Registros/arquivos da Kuñangue Aty Guasu – Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani de MS
A ditadura civil-militar instaurada em 1964 é responsável por diversos crimes, entre eles as sistemáticas violações contra os povos indígenas. Cortaram mulheres ao meio, torturaram indígenas em praça pública, prenderam povos em reformatórios. Frente a esse genocídio documentado — como demonstram o Relatório Figueiredo; a filmagem “Arara”, de Jesco Von Puttkamer; e muitos outros documentos — , a Comissão da Anistia, no dia 02 de Abril deste ano – 3 dias antes da posse do primeiro indígena tornado imortal pela ABL, o escritor e jornalista Ailton Krenak -, concedeu reparação coletiva aos povos Guarani-Kaiowá e Krenak. Foi a primeira reparação coletiva concedida pela Comissão. É uma vitória e uma trilha que se abre, pois há muitas outras reparações a resolver.
O Coletivo Brasil recolheu os depoimentos de Jaqueline Aranduhá, do povo Guarani-Kaiowá, e Shirley Krenak, do povo Krenak. Elas contam a importância dessa vitória e nos ensinam que anistia e história se constroem a partir da memória. Este é o tipo de anistia de que o Brasil precisa e pela qual clama o Coletivo Brasil.
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Jaqueline Aranduhá
Meu nome é Jaqueline Aranduhá, eu sou do povo Guarani-Kaiowá, sou atualmente membro da Grande Articulação das Mulheres Kaiowá e Guarani, a Kuñangue Aty Guasu, e membro da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas, a ANMIGA.
O julgamento do dia 2 foi histórico, porque em 524 anos de invasão, genocídio, ecocídio, epistemicídio e etnocídio dos povos indígenas do Brasil, essa é a primeira vez que o Estado brasileiro reconhece as violações contra os nossos povos. Esse é um passo fundamental para o encaminhamento de protocolos e de documentos e para a demarcação e a homologação dos territórios Guarani-Kaiowá. A criação da Comissão da Anistia foi fundamental e o pedido de perdão coletivo ao povo Krenak e ao povo Guarani-Kaiowá também é um momento importante de avanço para a proteção dos direitos dos povos originários.
Os Guarani-Kaiowá estão localizados no Mato Grosso do Sul, na área do Centro-Oeste do Brasil, entre 3 biomas de áreas fronteiriças entre Brasil e Paraguai: a Mata Atlântica, o Cerrado e o Pantanal. O povo Guarani-Kaiowá é o terceiro maior povo do Brasil e possui o maior número de retomadas de territórios indígenas, com mais de 74 retomadas. O Mato Grosso do Sul é um estado com um histórico muito alto de violência latifundiária, política e policial contra as comunidades indígenas, sem justiça, reparação, demarcação, homologação, nem a efetivação de nossos direitos originários e de nossos direitos constitucionais. Nós vivemos sob muita ameaça dentro dos territórios e todos eles estão hoje ameaçados pelo latifúndio. Os grandes desertos de cana, de soja e de milho tomaram conta das terras do nosso povo e dos outros nove povos do estado.
Esse momento histórico do dia 2 de abril é um reconhecimento importante para a reparação da violência que foi cometida durante a ditadura, mas essa violência não se apagou e as violações continuam. Elas ganharam outras caras, outros formatos, outros meios, mas seguem hoje ainda muito fortes. Segue também a destruição dos biomas e dos territórios, causada pelo uso cotidiano de produtos químicos nas plantações, que têm atingido os rios e os lençóis freáticos e levado a inúmeras consequências para as comunidades indígenas. Nós somos hoje a terceira maior população do Brasil, porém somos uma população, uma comunidade, um povo com uma ausência muito grande do estado brasileiro.
É uma promessa do presidente Lula a efetivação dos direitos dos povos indígenas, porém estamos diante de um Congresso muito conservador, anti indígena, ruralista e evangélico, que tem sido um grande empecilho para o avanço da demarcação e da homologação de nossos territórios. Nós estamos indo para o segundo ano do terceiro mandato do governo do presidente Lula, mas lá na base, no nosso território, não temos sentido chegar nem o mínimo dos direitos dos povos indígenas efetivados. O Mato Grosso do Sul enfrenta hoje o não acesso à água potável e isso tem gerado inúmeras consequências para a saúde da comunidade. A questão do veneno e do alto uso de agrotóxico resultou inclusive na morte de uma de nossas companheiras de caminhada, nas últimas semanas. Ela morreu intoxicada e estava gestante de 2 meses. Essa é uma realidade de várias comunidades.
O Mato Grosso do Sul é portanto uma área de muita violência contra os povos indígenas e essa reparação, esse pedido coletivo de perdão concedido pela Comissão da Anistia, é importante, mas é preciso garantir os próximos passos, pois demarcar e homologar é uma questão de existência e de saúde pública no Mato Grosso do Sul.
Shirley Krenak
Meu nome é Shirley Djukurnã Krenak e eu pertenço ao povo Krenak, do estado de Minas Gerais, do bioma da Mata Atlântica. O julgamento da Comissão de Anistia, que aconteceu no dia 2 de abril, em Brasília, foi de extrema importância. Ao longo de muitos anos, o povo Krenak levou adiante esse processo, com a intenção de que ele pudesse vir de forma coletiva e de que esse pedido de perdão, diante do governo brasileiro e diante do Estado, pudesse ser feito de modo que representasse o nosso papel enquanto povo Krenak. Os processos que dizem respeito à ditadura militar sempre são vistos de forma individual, mas nosso povo sempre viu toda essa injustiça de forma coletiva. Então, esse momento foi muito importante, porque nós abrimos agora um portal de ações para outros povos indígenas que também sofreram na época da ditadura militar e que estiveram dentro do reformatório Krenak, dentro do nosso território, no estado de Minas Gerais, como os Xerente, os Terena, os Kaiowá e os Guarani. E essa ação mostra para o mundo todo que os povos indígenas estão resistentes e resilientes diante de todas as atrocidades que foram cometidas no passado.
E nós começamos agora mais uma luta, porque mesmo diante desse pedido de perdão do Estado e do governo brasileiro, ainda existem diversas ações a serem feitas e contempladas dentro da visão coletiva, em relação ao direito humano dos povos indígenas de viverem bem e de serem respeitados. Nós abrimos agora uma nova discussão sobre a Lei da Anistia, uma Lei que não contempla os povos indígenas e que precisa ser estudada e organizada, para que possamos alcançar, de forma totalmente adequada, a demarcação territorial de nossos parentes, a demarcação territorial de Sete Salões, o território Krenak, e assim por diante. Sem contar as ações de reparações econômicas que o Estado e o governo brasileiro devem aos povos indígenas que sofreram durante a ditadura militar.
Ao final do julgamento, nós lemos um documento que pauta as nossas perspectivas futuras de cobrança ao governo e ao Estado brasileiro, dentre elas, a demarcação territorial e a criação de um museu que conte a história dos povos indígenas e do povo Krenak, em especial, no estado de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, para que essa história não caia no passado e todos possam lembrar dela. Inclusive, para que possamos ensinar e trazer essa discussão para o conhecimento dos jovens, nas instituições educacionais, nas escolas estaduais e municipais e nas universidades, para que todos conheçam a verdadeira história da ditadura militar e suas truculências contra os povos indígenas do Brasil.
Nós já provocamos uma mudança. O fato de ter recebido o perdão já é uma mudança, mas é necessário que sejam feitas as reparações coletivas, de acordo com todos os pedidos pautados nesse julgamento, diante dos povos que ali estavam, o povo Krenak e o povo Guarani-Kaiowá. Somos um povo muito inteligente e capaz de gerir nossas ações diante das reparações econômicas que o governo brasileiro e o estado devem efetivar, mediante todos os pedidos feitos no documento lido pela liderança Geovani Krenak, colocando as suas pautas e observações coletivas, considerando a Lei da Anistia e a Constituição de nosso país.
É necessário mudar a Lei da Anistia e a Constituição, no que diz respeito a todas as violações dos direitos humanos para com os povos indígenas do Brasil.