A serpente. Ilustração: GRAO, 2023
Havia um Velho em Gretna
Que correu pra cratera do Etna
Quando falavam ‘Faz calor?’, ele dizia ‘Claro que não, faça-me o favor!’
Aquele Velho mentiroso de Gretna.1There was an Old Person of Gretna
Who rushed down the crater of Etna;
When they said, ‘Is it hot?’ He replied, ‘No, it’s not!”
That mendacious Old Person of Gretna. (LEAR, 2002.)
Nesse semana em que se completam os 60 anos do Golpe civil-militar de 1964, que instaurou uma ditadura cruel e sanguinária, e que sugerem uma anistia aos participantes do 8 de janeiro, propõe-se a reflexão sobre anistias, principalmente a Lei da Anistia de 1979. Tal qual o Velho do Gretna, a ditadura e sua anistia são uma mentira. A anistia que propõe o esquecimento e apaga o passado não constrói justiça no presente. Do Império à República, governos impuseram esquecimentos. Muito se lastima que hoje o atual governo faça o mesmo quando impede que se rememore o golpe de 1964. Ora, a justiça não consiste em esquecer 64. Esse esquecimento apenas fortalece o pedido para que se anistie os golpistas de 8 de janeiro. Discutir anistia é reforçar a democracia. E democracia é punir aqueles que assaltaram as instituições da República.
Ontologia da anistia é o esquecimento
Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público, anistia:
É o termo que se usa na linguagem jurídica para significar o perdão concedido aos culpados por delitos coletivos, especialmente de caráter político, para que cessem as sanções penais contra eles e se ponha em perpétuo silêncio o acontecimento apontado como criminoso (art. 107, II, Código Penal).
A definição reforça dois pontos fundamentais da anistia: não há anistia se não houver um crime e a anistia causa esquecimento, ela pretende estabelecer um “perpétuo silêncio”. A anistia ontologicamente desconstrói o real para, nessa ausência, criar uma nova verdade. O termo grego evidencia esse fato. ᾽Αλήθεια, a verdade, é aquilo que não – ἀ, que vira o prefixo de negação “a” na língua portuguesa – é esquecido – λήθη, o esquecimento. O verdadeiro não necessariamente é o que aconteceu. O verdadeiro é o que não foi esquecido. Nesse sentido, anistiar é criar uma nova verdade. É propositalmente esquecer um crime, é controlar o que é esquecido e assim o que é verdadeiro.
Brasil, país da conciliação
No Brasil independente, o primeiro projeto legislativo de anistia data de 9 de maio de 1823, mais especificamente da Assembleia Constituinte Imperial. É paradigmático que, em seu estabelecimento como nação independente, o Brasil já esteja discutindo anistiar parte de suas elites. O referido projeto propõe que sejam anistiados aqueles envolvidos nas Guerras da Independência. Ora, o projeto trata das elites que apoiavam Portugal, o lado perdedor na Independência. Para o surgimento da nova nação, primeiro a conciliação. Não é uma tentativa completamente deslocada. Afinal, o imperador do país que ali nascia era um português. O espírito do projeto de anistia é que é melhor esquecer a briga entre brasileiros e lusos para que siga o Brasil, agora um país independente, mas governado por um português. A Assembleia Constituinte foi interrompida por D. Pedro I e o projeto constituinte de 1823, a Constituição da Mandioca, jamais entrou em vigor. D. Pedro outorgou a Constituição Imperial, que vigorou de 1824 até 1889, quando cai a monarquia, e não falava em anistia.
A Lei Áurea é efetivamente a maior anistia ocorrida no Império. A escravidão legalmente não era um crime no Império. Contudo, a partir de 1831, o tráfico de escravizados era crime. Assim, todos os escravizados que foram trazidos após essa data eram prova material desse crime. Isso significa que o principal meio de se adquirir um indivíduo escravizado era um ato criminoso. Potencialmente, o senhor de escravos de 1831 até 1888 fez parte de uma ação criminosa. É irreal pensar que o grande latifúndio cafeicultor podia prescindir do tráfico transatlântico de viventes. O histórico legislativo acerca da escravidão reforça o caractér anistiador da Áurea.
Como coloca a professora Beatriz Mamigonian em seu livro Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil, a aplicação das leis de repressão ao tráfico de escravizados foi complexa. A Lei Feijó, de 1831, reconhecia a existência de um crime e estabelecia, em seu artigo 2°2Art. 2º Os importadores de escravos no Brazil incorrerão na pena corporal do artigo cento e setenta e nove do Codigo Criminal, imposta aos que reduzem á escravidão pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despezas da reexportação para qualquer parte da Africa; reexportação, que o Governo fará effectiva com a maior possivel brevidade, contrastando com as autoridades africanas para lhes darem um asylo. Os infractores responderão cada um por si, e por todos. (BRASIL, 1831), penas corporais e multas aos envolvidos na importação de escravizados. Dos marinheiros aos financiadores, todos seriam punidos. A Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, já não mais fala em punições, porém continua entendendo que a importação de escravizados é um crime3Art. 3º São autores do crime de importação, ou de tentativa dessa importação o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga. São complices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no territorio brasileiro, ou que concorrerem para os occultar ao conhecimento da Autoridade, ou para os subtrahir á apprehensão no mar, ou em acto de desembarque, sendo perseguido. (BRASIL, 1888). E Eis que, em 1888, princesa assina a Lei Áurea. A referida lei contém apenas dois artigos, que levam o seguinte texto:
Art. 1º É declarada extincta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brazil.
Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.
A consequência evidente da Lei Áurea é, claramente, o fim, ao menos na seara legal, da escravidão e do tráfico de viventes no Brasil. Ao mesmo tempo, a princesa Isabel também anistiou toda a elite escravocrata brasileira. O crime presente nas leis de 1831 e 1850 foi anistiado. Senhor algum jamais pagou indenização a seus antigos escravizados e ninguém foi punido ou questionado por ter possuído escravizados. O Estado brasileiro não arcou com as mazelas sociais e individuais causadas pela escravidão e os antigos escravizados não tiveram reparação.
A partir da Lei Áurea, seria como se nada tivesse acontecido, como se as palavras de Isabel tivessem o poder de construir um novo real. Escravizados libertados, senhores anistiados. E que agora tudo fique no passado e seja esquecido. Com o advento da República, então, tudo se torna um passado distante mesmo. Para melhor esquecer, é inclusive interessante queimar os arquivos sobre a escravidão. Eis então que Rui Barbosa queima esses documentos. O esquecimento seria o bálsamo para as mazelas da escravidão. Talvez para os senhores isso funcione, talvez funcione até mesmo para o Estado. Porém certamente esse raciocínio não se aplica aos antigos escravizados e esse esquecimento forçado tem visíveis consequências para o país até hoje.
A quem serviu a Lei da Anistia de 1979 ?
Passada a abolição/anistia, segundo dados presentes no artigo de Raphael Marques e Rafael Cabral (MARQUES & CABRAL, 2022), após a Proclamação da República, foram concedidas em torno de 40 anistias políticas no país. Todos os regimes após a República concederam anistia. Percebe-se assim que o instrumento da anistia é uma verdadeira tradição nacional. Mas por que nossa oposição à anistia? Afinal, perdoar não é uma coisa boa? Sim, o perdão é algo necessário. A questão que se coloca não é essa. O que queremos saber é quem foi perdoado em 1979? Bem, basicamente foram os “malditos milicos”!
Malditos milicos. Fonte: Medo e delírio em Brasília
Começemos do começo, e vamos analisar o texto da lei. Em seu artigo 1, a Lei de Anistia diz que:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (BRASIL, 1979)
Em uma primeira leitura, a Anistia passa a impressão de ser “ampla, geral e irrestrita”. A miragem, contudo, sobrevive apenas até o inciso segundo, onde se lê “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal” (BRASIL, 1979). E eis o pulo do gato. Serão anistiados todos, menos aqueles condenados por terrorismo, assalto e sequestro. Mas não eram esses parte dos instrumentos disponíveis para o “guerrilheiro urbano”? Diz Mariguella que
Uma das características fundamentais da revolução brasileira é que desde o começo se desenvolveu ao redor de expropriações da riqueza da burguesia maior, imperialista, e dos interesses latifundiários, sem a exclusão dos elementos mais ricos e dos elementos comerciais mais poderosos envolvidos com a importação e exportação de negócios.
E mediante a expropriação da riqueza dos principais inimigos do povo, a revolução brasileira foi capaz de golpeá-los em seus centros vitais, com ataques preferenciais e sistemáticos na rede bancária, isto é, os golpes mas contundentes foram contra o sistema nervoso capitalista. (MARIGUELLA, 1969)
Assaltos e sequestros eram algumas das armas disponíveis para as organizações da luta armada. Por exemplo, a Aliança Nacional Libertadora – ANL e o MR-8 realizaram o sequestro do embaixador norte americano Charles Burke Elbrick, e a VAR-Palmares foi a responsável pelo roubo do cofre do governador Adhemar de Barros, o “rouba mas faz”. Nessa ação, Lamarca diz ter conseguido US$ 2,5 milhões.
Toda a guerrilha urbana era considerada terrorismo. COLINA, VPR, VAR-Palmares e MR-8, entre outros, eram tidos como organizações terroristas. Como afirmado no prefácio do Manual do Guerrilheiro Urbano,
“A acusação de ‘violência’ ou ‘terrorismo’ sem demora tem um significado negativo. Ele tem adquirido uma nova roupagem, uma nova cor. Ele não divide, ele não desacredita, pelo contrário, ele representa o centro da atração. Hoje, ser ‘violento’ ou um ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado na luta armada contra a vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades.” (MARIGUELLA, 1969)
Mariguella propõe uma ressignificação do termo terrorismo – e nós, no mundo após o 11 de setembro, certamente compreendemos o terrorismo de outra forma. Apesar disso, não cabe a nós comprar esses discursos pelo seu valor de face. É claro que o terrismo ressignificado de Marighella, o roubo do corrupto butim do Adhemar e o sequestro do embaixador são crimes. Não se discute isso. O ponto é que a Lei de 1979 não anistiou esses atos e as pessoas que o cometeram, mas essa mesma Lei anistiou os militares que torturaram Miriam Leitão quando ela estava grávida, que assassinaram Herzog e sua memória ao insistirem na absurda hipótese do suicídio e que cometeram tantos outros crimes. Mariguella e Lamarca, se não tivessem sido assassinados pela ditadura, não teriam sido anistiados em 1979. Já Fleury e Ustra, esses de fato foram anistiados. Não apenas foram anistiados, chegou-se ao absurdo de serem homenageados em pleno Congresso Nacional por nauseabundos parlamentares. O fantasma do comunismo parece tudo justificar, desde a tortura até a reconstrução da realidade e da narrativa histórica.
Há uma disputa de forças no esquecimento. A política da terra arrasada na memória intrinsicamente reproduz o ciclo de violência que se propõe a apagar. O esquecer trata como iguais aqueles que são diferentes. A anistia aniquila as diferenças em prol de um falso “seguir em frente”. A anistia proposta na Independêcia visa a igualar brasileiros e portugueses, a Áurea trata do mesmo modo senhores e escravos e em 1979 carrasco e vítima são colocados no mesmo patamar.
Como pode a Constituição Cidadã ser consequência de uma anistia que foi tudo, menos “ampla, geral e irrestrita”. Para realmente responder ao clamor de “Muda Brasil” feito por Ulisses Guimarães, é preciso rever a Anistia de 1979, é preciso que o Brasil deixe de, repetidamente, anistiar aqueles que chocam o ovo da serpente, é preciso que o presidente Lula não censure as manifestações de rememoração do Golpe, é preciso que, citando Strassera, a República seja sustentada pela memória, não pelo esquecimento. A relação com o passado que o país precisa significa a recém aprovada reparação coletiva às etnias krenak e guarani-kaiowá e o reconhecimento de Clarice Herzog como anistiada política. Esse é o país que precisamos hoje, passados 60 anos de 1964. Não é a hora tampouco há sentido em discutirmos anistiar as turbas de 8 de janeiro.
Bibliografia
BRASIL, Proposta legislativa de 9 Maio de 1823. Câmara dos Deputados. 1823
BRASIL, Lei de 7 de Novembro de 1831. Senado Federal. 1831
BRASIL, Lei de 4 de Setembro de 1850. Senado Federal. 1850
BRASIL, Lei Áurea, 13 de Maio de 1888. Senado Federal. 1888
BRASIL, Lei N° 6.683, de 28 de Agosto de 1979. Presidência da República. 1979
LEAR, Edward. 2006. Colour Classics Complete Nonsense and Other. Édité par Vivien Noakes. First Edition. Penguin Classic.
MAMIGONIAN, Beatriz. 2017. Africanos livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil. 1ª edição. Companhia das Letras.
MARQUES, Raphael Peixoto de Paula, et Rafael Lamera Giesta Cabral. 2022. « Percursos da(s) anistia(s) no Regime Vargas (1930-1935): Da reabilitação política ao aproveitamento administrativo ». Antíteses 15 (29): 280‑313. https://doi.org/10.5433/1984-3356.2022v15n29p280-313.