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Toda retrospectiva é uma antologia
Luiz Capelo

Lúcifer, o demiurgo, contempla o passado. Ilustração: GRAO, 2023.

O ano de 2023 lentamente chega a seu fim. De nossas janelas vemos seja um inverno chuvoso e sem neve ou um verão quente e convidativo. E logo nos colocamos a pensar sobre as realizações, aquilo que abandonamos no meio do caminho, os méritos e os deméritos desse ano. Para o Coletivo Brasil, 2023 foi um período de muito trabalho. Ora, começemos pelo começo e evoquemos o grande patrono-navegador da língua portuguesa:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Mar Português, Fernando Pessoa)

As lágrimas de Portugal podem ser tema de outro texto, assim como os filhos que viraram coroinhas ou as noivas que ficaram para tia. Hoje, o Coletivo Brasil tem a certeza de que atravessou o Bojador – ao menos um Bojador, já que esse Cabo e marco marítimo perpetuamente se renova em nossas trajetórias. O mar é português, e o Coletivo é a caravela a navegá-lo. Da gávea de nossa embarcação, uma visão crítica do mar e zona costeira brasileiros se desvelou, trazendo consigo pertinentes questionamentos sobre a utilização de nossas costas e mar. E, juntos ao iate Danycan, participamos de históricas regatas.

Danycan na regata Voiles de la Citadelle, 2014. Foto : Alain Milbéo

Como toda embarcação, o Coletivo é também formado por marinheiros, os proletários do mar. Nossas lutas foram muitas. Marchamos com as margaridas, recebemos venezuelanos e venezuelanas migrantes, combatemos o declínio da democracia no Brasil e vimos o neoliberalismo autoritário tentar sua consolidação em nosso país. A luta, companheiras e companheiros, foi intensa, inglória e cheia de traições, porém, Lula, chamado por alguns de Milagre, mesmo com uma descarada tentativa de golpe de Estado, assumiu a Presidência da Repúlica.


“Cervejinha e picanha”. Ilustração: GRAO, 2023.

“Proletários do mundo, uni-vos” já clamava o coroa Marx em seu manifesto. Ouvimos o clamor, e nos unimos. Nos unimos com a consciência de que as terras de nosso país já eram territórios de outros povos antes mesmo que o primeiro europeu tivesse sequer imaginado em desembarcar, avistar ou mesmo sonhar com a Terra de Santa Cruz. Assim, unidos com os povos indígenas do Vale do Javari e com o povo Pataxó, discutimos como a Pandemia afetou os povos indígenas e quais foram as violações no contexto da Covid-19 de que foram vítimas os povos originários. No contexto da pandemia, foi preciso discutirmos como saúde e doença são conceitos percebidos distintamente por diferentes povos. Nossa união não se conteve apenas em discutir pandemia e doenças. A primavera indígena floresceu, e a aldeia renasceu cheia de desenhos, ancestralidade e memória. Tal como Babel, mas sem a sina de ser destruída, nosso Coletivo fala muitas línguas. E se engana quem pensa que essa frutífera união se restringiu às fronteiras da Terra Brasilis, pois até em Dubai voam Tukanos.


Passo ancestral, Renata Inahuazo, 2021, canetas ink, achiote uruku em papel A4

“Proletários do mundo, tocai-vos!” é um dos nossos gritos de guerra. Nem só de reflexões vive o ser humano, e a putaria é também um instrumento de análise social. Se toquem, mas manjar o coleguinha apenas com consentimento do coleguinha. Afinal, sexo e transgressão são fundamentais, mas o não é sempre um não. E falando em promíscuos, sempre nos lembramos dos nossos milicos.


Malditos milicos. Fonte: Medo e delírio em Brasília

O fim do ano se aproxima, o fim do texto também. Porém, antes que tudo acabe, é preciso lembrar que Pombagem é arte, e arte é popular. Não poderíamos deixar de citar nessa desvairada retrospectiva as artes gráficas, os quadrinhos, as HQ. Atire a primeira semente quem nunca se entregou ao deleite de ler uma graphic novel (termo estrangeiro e chique que tenta tornar nossa HQ algo sério, acadêmico e “não-infantil”) enquanto atendia ao chamado da natureza. Assim, sintetizando um pouco de tudo aquilo que estamos falando, unindo povos indígenas, sementes, natureza e votos de um ano feliz, encerramos com as palavras de Kowawa Kapukaia Apurinã e seu chamado para repensarmos nossas relações com o mundo e entre nós mesmos:

Vídeo originalmente publicado na revista Sens public.

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Kowawa Kapukaja Apurinã

Indígena da etnia Apurinã do Médio Purus, Sul do Amazonas. Doutoranda em Antropologia nas Universidade Federal Fluminense e Université Paris 3 Sorbonne Nouvelle. Mestra em Antropologia e graduada em Direito e em Artes Visuais. Ativista, atua principalmente na educação indígena, educação ambiental, questões raciais, ações afirmativas, mulheres indígenas, violências e ancestralidade indígena. Membra fundadora do Instituto Pupykary do Povo Apurinã, cofundadora da Articulação Brasileira de Indígenas Antropológes, do coletivo Artivismo Indígena e colaboradora do veículo de jornalismo independente Portal Catarinas. Atualmente, desenvolve pesquisa com o Povo Tupinambá, em Acuipe, Olivença, nas áreas de Retomadas no Sul da Bahia — Brasil.

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