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Em busca de linhas na natureza
Tim Ingold

Traçado de lesmas. Fonte: Tim Ingold

Sobre lesmas e tempestades

De manhã, nas calçadas do lado de fora de nossa casa, especialmente depois da chuva, frequentemente encontro um intrincado traçado de trilhas entrelaçadas, como se alguém tivesse rabiscado sobre as calçadas com uma caneta de gosma. Na verdade, os traçados são feitos por lesmas, que saem à noite para fazer suas incursões na vegetação, apenas para desaparecer novamente ao amanhecer nas misteriosas profundezas de onde vieram. No tempo frio e úmido, as lesmas podem enfrentar a luz do dia sem medo de desidratação e podemos observá-las se mover. Colocando a parte traseira no chão, elas empurram a parte dianteira contra essa resistência posterior. Depois, colocando então a parte dianteira no chão, puxam a parte traseira para cima, repetindo o ciclo mais uma vez em graciosa câmera lenta. Esse ciclo rítmico de empurrar e puxar me parece fundamental para a vida da maioria das criaturas animadas, se não de todas criaturas animadas, inclusive de nós mesmos, seres humanos.

Assim como a lesma, devemos nos mover para podermos avançar. Inspiramos e expiramos, colocamos um pé na frente do outro. Assim, nosso movimento não é, como poderíamos supor, o deslocamento de um ser já completo de um ponto a outro, como o “movimento” de uma peça de xadrez em um jogo ou de soldados de brinquedo em um campo de batalha imaginário. Se assim fosse, os caminhos poderiam então ser descritos como órbitas ou trajetórias, calculáveis a partir de condições iniciais e alteráveis somente por meio de intervenção externa. Do mesmo modo, as pausas ou os momentos de descanso seriam registrados como estados de equilíbrio, determinados pelo equilíbrio de forças externas. Tire a mão de uma peça de xadrez ou de um soldado de brinquedo e ele poderá permanecer ali indefinidamente. Mas nós não podemos. Como seres vivos e que respiram, achamos muito difícil ficar completamente parados. É como prender a respiração, criando uma tensão interna que se torna cada vez mais intensa quanto mais tempo dura. E nossa sensação é a de que, quando nos movemos, “levamos o corpo adiante” ao longo do caminho de nosso próprio movimento: um caminho, isto é, o caminho do crescimento e da transformação.

Considere os movimentos do furacão ou da tempestade. Podemos dizer que eles atacam primeiro aqui e depois ali e o meteorologista pode tentar delinear seu curso. Mas a tempestade não é uma entidade coerente e autônoma que se desloca de um ponto a outro do céu. Em vez disso, ela é um movimento em si, um “redemoinho” que cria um ponto de quietude em seu olho. Ao aumentar os ventos em sua frente de avanço, ele se desenrola em seu recuo. Mas será que isso é diferente com a lesma? Em seu livro Evolução criadora, de 1911, o filósofo Henri Bergson argumentou que todo organismo é lançado como um turbilhão na corrente da vida. É como se, em seu desenvolvimento, ele descrevesse “uma espécie de círculo”[mfn]Henri Bergson, 2010. A evolução criadora. Traduzido por Adolfo Casais Monteiro. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp.[/mfn]. Dessa forma, o ser vivo que gira em espiral sobre si mesmo apresenta apenas a aparência de um objeto limitado externamente. No entanto, quando percebemos que sua forma externa é apenas o invólucro de um movimento, a tempestade e a lesma começam a parecer notavelmente semelhantes. Da mesma forma que a tempestade venta e se retrai, deixando um rastro – de destruição, se for severa – pela superfície da terra, a lesma alternadamente empurra para frente e puxa para cima, deixando seus rastros de gosma no chão. Elas podem operar em escalas muito diferentes, mas o princípio é o mesmo.

As malhas

O belo rastro das trilhas de gosma nas calçadas constitui o que chamo de malha[mfn]Tim Ingold, 2015. Estar vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Traduzido por Fábio Creder. 1ª edição. Editora Vozes.[/mfn]. Com isso, quero dizer um emaranhado de linhas interligadas. Essas linhas podem se enrolar ou girar umas em torno das outras, ou se intercalar. No entanto, o mais importante é que elas não se conectam. É isso que distingue a malha da rede. As linhas da rede são conectores: cada uma é dada como a relação entre pontos, independente e anterior a qualquer movimento de um ponto para o outro. Portanto, essas linhas não têm temporalidade: a rede é uma construção puramente espacial. As linhas da malha, por outro lado, são de movimento ou crescimento. Elas são as linhas ao longo das quais as coisas se transformam. Todo ser animado, à medida que percorre seu caminho através e entre os caminhos de todos os outros, deve forçosamente improvisar uma passagem e, ao fazê-lo, estabelece outra linha. Nós podemos fazer o mesmo. À distância, a malha pode parecer uma superfície emaranhada. De perto, no entanto, como se nossos olhos estivessem próximos às unhas das mãos ou dos pés, nos vemos enredados em um “sistema de simpatias e anseios, sem nenhum ponto, apenas linhas, todas curvas, entrando e saindo de estações de nós que consistem em todos os tipos de arte têxtil: tranças, nós de todos os tipos, laços, cruzamentos e entrelaçamentos”[mfn]Lars Spuybroek, The Sympathy of Things: Ruskin and the Ecology of Design. Rotterdam: V2_Publishing, 2011, page 321.[/mfn].

Essas palavras foram extraídas do notável novo livro do teórico em arquitetura e design Lars Spuybroek. Como ele sugere aqui, onde a rede tem nódulos, a malha tem nós. Os nós são lugares em que muitas linhas de transformação estão firmemente ligadas entre si. No entanto, cada linha se sobrepõe ao nó em que está amarrada. Sua extremidade está sempre solta, em algum lugar além do nó, onde está tateando em busca de um emaranhado com outras linhas, em outros nós. O que é a vida, afinal, se não uma proliferação de pontas soltas? Ela só pode ser levada adiante em um mundo que não está totalmente unido. Assim, a própria continuidade da vida – sua sustentabilidade, no jargão atual – depende do fato de que nada se encaixa perfeitamente. O mundo não é montado como um quebra-cabeça em que cada ” bloco de construção” se encaixa perfeitamente no lugar dentro de uma totalidade já preestabelecida. Sem dúvida, nos dias de hoje, sempre nos dizem que o mundo em que vivemos é construído a partir de blocos: assim, os biólogos falam dos blocos de construção dos organismos celulares, os psicólogos dos blocos de construção do pensamento, os físicos dos blocos de construção do próprio universo. Mas um mundo construído a partir de blocos perfeitamente encaixados não poderia abrigar vida alguma. A realidade é mais parecida com uma colcha de retalhos em que elementos mal ajustados são costurados ao longo de bordas irregulares para formar uma cobertura que é sempre provisória, pois os elementos podem ser adicionados ou retirados a qualquer momento.

O filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari abordam a história da colcha de retalhos para desenvolver sua ideia de uma topologia que é mais lisa do que estriada, mostrando como os primeiros tecidos bordados deram lugar a uma técnica de trabalho com retalhos, em que restos de material ou fragmentos recuperados de roupas desgastadas eram costurados. Com suas interseções regulares e retilíneas da trama e do urdume[mfn]Trama é o nome dos fios que ficam na horizontal do tecido. Ordume é o nome dado aos fios na vertical do tecido. Nota da tradução.[/mfn], o tecido – para Deleuze e Guattari – é o epítome do estriado. Mas na colcha de retalhos, “uma coleção amorfa de peças justapostas que podem ser unidas de um número infinito de maneiras”, o princípio da estriação é subordinado ao princípio do liso. No entanto, nenhum material exemplifica melhor o princípio do liso do que o feltro. Composto por uma mistura de fibras de lã emaranhadas, sem direção consistente e estendendo-se sem limites em todas as direções, o feltro – dizem Deleuze e Guattari – é tudo o que o tecido não é. É um anti-tecido[mfn]Gilles Deleuze e Félix Guattari, 2011. Mil platôs – vol. 1: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2ª edição. Editora 34.[/mfn]. Será que o mesmo não pode ser dito sobre a malha? Será que os rastros deixados pelas lesmas em suas andanças noturnas não são comparáveis às fibras do feltro, que, por sua vez, parecem lembrar os rastros deixados no chão, em suas andanças pastorais, pelas próprias ovelhas em cujas costas a lã cresceu? De fato, é nisso que Deleuze e Guattari querem nos fazer acreditar. No entanto, as linhas constitutivas do liso, dizem eles, são abstratas, distintas das linhas geométricas ou orgânicas. Para entender o que eles querem dizer, precisamos examinar esses três tipos de linha um pouco mais de perto.

Aiguille de Blaitière, de John Ruskin. Fonte: Wikipedia

Linhas geométricas e linhas orgânicas

Começamos com a linha da geometria – a linha euclidiana – definida como a conexão entre dois pontos. Como seu nome indica, a linha geométrica tem sua origem nas práticas com as quais os topógrafos do antigo Egito mediam a terra após cada enchente anual do Nilo. Eles esticavam um cordão entre estacas fincadas no chão. Daí, como nos lembra o filósofo Michel Serres, vem a noção legal de contrato: um “cordão que nos atrai ou nos une”[mfn]Michel Serres, 1994. O Contrato Natural. 1ª edição. Instituto Piaget.[/mfn]. Esticados, o cordão, a corda ou o fio, no entanto, mantêm uma certa tactilidade: você pode sentir a tensão; puxe-os e eles vibrarão. Como disse a artista têxtil Victoria Mitchell, o fio esticado é uma espécie de “dobradiça” entre o sentimento e a forma, entre a cinesia corporal e a razão especulativa[mfn]Victoria Mitchell, ‘Drawing threads from sight to site’, Textile 4(3): 340-361, 2006, page 345.[/mfn]. Mas, à medida que a geometria foi atraída para a arte e a ciência da óptica e à medida que o cordão do medidor de terra foi unido aos instrumentos ópticos do marinheiro, o fio esticado, antes tangível, transformou-se em seu espectro intangível e insensível, o raio de luz.

Durante muito tempo, tanto o fio como o raio de luz, a linha material e o seu duplo espectral, apareceram juntos, como uma coisa e sua sombra. Estabelecendo os princípios da perspectiva no alvorecer do Renascimento, em sua obra Da pintura, Leon Battista Alberti pensou nas linhas da visão como fios de um véu esticado entre o olho e a coisa vista, tão finos que não podiam ser divididos[mfn]Leon Battista Alberti, 2015. Da pintura. 4ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp.[/mfn]. Mas como um vetor de projeção, a linha geométrica foi eventualmente despojada de todos os resquícios de tateabilidade. Ao fazer conexões e estabelecer limites, essa linha está na raiz da lei, da razão e do pensamento analítico. É lacônica e sempre direta. As linhas orgânicas, por outro lado, traçam as silhuetas ou as bordas das coisas como se estivessem contidas nelas: são contornos. Elas também são separadoras, dividindo as superfícies nas quais são desenhadas entre o que está de um lado da linha e o que está do outro: nesse sentido, são análogas aos cortes.

Tais linhas, no entanto, não têm presença sobre ou nas coisas em si. Eu poderia desenhar um ovo traçando um contorno oval, o tronco de uma árvore como duas linhas paralelas ou o céu como um arco, mas procuraria em vão suas contrapartes no ovo, no tronco ou nos céus. Eu poderia tentar desenhar uma nuvem usando linhas onduladas ou finas, mas não há tais linhas espreitando na própria nuvem, esperando para iludir um avião desavisado. Eu poderia querer desenhar uma maçã ou a fronteira entre um prado e um campo arado, mas, como observa o filósofo Maurice Merleau-Ponty em seu ensaio O Olho e o Espírito, eu estaria iludido ao pensar que o contorno externo da maçã ou o limite do campo estão realmente presentes, “de tal forma que, guiado por pontos retirados do mundo real, o lápis ou o pincel teriam apenas que passar por cima deles”[mfn]Maurice Merleau-Ponty, 2013. O Olho e o Espírito. Coleção Portátil 24. 1ª edição. Cosac & Naify.[/mfn]. Ora, se olharmos bem, não há linhas para serem vistas.

Esta e outras observações similares levaram inúmeras autoridades a concluir que não há nenhuma linha na natureza e, portanto, que as linhas do desenho têm apenas uma conexão simbólica com seus referentes, com base no artifício ou na convenção, em vez da experiência fenomenológica. O filósofo Patrick Maynard catalogou uma série de declarações nesse sentido[mfn]Patrick Maynard, Drawing Distinctions: The Varieties of Graphic Expression. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2005, page 99.[/mfn]. “Linhas? Não vejo linhas!”, o grande Goya, ele mesmo um desenhista consumado, teria exclamado. Elas são imposições da mente sobre a realidade, ele pensou, e não estão presentes no que se vê. E em sua recente e magistral pesquisa de histórias e teorias da prática do desenho, a artista e curadora Deanna Petherbridge concorda com a colocação. “A linha em si”, ela enfatiza, “não existe no mundo observável. A linha é uma convenção representacional…”[mfn]Deanna Petherbridge, The Primacy of Drawing: Histories and Theories of Practice, New Haven, CT: Yale University Press, 2010, page 90.[/mfn]

A linha abstrata

Em suma, se a linha geométrica é a marca da razão, então o contorno se parece mais com uma construção cultural: a expressão visível de um processo pelo qual a mente, de acordo com um paradigma antropológico bem conhecido, divide mais ou menos arbitrariamente o continuum da natureza em objetos discretos que podem ser identificados e nomeados. As linhas dos conhecidos quebra-cabeças “ligue os pontos”, concebidos para crianças, conseguem ser geométricas e orgânicas ao mesmo tempo, conectando pontos e delineando objetos. Da mesma forma que as crianças juntam os pontos, os topógrafos fazem mapas, delineando características como margens de rios e costas. Mas as linhas da malha – como as trilhas de gosma das lesmas ou os caminhos das tempestades – não são contornos, nem conexões ponto a ponto. Aos meus olhos, no entanto, elas parecem totalmente reais e, sem dúvida, naturais. Se permitimos que o traço de um lápis de grafite no papel seja uma linha, então por que não podemos permitir também o rastro de uma lesma em uma calçada? Certamente, existem linhas no mundo observável, pois elas estão inequivocamente . Em que sentido concebível, então, pode-se dizer que elas são abstratas?

Para encontrar uma resposta, podemos nos voltar para os escritos do grande pioneiro da arte abstrata moderna, Wassily Kandinsky. No ensaio Do Espiritual na Arte, Kandinsky insiste que a abstração não significa esvaziar o conteúdo de uma obra para deixar apenas um contorno vazio ou uma forma geométrica pura. Pelo contrário, significa remover todos os elementos figurativos que se referem apenas às exterioridades das coisas, ou seja, às suas aparências externas, a fim de revelar o que ele chamou de “necessidade interior”[mfn]Wassily Kandinsky, 2015. Do Espiritual na Arte. E na Pintura em Particular. Traduzido por Philippe Sers. Martins Fontes – selo Martins.[/mfn]. Com isso ele se referia à força vital que as anima e que, como também nos anima, permite que nos unamos a elas e experimentemos seus afetos e pulsações a partir de seu interior.

Em um esboço encantador escrito em 1935, Kandinsky[mfn]Wassily Kandinsky, 2015. Do Espiritual na Arte. E na Pintura em Particular. Traduzido por Philippe Sers. Martins Fontes – selo Martins.[/mfn] nos pede para considerar as semelhanças e as diferenças entre uma linha e um peixe. Eles de fato têm certas coisas em comum: ambos são animados por forças internas que encontram expressão na qualidade linear do movimento. Um peixe avançando pela água poderia ser uma linha. Ainda assim, o peixe continua sendo uma criatura do mundo externo – um mundo de organismos e seus ambientes – e depende desse mundo para existir. A linha, por outro lado, não depende. A linha não é nem mais nem menos do que a própria vida. Isso, diz Kandinsky, é o motivo pelo qual ele prefere a linha ao peixe, pelo menos em sua pintura. E é por isso também que Deleuze e Guattari, seguindo Kandinsky, podem dizer que é abstrata ‘uma linha que não delimita nada, que não descreve nenhum contorno, que não vai mais de um ponto a outro, mas passa entre pontos, … que não tem exterior ou interior, forma ou fundo, começo ou fim e que está viva como uma variação contínua'[mfn]Gilles Deleuze e Félix Guattari, 2011. Mil platôs – vol. 1: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2ª edição. Editora 34.[/mfn].

Tal é a linha da correnteza do rio ou da alta e da baixa da maré, que é diferente da margem do rio ou da linha costeira traçada na carta do cartógrafo. Em palavras atribuídas a Leonardo da Vinci, Merleau-Ponty escreve que o segredo de desenhar qualquer coisa é descobrir “a maneira particular pela qual uma certa linha flexível, que é, por assim dizer, seu eixo condutor, é direcionada por toda a sua extensão”. Essa linha, continua ele, não está nem aqui nem ali, nem neste lugar nem naquele, mas “sempre entre ou atrás daquilo em que fixamos nossos olhos”[mfn]Maurice Merleau-Ponty, 2013. O Olho e o Espírito. Coleção Portátil 24. 1ª edição. Cosac & Naify.[/mfn]. Quase se poderia tratar a linha como um verbo e dizer que no crescimento da coisa – em sua emissão, em seu tornar-se visível, como diria o pintor Paul Klee[mfn]Paul Klee, Notebooks, Volume 1: The Thinking Eye, London: Lund Humphries, 1961.[/mfn] – ela se alinha.

Wassily Kandinsky, Première esquisse pour Composition VII, aquarelle, 1910, Centre Pompidou, Paris

Linhas terríveis

Isso certamente estaria de acordo com a visão de John Ruskin, um crítico do século XIX. Em seu enorme compêndio de três volumes “As pedras de Veneza” (1851-1853), Ruskin reuniu uma coleção do que ele chamou de “linhas abstratas” em uma única figura, combinando suas observações de coisas grandes e pequenas, desde uma geleira e um pico de montanha, passando por um ramo de abeto, uma folha de salgueiro e uma concha de nautilus (Figura 2). Em todos os casos, argumentou ele, a linha é “expressiva de ação ou de força de algum tipo”[mfn]John Ruskin, 2019. As pedras de Veneza. Edição padrão. Martins Fontes.[/mfn]. Essas linhas de ação e força, como ele explicaria em seu tratado de 1857 sobre Os elementos do desenho, devem ser discernidas no “animal em seu movimento, na árvore em seu crescimento, na nuvem em seu curso, na montanha em seu desgaste”. Assim, ele continuou a aconselhar o novato: “tente sempre, quando olhar para uma forma, ver as linhas nela que tiveram poder sobre seu passado e terão poder sobre seu futuro. Essas são as suas linhas terríveis; procure se apoderar delas, independente do que lhe falte”[mfn]John Ruskin, 2016. The Elements of Drawing. Createspace Independent Publishing Platform.[/mfn].

A sabedoria, para Ruskin, estava em compreender não apenas o modo como as coisas são, mas o modo como elas avançam, e isso significava concentrar-se não nos contornos da forma, mas nas linhas medianas da força. Essas são as linhas terríveis. Se elas se abstraem do real, não é por redução, mas pelo registro preciso de sua variação. O poder impressionante de tais linhas reside precisamente em sua capacidade de romper os limites que, de outro modo, mantêm as coisas presas em seus envelopes, liberando-as assim na plenitude de seu ser. Essas são as linhas que compõem a malha e que, para Deleuze e Guattari, constituem a topologia do liso. É uma topologia, argumentam eles, que não se baseia em pontos que possam ser conectados geometricamente, nem em objetos que possam ser delineados organicamente, mas nas qualidades táteis e sonoras de um mundo de vento e clima, onde não há horizonte separando a terra e o céu, nenhuma distância intermediária, nenhuma perspectiva ou contorno[mfn]Gilles Deleuze e Félix Guattari, 2011. Mil platôs – vol. 1: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2ª edição. Editora 34.[/mfn].

Esse é o mundo das lesmas e das tempestades, das trilhas sinuosas e dos ventos em redemoinho, da terra e do céu. Não se trata de uma paisagem, em que tudo está disposto no chão como objetos e cenário no palco, prontos e esperando o início da ação. Na paisagem, a linha geométrica define a disposição dos elementos e a linha orgânica delimita suas formas e formatos representados. A linha abstrata, no entanto, antecipa o crescimento das coisas em um mundo terra-céu. Nesse mundo, as linhas não são impostas por convenções de representação, nem são traçadas entre pontos. Em vez disso, elas são estabelecidas em movimento. Olhe para a natureza, como sendo paisagem, e não há linhas à vista. Elas existem apenas em suas representações gráficas. No entanto, se olharmos com ela, como sendo a terra e o céu, nos movimentos de sua formação, as linhas estarão por toda parte. Elas são as próprias linhas ao longo das quais nós e outros organismos vivemos.

As linhas abstratas de Ruskin, placa 7. Fonte: As pedras de Veneza

Texto traduzido do inglês por Luiz Capelo

Referências

Alberti, Leon Battista. 2015. Da pintura. 4ª edição. Campinas, SP: Editora da Unicamp.

Bergson, Henri. 2010. A evolução criadora. Traduzido por Adolfo Casais Monteiro. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp.

Deleuze, Gilles, et Félix Guattari. 2011. Mil platôs – vol. 1: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2ª edição. Editora 34.

Ingold, Tim. 2015. Estar vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Traduzido por Fábio Creder. 1ª edição. Editora Vozes.

Kandinsky, Wassily. 2015. Do Espiritual na Arte. E na Pintura em Particular. Traduzido por Philippe Sers. Martins Fontes – selo Martins.

Klee, Paul. 1961. Paul Klee Notebooks Volume 1 The Thinking Eye. Lund Humphries.

Maynard, Patrick. 2005. Drawing Distinctions: The Varieties of Graphic Expression. Ithaca London: Cornell University Press.

Merleau-Ponty, Maurice. 2013. O Olho e o Espírito. Coleção Portátil 24. 1ª edição. Cosac & Naify.

Mitchell, Victoria. 2006. « Drawing Threads from Sight to Site ». TEXTILE 4 (3). Routledge:340‑61. https://doi.org/10.2752/147597506778691459.

Petherbridge, Deanna. 2010. The Primacy of Drawing: Histories and Theories of Practice. New Haven: Yale University Press.

Ruskin, John. 2016. The Elements of Drawing. Createspace Independent Publishing Platform.

Ruskin, John. 2019. As Pedras de Veneza. Edição padrão. Martins Fontes.

Serres, Michel. 1994. O Contrato Natural. 1ª edição. Instituto Piaget.

Spuybroek, Lars. 2020. The Sympathy of Things: Ruskin and the Ecology of Design. 2 edition. Bloomsbury Visual Arts.

Tim Ingold. Fonte: Serge Picard, para Philosophie Magazine

Tim Ingold
Antropólogo britânico, é professor da Universidade de Aberdeen. Laureado com diversos prêmios, Tim Ingold é membro da Academia Britânica. É um pesquisador de interesses amplos, trabalhando com temas como a linguagem, a percepção ambiental e a tecnologia. No campo da etnografia, trabalhou com os povos circumpolares do Norte, os Sámi e os finlandeses. A partir de pesquisa sobre a dinâmica do movimento dos pedestres, a criatividade da prática e a linearidade da escrita, lançou o projeto “Explorations in the comparative anthropology of the line”.

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