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A Pombagem, 14 anos de arte popular
Paula Luciano

Setembro 2022. Pombos e Pombas em frente à Casa do Museu Popular da Bahia no bairro Fazenda Grande do Retiro, Salvador-BA. Foto de Paula Luciano.

A rua é a abertura de uma passagem temporária que manifesta o espaço em movimentos múltiplos e acolhe de forma absoluta, institucionalizada ou não, legalizada ou não, a marcha de quem por ela percorre o caminho. A rua é a parte do meio, a parte que conecta as instâncias públicas, privadas, ocupadas e modificadas. A rua é o palco sem peça. É a travessia dos mundos e das dimensões de peculiaridades sob concretos, às vezes até a dimensão abstrata do linguajar repetitivo de atribuir-lhes nomes. Nela, tudo acontece. Se limita somente quando no flagra se expõe ou é exposta. Portanto, é o canal de liberdade da travessia dos corpos em movimento. A rua é igualmente o espaço onde transitam os pombos e as pombas, melhor dizendo, os integrantes do Grupo de Arte Popular A Pombagem.

Com o intuito de adentrar o contexto sociocultural que aqui se constrói, podemos dizer que a história dos seres em movimentos múltiplos da Pombagem ora tomava um aspecto de pombos à deriva, ora o aspecto de pombos sujos à luz da elite sem cor. Nas noites em que as sombras se iludiam, os primeiros pombos garimpavam as rimas da poética visual transmutadas nas ruas, em outras palavras, a poesia e o grafite. Aos pombos sujos, como se internalizou o nome do grupo, ofereço, tal qual pomba tardia, traçar uma narrativa da história do Grupo de Arte Popular A Pombagem e dedico esse tempo de encontro a partir do instante em que passo a integrar e construir arquivos de memória frente aos processos e atos de pombageria.

A Pombagem no Congresso UFBA em março de 2023 no campus Ondina, Salvador-BA. Foto: todos os direitos reservados.

O Grupo de Arte Popular A Pombagem surgiu na Fazenda Grande do Retiro, um bairro periférico da cidade de Salvador, no estado da Bahia, em 8 de outubro de 2009. A ideia foi posta em prática a partir do encontro de três pombos filósofos, poetas e grafiteiros. Entendeu-se, naquele momento, a imprescindibilidade da arte como uma ação aplicada a um espaço compartilhado, acessível e inclusivo, sendo a rua sua esfera de exibição. O nome A Pombagem veio em referência aos pombos sujos, forma como podem ser vistos os pombos das praças públicas, principalmente pela perspectiva higienizadora das sociedades de classe. Como muitas vezes passavam a noite em atividade poética ou grafiteira, a comparação veio como alarme e libertação. Alarme, pela violência opressora que é gerada. Libertação, pelo movimento de se expressar sem receio às consequências. O Grupo de Arte Popular manifesta suas várias formas artísticas, sendo o teatro de rua sua expressão principal, a poesia e suas rimas nas batalhas de versos que se remendam em praças, as rodas de conversa rumam à uma conscientização política e cultural coletiva assim como cada especificidade de expressão que entornam a montagem teatral e suas dissidentes licenças poéticas. O coletivo integra igualmente a Periferia Brasileira de Letras – PBL, por criar uma linguagem ampliada perpassada pela corporeidade e pela oralidade 1BRITO Fabrício. Artigo “Um olhar sobre o teatro de rua brasileiro e a sua diversidade a partir do XXII Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua”. Salvador, XVII Enecult – encontro de estudos multidisciplinares em cultura, 2021. .

Para além de um movimento bairrista sociocultural dos originários da Fazenda Grande do Retiro, as ações do Grupo de Arte Popular A Pombagem contribuem para a história política e reivindicadora que se mobiliza na região. Menciono, por exemplo, a Festa do Lixo que aconteceu no bairro entre os anos de 1975 e 1985, onde os moradores recolhiam o lixo dos entornos e marchavam em direção à Imprensa Oficial do Estado da Bahia, instituição estadual localizada de frente à Praça dos Trovadores, onde se encontra o busto a Catulo da Paixão Cearense, poeta do sertão. Na Festa do Lixo, se estabeleciam as forças necessárias para lutar contra a precarização dos espaços periféricos ao cessar de maneira injustificável a coleta do lixo posto às portas dos moradores. A festa representou uma marcha em protesto pelo direito à sanitização das ruas, por consequência, uma demanda de respeito ao cidadão periférico e seu gesto de independência.

Setembro de 2019. Pombos e Pombas reunidos ao redor do Busto à Catulo da Paixão Cearense no bairro da Fazenda Grande do Retiro, Salvador-BA. Foto de Paula Luciano.

No contexto de movimento de teatro de rua na cidade de Salvador, cidade onde se insere o bairro da Fazenda Grande do Retiro, se concretizou a criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua (BRTR) em março de 2007, se tornando assim a cidade sede para o seu primeiro encontro de intercâmbio nacional. Esse encontro ficou conhecido como “A roda girou em Salvador”. Os coletivos que se associaram à Rede tinham como objetivo o compromisso com a horizontalidade de decisões, a democracia, a inclusão, a ocupação do espaço público como palco para a arte, dentre outras responsabilidades. Em 2019, a roda voltou a girar em Salvador, quando o Grupo de Arte Popular A Pombagem, na liderança de Fabrício Brito, recebeu o XXII Encontro da BRTR simbolicamente na cidade fundadora da Rede. Foi para esse evento que recebi o convite para fazer o registro audiovisual as apresentações incluídas na programação do encontro. Foi nesse momento que meu envolvimento com o grupo e, posteriormente, o meu tornar-se pomba aconteceu.

As ruas do centro de Salvador ficaram mais coloridas com o cortejo que inaugurou o evento: saindo da concentração no Largo do Campo Grande e findando no Terreiro de Jesus. Todos os grupos visitantes marcharam em direção ao Pelourinho. Coletivos de teatro de rua de todo o país se reuniram para o encontro. Eram os pernas-de-pau descendo a ladeira, era música tocando folia, eram os pombos cantando as canções do “Museu é a Rua”, título pelo qual ficou conhecido as manifestações artísticas do grupo. O evento fez seu encerramento com a leitura de uma Carta Pública. Todos os grupos participaram de sua redação da carta e trouxeram homenagens, novas responsabilidades para os coletivos e demandaram por direitos e reconhecimento ao artista de rua, tais como a abertura de Editais a partir de leis de fomento. Demandaram, acima de tudo, respeito aos artistas e a promessa de uma sociedade mais justa e igualitária, a partir da reivindicação da liberdade de compartilhar e acessar os espaços públicos.

A apresentação intitulada “O Museu é a Rua” traz à tona a discussão sobre a atividade museal como um movimento social e cultural mais abrangente, para além das paredes curatoriais dos museus tradicionais. Propõe-se, dessa forma, a rua como um lugar de memória, onde o conjunto de concreto simbólico possa servir como base educacional, comunitária e patrimonial. Como proposta do segundo projeto que participei como artista do audiovisual, e que serviu de base para o vídeo documental-poético “A POMBAGEM: O Museu é a Rua”, foram selecionadas algumas praças de relevância simbólica e histórico-cultural. Cada praça selecionada expunha um monumento de figuras que revolucionaram a história da cidade. E cada apresentação tomava a forma metafórica de um monumento em relação direta com a vivência do grupo naquela jornada, naquele instante, naquele lugar, como por exemplo a estátua de Maria Quitéria monumentada no Largo da Soledade no bairro da Liberdade. O teatro de rua não começa ao som do toque de uma batuta três vezes repetidas para alertar o público que a cortina vai abrir. Algumas horas antes do espetáculo, o grupo se reúne e começa a ocupação aos poucos: instalando os os adereços e os cavaletes, vestindo o figurino e delineando as maquiagens e, principalmente, estipulando uma conexão direta com um possível público, que caminha de passagem pelos os entornos ou que ali mesma se instala em moradias sem teto. A improvisação teatral se eleva para uma experiência comunitária completa, humana e concretizada. Elementos espontâneos são integrados à apresentação e o público tem direito à participação direta quando os cavaletes em tela branca se abrem para receberem o fazer artístico, o ápice dos atos de pombageria compartilhados. Após o espetáculo, grupo e público se sentam em roda de conversa e o diálogo é aberto de forma democrática e horizontal, momento de livre expressão e construção de uma conscientização política sobre arte e acesso aos espaços públicos. A apresentação se encerra quando os passos tomam rumo e o ciclo daquela interação se encerra. A experiência museal se fez, por consequência, viva e pulsante.

Em 2022, o Grupo de Arte Popular ganhou uma sede que ficou conhecida como Casa do Museu Popular da Bahia, localizada no bairro da Fazenda Grande do Retiro. A Casa do Museu embarca desde o acervo de objetos das apresentações do teatro de rua até a sua função mais grandiosa de dinamizar o museu comunitário. A arte-educação e a pesquisa transcultural são aspectos essenciais na proposta de Educação Patrimonial e Museologia Popular. A inauguração da Casa do Museu ocorreu no dia 2 de julho, data simbólica para a Independência da Bahia de 1823 e para a história cultural do grupo. Nesse dia, o cortejo da Pombagem caminha em direção ao Chafariz da Cabocla, no Largo dos Aflitos e, em seguida, em direção ao Monumento ao Dois de Julho, onde fica o monumento do caboclo armado de arco e flecha, localizada no Largo do Campo Grande. A representatividade do caboclo e da cabocla faz juz à um patrimônio material e imaterial assim como atende aos encantos e encontros dos artistas marginais2 RIBEIRO, Manuela. Dissertação “A Roda do teatro de rua girou no chafariz da cabocla e aconteceu um museu”. Salvador, UFBA, 2019. . Portanto, esses símbolos culturais expostos em monumentos integram, de forma transcendental e educativa, os movimentos sócio-históricos e expressões artísticas no espetáculo “O Museu é a Rua”.

Fabrício Brito e Janete Brito recebem o Certificado de Ponto de Cultura pelas mãos de Margareth Menezes na sede do MinC em Brasília.Foto de Fabiano Piuba, Junho de 2023.

Fabrício Brito e Janete Brito recebem o Certificado de Ponto de Cultura pelas mãos de Fernanda Castro na sede do MinC em Brasília. Foto de Fabiano Piuba, Junho de 2023.

A Casa do Museu Popular da Bahia recebeu, no meio desse ano, o certificado de Ponto de Memória pelas mãos da Ministra da Cultura Margareth Menezes e pelas mãos de Fernanda Castro à convite do Instituto Brasileiro de Museus. Esse momento representa um marco na história do Grupo de Arte Popular A Pombagem, uma vez que atribui ao grupo o reconhecimento de um trabalho educativo, comunitário, artístico, museológico e cultural profundo e transformador, pois fortalece a base cultural das comunidades em que atua. No dia 8 de outubro deste ano A Pombagem comemora 14 anos. Devemos comemorar para além de seus reconhecimentos e feitos institucionais, mas a engenhosidade de sobreviver e se reinventar a cada instante num mundo em que pouco se julga a precarização como violência. Devemos comemorar com o intuito de celebrar a memória dos que já partiram em consequência de tais violências, como nosso irmão Perdido. Devemos comemorar o abrigo que a Casa do Museu nutri com o fazer arte e o matar a fome. Devemos comemorar a elegância dos nossos artistas de rua que ocupam a cidade em prol da arte como educação essencial. Devemos comemorar os 14 anos como um respiro a mais de potenciais em atos de surgimento, os de liberdade e de vitalidade artística. Viva o teatro de rua! Viva a Casa do Museu Popular da Bahia! Viva a Pombagem!

Setembro 2019. Retrato de Perdido, nosso caboclo das matas (in memoriam). Largo do Tanque, Salvador-BA. Foto de Paula Luciano.


Notas

  • 1
    BRITO Fabrício. Artigo “Um olhar sobre o teatro de rua brasileiro e a sua diversidade a partir do XXII Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua”. Salvador, XVII Enecult – encontro de estudos multidisciplinares em cultura, 2021.
  • 2
    RIBEIRO, Manuela. Dissertação “A Roda do teatro de rua girou no chafariz da cabocla e aconteceu um museu”. Salvador, UFBA, 2019.

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