O Coletivo Brasil teve o prazer de entrevistar Camila Motta, bióloga, Presidente da Rede de Sementes do Cerrado e Integrante do Comitê Gestor do Redário.
O Redário nasceu da necessidade de ampliar a atuação de grupos de coletores de sementes, como a Rede de Sementes do Xingu e outros, que já promoviam a coleta de sementes. O que são os grupos de sementes e qual é a importância do cultivo de sementes nativas em relação às disponibilizadas no mercado hoje?
Grupos ou redes de coletores de sementes consistem na junção de pessoas em pequenos grupos que podem estar conectados em rede, dependendo do tamanho e da extensão de territórios em que coletam sementes nativas para a restauração ecológica. As sementes nativas são a base da restauração, independente da forma de plantar, seja via muda ou semeadura direta, que é o método em as sementes são dispersadas diretamente no solo. É importante ressaltar que a restauração ecológica contribui com a conservação da biodiversidade e é uma das melhores formas de combater a crise climática. O fomento a diferentes grupos em diversas regiões fortalece o mercado de sementes, permitindo não apenas o aumento da diversidade genética de espécies nativas, mas também a geração de renda e a melhoria da qualidade de vida das comunidades envolvidas neste processo.
Tendo em vista a importância global do tema e a existência do Banco Mundial de Sementes (Svalbard Global Seed Vault), como o Redário se articula em parcerias nacionais, continentais e internacionais?
O Redário é uma articulação que apoia a estruturação da base da cadeia de restauração em larga escala. Quando a gente olha para toda a sua estrutura, observa-se que, em sua primeira camada, estão as redes de sementes e os grupos coletores como os atores, uma vez que são esses os mais influenciados pela atuação do Redário. Em um segundo nível, estão os parceiros estratégicos, os quais são de extrema relevância por atuarem na disseminação de pesquisas científica, na incidência política e promoção da técnica da Muvuca e no apoio aos grupos de coletores. Em seguida, estão os que chamamos de atores viabilizadores, que são os responsáveis por financiar e viabilizar o trabalho dos grupos e do Redário. Neste nível encontram-se os potenciais clientes das redes e do Redário, os órgãos públicos e os financiadores. Por fim, no último nível de stakeholders, estão os sistemas ecológicos, sobre os quais acontece o impacto final promovido pelo Redário.
A maior parte das redes de sementes do projeto são de base comunitária – indígenas, quilombolas, geraizeiros, comunidades tradicionais e pequenos agricultores, mas o Redário também fornece capacitação e apoio técnico e jurídico para essas organizações. Como se dá essa troca entre os conhecimentos tradicionais e as instituições de pesquisa na construção do conhecimento e das estratégias internas da organização?
O Redário promove, anualmente, um encontro presencial com representantes dos grupos de coletores e parceiros para promover a troca de experiências entre os diferentes grupos. Fora esses encontros presenciais que chamamos de “Encontrão”, o Redário está organizado em diferentes Grupos de Trabalho (GT) que promovem encontros online para tratar diversas temáticas. Um destes grupos é o GT Técnico, que aborda não só as questões técnicas da produção de sementes nativas, mas também questões administrativas, financeiras e jurídicas. Vou citar um exemplo para facilitar a compreensão. Recentemente, o Redário, em parceria com o Comitê Técnico de Sementes Florestais da Associação Brasileira de Tecnologia de Sementes (ABRATES), elaborou a Nota Técnica “Desafios e oportunidades para o desenvolvimento da cadeia produtiva de sementes nativas para a restauração de ecossistemas no Brasil”, que faz uma série de recomendações ao poder público para avançar na adequação da legislação vigente e garantir a restauração de ecossistemas com escala e qualidade, na velocidade que o planeta necessita. Esse documento, que aponta soluções para vários gargalos dentro da cadeia produtiva, foi lançado às vésperas da reunião da Comissão Nacional para Recuperação da Vegetação Nativa (CONAVEG), responsável por gerir a Política Nacional para Recuperação da Vegetação Nativa (PROVEG) e o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (PLANAVEG).
A Nota Técnica é resultado do segundo “Encontrão”, realizado em junho de 2023, na Chapada dos Veadeiros. Após ouvir coletores, representantes das redes e grupos de coleta, o GT de Pesquisa do Redário e o GT Técnico se reuniram com pesquisadores para debater os gargalos enfrentados na cadeia produtiva de sementes nativas. Então, esse documento aponta os desafios e as soluções para os problemas relatados por essas pessoas que estão na base da cadeia. É um documento que conta com o apoio da Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica (SOBRE) e dos principais movimentos de Restauração no Brasil, a saber: Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, Aliança pela Restauração na Amazônia, Araticum – Articulação pela Restauração do Cerrado e Rede Sul de Restauração Ecológica.
De que forma a produção de sementes nativas assegura a autonomia dos pequenos produtores? Por que é importante assegurar também a ampla base genética e a rastreabilidade dessas sementes?
A transparência é um dos princípios fundamentais do Redário. Cada grupo ou associação de coletores de semente define o seu preço de comercialização e recebe esse valor em qualquer venda feita pelo Redário. É importante destacar que o Redário estimula esses grupos a manterem sua comercialização de forma independente do Redário. Em busca de assegurar a autonomia desses grupos, o Redário oferece oficinas e encontros online para capacitar os grupos coletores de sementes nas questões financeiras, administrativas, de gestão e de comunicação, para que, assim, cada grupo passe a ter a autonomia na gestão em todos os aspectos.
O trabalho desenvolvido com as sementes também é considerado uma alternativa para a restauração das vegetações nativas, para o combate à crise climática e para a promoção da biodiversidade. Como se dá o processo de reflorestamento proposto pela rede de sementes e quais as técnicas utilizadas?
A restauração ecológica que fomentamos consiste nos plantios feitos pela técnica da semeadura direta, popularmente conhecida como muvuca, que é uma mistura de sementes nativas de diferentes formas de vida (ervas, arbusto, árvore) com quantidades proporcionais. Para a escolha das espécies e suas quantidades, são levadas em consideração a vegetação de referência, o tipo de solo, a sucessão das espécies ao longo do tempo, dentre outros aspectos. No caso do Cerrado, por exemplo, a semeadura direta permite plantar formas de vida como ervas e arbustos, que são fundamentais para a manutenção deste bioma. Através desta técnica, é possível fazer uma restauração mais barata, mais biodiversa, sem o uso de irrigação, aspecto de extrema importância, diante da crise climática, escassez hídrica. Outro ponto que precisa ser ressaltado sobre este método de plantio é que ele requer grande quantidade e diversidade de sementes (aproximadamente 100kg por hectare) e por isso necessita de grande quantidade de pessoas para coletar. Isso faz com que o processo de restauração seja mais inclusivo, pois envolve as comunidades locais que vivem nos territórios, gerando não só melhorias na qualidade de vida, mas também uma nova percepção com relação à conservação ambiental. Como dito anteriormente, a restauração ecológica é fundamental para combater a crise climática, pois mantém o regime de chuvas regulado e auxilia na conservação da biodiversidade. Envolver pessoas neste processo e transformar vidas é o que torna este trabalho ainda mais especial.
Em 2017, o então presidente Michel Temer formalizou o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que tem o objetivo de restaurar 12 milhões de hectares de floresta degradada no Brasil até 2030. Como o Redário avalia os esforços institucionais feitos até o presente para dar conta da meta proposta?
Ainda há vários desafios para que a meta seja alcançada, como fiscalização, acesso às áreas, recursos, dentre outros aspectos. Mas é importante dizer que o Redário está articulado junto à Iniciativa Caminhos da Semente, que promove a semeadura direta de muvuca em diferentes regiões do Brasil, através de unidades demonstrativas até plantios maiores. Por meio desta articulação é que o Redário promove a produção de sementes nativas e a restauração. O Redário também tem parceiros que executam restauração em larga escala. Acreditamos que este seja o caminho para contribuir com a meta de plantar 12 milhões de hectares até 2030.
Quais as políticas públicas necessárias para agilizar a regularização da produção dos coletores, para a estruturação da base da cadeia de restauração das áreas degradadas e para promover o conhecimento sobre a técnica de semeadura direta? Quais os desafios e avanços obtidos em relação a essas demandas?
Atualmente, a comercialização de sementes nativas do Brasil é regulamentada pela IN 17/2017 do Ministério da Agricultura. Entretanto, ainda existem desafios para que os grupos de coletores possam se regularizar, como a exigência de um responsável técnico credenciado pelo CREA e análise de sementes feitas em laboratórios credenciados pelo MAPA. Essa exigência para que, antes da comercialização, as sementes passem por análises da qualidade em laboratórios credenciados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) é, inclusive, um dos gargalos apontados na Nota Técnica que menciono no início da entrevista. De acordo com a Nota, exigir essas análises esbarra em quatro problemas estruturais: poucos laboratórios de sementes credenciados pelo MAPA para análise de espécies nativas; o tempo de espera do resultado da análise acarreta no atraso de todo o processo com a redução da viabilidade das sementes, prejudicando o plantio das sementes no período adequado; os custos associados às análises oneram o processo e podem inviabilizar financeiramente a operação para muitos coletores e redes de sementes; e há discrepância entre os resultados dos testes de laboratórios e o estabelecimento das plantas em campo.
No que tange à restauração, mais especificamente ao método da semeadura direta, o principal desafio enfrentado é com relação ao fato de a técnica ainda ser questionada por sua viabilidade. Além disso, a legislação federal e a maior parte das legislações estaduais de recomposição da vegetação nativa ainda não consideram a semeadura direta como uma das técnicas listadas para a aprovação. Atualmente, o Estado de São Paulo é pioneiro na legislação que considera e regulamenta a técnica. Mato Grosso e o Distrito Federal já regulamentaram também. Acredito que apresentar soluções para esses gargalos e desafios seja um dos pontos fundamentais da atuação do Redário para que o Brasil possa avançar na restauração de ecossistemas em larga escala e assim ter impactos positivos na população, no meio ambiente e no clima global.