coletivamente e inspirada na poesia popular, A Pombagem leva o teatro e a literatura para as periferias de Salvador. Atualmente, o grupo trabalha com uma pesquisa cênica em torno da “Festa do Lixo”, ocorrida no bairro de Fazenda Grande do Retiro.

O Slam das Muié é um campeonato de poesia falada sediado em Camaçari, Bahia. É o primeiro campeonato desse tipo no município e o primeito Slam da Bahia ocorrido fora de Salvador. O Slam das Muié oferece performances poéticas, palestras e oficinas, além de promover o incentivo à leitura e à produção literária.

Os pilares de atuação da PBL: promoção da literatura e da saúde

Durante o curso, no período inicial do projeto PBL, discutiu-se e debateu-se sobre a atuação da Fiocruz. É importante salientar que a Fiocruz foi uma instituição importantíssima no contexto da pandemia. Ela fez frente à má gestão bolsonarista com uma série de ações ligadas às vacinas e à conscientização sobre importância da vacinação. A Fiocruz enfrentou a pandemia e salvou vidas. De modo resumido, a Fiocruz contribuiu para a memória de resistência no Brasil frente ao bolsonarismo, na questão da pandemia, operando com uma noção de saúde bastante ampliada e em consonância com a noção discutida e propalada pela Organização Mundial da Saúde. A OMS diz que saúde não é apenas ausência de doença. A saúde, na verdade, é um completo estado de bem-estar social, físico e mental. Ela está ligada, por exemplo, à cidadania, à participação social, à qualidade de vida, à empregabilidade e à justiça social. Então, nós seremos cidadãos quando houver justiça social, quando houver participação social, quando houver política pública. Ou seja, quanto maior o acesso a empregabilidade, participação social, cidadania e qualidade de vida, mais saúde nós teremos.

Foto: Vanessa Aragão

O entendimento de saúde da OMS e da Fiocruz abarca pontos que são fundamentais para que nossos territórios deixem de ser territórios vulnerabilizados e passem a ser territórios saudáveis. Esta é a proposta da Periferia Brasileira de Letras: colocar em prática essa noção ampliada de saúde e potencializar os nossos trabalhos literários. Então, de um lado, há a questão da saúde e, do outro lado, há a ideia de literatura. A literatura com a qual trabalhamos, vale dizer, não se reduz ao texto, à prosa, à poesia, ao poema ou a qualquer outra modalidade literária caligrafada no texto. Ela vai além do texto positivado no papel e entra no espaço imaterial das ruas, no espaço público das ruas. Em que sentido? É a literatura que ganha substância e sentido na performance, uma literatura que se dá por meio da oralidade e do trabalho de corpo nas ruas, do trabalho de teatro popular, do trabalho de teatro de rua.

Foto: Vanessa Aragão

No caso específico dos segmentos e dos coletivos que atuam com literatura, leitura, escrita, livros e bibliotecas, há uma coisa que é bem interessante nessa experiência de conversa. Um ponto bem presente em todas essas realidades periféricas é a violência institucional. Essa é uma violação que vem de cima e acaba impedindo o pleno exercício do fazer literário em nossas comunidades, em nossos territórios. Ou seja, o trabalho desenvolvido, mesmo sendo um trabalho de cultura, mesmo sendo um trabalho de arte e educação, é alvo de uma série de violações institucionais. No passado, a capoeira e o samba também foram vítimas de violência institucional. São expressões artísticas e culturais que sofrem, porque se tornam um alvo dos mais diversos aparelhos coercitivos de opressão do Estado e da sociedade civil conservadora.

Foto: Vanessa Aragão

A violência é a negação do que somos enquanto arte, cultura e pensamento. A violência se dá seja pela ausência de política pública, seja pela presença de uma política pública que não nos favorece, mas que, ao contrário, nos violenta e é maléfica conosco. Há então dois afazeres: fazer com que se crie um conjunto de proposições que sejam favoráveis a políticas públicas de literatura, de livros, de leitura, de escrita e de biblioteca; e é preciso fazer o combate necessário quando o que existe é uma política de morte, uma política que acaba por anular ou por tentar pelo menos anular as nossas expressões de vida, porque acaba por anular a nossa existência.

A Periferia Brasileira de Letras tem a perspectiva de articular políticas públicas saudáveis, o que pressupõe que existem políticas públicas diversas. A opção que a PBL faz é se concentrar em políticas que gerem o bem-estar social. As políticas públicas saudáveis evocadas pela Periferia Brasileira de Letras são justamente aquelas que farão com que a gente consiga se colocar no mundo sem esses empecilhos, sem essas dificuldades, sem essas violências. Uma política pública propositiva saudável passa necessariamente por lutar para que haja editais, programas e projetos que cheguem de fato na ponta, ou seja, na periferia e nos territórios vulnerabilizados. Uma política pública defensiva saudável é aquela que vai se contrapor às políticas públicas contrárias ou inimigas da arte, da cultura, do pensamento periférico.

Primeiro encontro da Periferia Brasileira de Letras

O Primeiro Encontro Nacional da Periferia Brasileira de Letras aconteceu em Salvador, entre os dias 10 e 12 de abril de 2024. O encontro foi precedido por uma série de reuniões de organização, muitas dessas ocorridas em Brasília. A Secretaria de Formação, Livro e Leitura, do Ministério da Cultura, apoiou financeiramente o encontro. Além disso, a Secretaria de Cultura da Bahia, a Fundação Cultural do Estado da Bahia, a Fundação Pedro Calmon, entre outras, também apoiaram o evento. Durante a realização do Encontro Nacional da Periferia Brasileira de Letras, inserimos na programação do encontro uma audiência pública, que aconteceu na Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. A audiência foi aprovada com a anuência do deputado estadual Robinson Almeida. Nela, discutimos uma série de demandas oriundas dessas comunidades em que atuam os coletivos da PBL. Isso foi super importante no encontro e eu cumpri um papel decisivo nisso.

Foto: Vanessa Aragão

As pessoas gostaram muito quando foi dada a proposta de o encontro ser em Salvador. Primeiro, Salvador é uma cidade bonita e tem toda essa questão de ser muito bom estar aqui. Salvador possibilita também uma reconexão com nossa ancestralidade afroindígena, que é importante para continuarmos a luta por uma sociedade mais justa. Além disso, há de ser simbólico esse encontro aqui por conta do peso que a Bahia e Salvador tiveram nas eleições e diante desse processo político difícil pelo qual passamos diante de um governo inimigo da vida e das existências. A Bahia e o Nordeste como um todo cumpriram um papel decisivo para mudar esse paradigma e nos permitiram voltar a respirar, a retomar o fôlego e poder ter um horizonte de democracia, mais uma vez. Não é que as coisas hoje estejam as melhores do mundo, mas sabemos que essa eleição poderia ter nos colocado em uma situação pior. As participações do Nordeste, da Bahia e de Salvador foram fundamentais para o presidente Lula mais uma vez ser eleito. Uma outra coisa que é legal de falar é que Salvador também vibrou com essa quantidade expressiva de pessoas, de coletivos, de realidades e de experiências que o encontro propiciou. O Primeiro Encontro Nacional trouxe essa gente toda para Salvador e tivemos acesso a todas essas narrativas e histórias de vida, cada uma mais incrível que a outra. E nós crescemos muito com tudo isso. Também é importante mencionar que Salvador e a Bahia foram fundamentais no processo de independência do Brasil. Logo a importância de falarmos do 2 de julho e do trabalho realizado por A Pombagem na Festa do Lixo.

O 2 de julho e A Pombagem

O 2 de Julho é a data máxima da Bahia, com os festejos de comemoração e celebração da Independência do Brasil1O 2 de Julho é a data em que é comemorada a Independência da Bahia, também conhecida como Independência do Brasil na Bahia. Ao contrário do costumeiramente divulgado, o processo de independência do Brasil não foi pacífico. O mito de uma independência pacífica serve como forma de apagamento das dissidências e de controle social. A Independência foi proclamada em 1822, mas, na Bahia, a guerra da independência apenas termina em 2 de julho de 1823. Houveram conflitos armados também na Cisplatina, no Maranhão, no Pará e no Piauí. Nota da Redação. A Pombagem, especificamente, tem um trabalho legal que articula e combina isso tudo. De um lado, nós somos poetas, somos um grupo de literatura e de teatro de rua pautado em poesia. Nosso trabalho, contudo, não se encerra nesse segmento específico da literatura, nessa linguagem literária. Temos um trabalho que combina literatura, teatro de rua e museologia. Isso é uma coisa fascinante. Se observarmos a Antiguidade ocidental, os poetas cantadores, também chamados de aedos, eram poetas que, ao cantar suas poesias, evocavam memórias. E o museu é um lugar de memória. Então, em nossas apresentações fazemos a combinação entre história, patrimônio e memória quando apresentamos nossos espetáculos.

Foto: Vanessa Aragão

O nosso espetáculo se intitula “O museu é a rua” e traz justamente a ideia de que a rua é uma espécie de sala de aula a céu aberto em que as histórias são apresentadas, discutidas e debatidas. O 2 de Julho se apresenta aqui em Salvador como uma performance espetacular, porque é uma manifestação cultural que se dá por meio de um cortejo que começa no Largo da Lapinha e vai até o Campo Grande, aos pés do caboclo, que já foi, inclusive, o maior monumento público da América Latina.

O cortejo do 2 de Julho inspira muito o Grupo de Arte Popular a Pombagem, porque é justamente um cortejo que encena nas ruas o processo de Independência da Bahia, em 1822-1823. É um cortejo performático. É uma performance espetacular que encena e traz à tona essa memória da libertação do povo baiano frente aos domínios lusitanos. Nós nos inspiramos nisso e, nos nossos espetáculos de teatro e poesia, também trazemos as mais diversas memórias, que são memórias de luta e resistência. Uma delas é inclusive é o próprio 2 de Julho. Na verdade, o 2 de Julho é a memória que mais evocamos em nossos espetáculos. Especificamente, no ano de 2024, nós faremos uma ação no espaço que funciona como nossa sede, na Fazenda Grande do Retiro. A nossa sede é também um museu, trazendo toda essa relação que existe entre literatura, teatro e memória.

Foto: Vanessa Aragão

Nesse sentido, nós reinauguramos nossa sede no 2 de Julho com uma exposição que se chama “Viva a Festa do Lixo”. A “Festa do Lixo” foi uma festa que hoje não existe mais, mas que existiu entre 1975 e 1985 e acontecia no 2 de Julho. Existe na cidade de Salvador um circuito oficial do 2 de Julho, que se inicia no Largo da Lapinha e vai até o Campo Grande, mas também existem circuitos periféricos e marginais que estão fora desse trecho oficial. A Fazenda Grande do Retiro, que é o bairro de A Pombagem, tinha o seu próprio 2 de Julho, a “Festa do Lixo”, que surgiu porque os moradores locais estavam cansados e muito insatisfeitos com a gestão pública, pois quase não havia coleta de lixo no bairro. Então a grande discussão do bairro era a coleta de lixo, o saneamento básico e o direito a um ambiente saudável – saudável, saúde, Fiocruz. Tudo isso se interliga.

É interessante que, por conta dessa negligência da gestão pública, os moradores decidiram, em um gesto de independência, no 2 de Julho, que é a data da Independência da Bahia, tirar de suas casas o lixo e levar esse lixo para a frente da Imprensa Gráfica da Bahia. Ora, a Imprensa Gráfica da Bahia, a imprensa oficial do Estado, fica no bairro da Fazenda Grande do Retiro, um bairro periférico, mas essa instituição não dá uma contrapartida e não tem responsabilidade em relação ao seu entorno, em relação à comunidade. Então, é como se ela estivesse numa bolha desgarrada do território. No 2 de Julho de 1975, os moradores locais fizeram o movimento popular de levar o lixo de suas casas e colocar ali na frente da Imprensa Oficial do Estado. Essa ação travou não só o bairro, mas toda a cidade, porque é dali que sai o diário oficial.

Foto: Vanessa Aragão

Imagine o diário oficial impedido de circular, impedido de ser distribuído pela Bahia toda, por causa dessa manifestação local do bairro de Fazenda Grande do Retiro. Isso aconteceu e chamou a atenção de vários jornais, políticos, artistas e intelectuais. Na “Festa do Lixo”, a reivindicação acontecia por intermédio da literatura de cordel. Os moradores locais iam cantando e declamando seus versos de cordel durante a caminhada, que acontecia em forma de cortejo de um lugar para o outro, de suas casas até a Imprensa Oficial. Eles carregavam cartazes e faixas, demonstrando todas as características de um protesto, mas trazendo também muita arte e muita música. Havia, por exemplo, o cordel, o teatro de rua, o samba junino presentes nesse cortejo, nessa festa. Ou seja, era uma reivindicação política por meio da arte que ocorria de maneira cantada, dançada e recitada. E isso foi virando uma tradição. Aconteceu no 2 de Julho de 75, mas se repetiu nos posteriores 2 de Julho.

Foto: Vanessa Aragão

A “Festa do Lixo” é um 2 de Julho popular, marginal, periférico e que está num circuito alternativo. Então, reinauguramos o espaço de a Pombagem no 2 de Julho com uma exposição sobre a “Festa do Lixo” para a juventude do bairro e as pessoas de modo geral não perderem essa ligação com a memória do bairro, com a memória local de luta a favor da coleta de lixo, de luta em prol do direito a um ambiente saudável, do saneamento básico, da justiça, da educação, da cultura e da redemocratização do país. É uma disputa do imaginário, um tensionamento de lugar, uma disputa de narrativa e uma disputa também dos imaginários da cidade, mecanismos que sempre estiveram presentes em nosso coletivo. Um território saudável é um território em que as pessoas se respeitam, não há discriminação, não há racismo e não há nenhum tipo de opressão social, de dominação política ou de exploração econômica. É contra tudo isso que a nossa literatura luta, contra todas essas violências. Essa é a nossa literatura, o nosso teatro de rua e a nossa participação no mundo. Assim, ela está em consonância com a noção ampliada de saúde que a Fiocruz opera tão bem e que a PBL opera tão bem.

Foto: Vanessa Aragão

Fabricio Brito
É poeta e filósofo. Mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA, é o idealizador do Coletivo Arte Marginal Salvador e do Grupo de Arte Popular A Pombagem. Fabrício esteve, entre 2015 e 2020, como coordenador ou organizador de uma série de movimentos e eventos relacionados à arte e sua instalação no espaço público baiano: Movimento de Teatro de Rua da Bahia; XXII Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua; I, II e III Encontros de Filosofia e Teatro de Rua da Bahia; Mostra Nordestina de Teatro de Rua; Mostra de Artes Cênicas do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA). É fundador da Casa do Museu Popular da Bahia, é também membro do Coletivo de Políticas Culturais do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) da UFBA. É membro e articulador da Rede Periferia Brasileira de Letras (PBL).

Notas

  • 1
    O 2 de Julho é a data em que é comemorada a Independência da Bahia, também conhecida como Independência do Brasil na Bahia. Ao contrário do costumeiramente divulgado, o processo de independência do Brasil não foi pacífico. O mito de uma independência pacífica serve como forma de apagamento das dissidências e de controle social. A Independência foi proclamada em 1822, mas, na Bahia, a guerra da independência apenas termina em 2 de julho de 1823. Houveram conflitos armados também na Cisplatina, no Maranhão, no Pará e no Piauí. Nota da Redação

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